dentro dos arredores

 

 

que tempo é esse
de seca tão inóspita
que muge em meus
estômagos e ouvidos?
que tempo é esse
que entorta meus olhos
e cora minha face 
como se dor carecesse 
de estrofes?
é tempo de ralear a espera
como se fosse só o sumo
do limão-cravo
que senti faz tempo

 

 

 

 

 

 

moléculas de amorosidade

 

 

me lembro de quando
você espantava
espectros
com o pano de prato
achava linda
a infinitude da vida
esbarrando nas mazelas
da cozinha

 

 

 

 

 

 

inafiançável

 

 

era uma pobre 
corja de dois
fizeram 
tão bem feito
que o amor foi
caluniado e 
confundido
está sob custódia
na casa 
de um primo-irmão

 

 

 

 

 

 

o amor é um bicho encardido

 

 

Queria encardir as
árvores do parque
com essa teoria
sui generis
mas durmo enroscada
na pelúcia marrom
e o sol é de plástico ainda
Quando as casas derreterem
eu te conto por onde andei

 

 

 

 

 

 

ex-humanos

 

 

o finito é um
homem truculento
que cospe em teus
olhos enquanto
você sorri

 

 

 

 

 

 

prioridades

 

 

o sexo dos anjos
me aflige 
é na laringe 
que se escondem
as gônadas
[engravidam 
gargantas]
poetas
mulheres fortes
e frágeis?
o sexo dos anjos
me desorienta
e por isso dilato
ovários e ouvidos
não sei quem baterá
as asas primeiro

 

 

 

 

 

 

em nome do aflito

 

 

o pai fez tanta 
falta que a mãe
morreu de medo
de perder os pés
e o juízo na cozinha
enquanto tomavam
cafés e coavam 
saudades
as filhas perderam
algumas fraquezas
e as escrituras já 
desbotaram na sala
enquanto elas dormem
um anjo bom relembra
o tempo que o pai
cortava cebolas 
aos domingos
e temperava um vício
de amor pela casa

 

 

 

 

 

 

vendilhões ou mexilhões [tanto faz]

 

 

eu tenho amor
pelos desgarrados
tenho um frio imenso
pela navalha deles
eu tenho um olho atrás
da orelha esquerda que
foi furado por eles

 

eu chorei muito quando
fiquei cega dele
depois peguei amor 
pelos desgarrados
catei um homem no 
colo que tinha acabado
de perder o sentido 
da palavra temporal

 

 

choramos seguidamente
por três dias de chuva 
mansa e gelada

 

eu tenho uma geladeira
e um forno velho 
[só para os desgarrados]
guardo parte dos meus
tímpanos nas frestas
do forno 
[quase não choro mais]

 

quando preciso de retinas
frescas vou ao mercado
e levo as navalhas 
[surrupiadas] dos homens
bons e desgarrados

 

 

 

 

 

 

nenhum pio

 

 

vazio é cheiro
que a gente sentiu junto
e se esvaiu num
piscar de olhos
vazio de dentro é
coisa que a gente engoliu
na mesma cama
e socorreu na mesma 
hora e depois
abriu a porta 
[e foi sempre embora]
vazio é dia partido
de horas a fio
de sol a pino
de destino estreito
que a gente alarga
com os dentes
no peito vazio

vazio

 

 

 

 

 

 

só amor

 

 

sabia a hora que
você mais amava
apertar os olhos
e tocar meu sexo
e quando pensava
em coisas indeléveis 
enrugava a testa
e mastigava biscoitos
eu achava isso
íntimo demais 
pra ser chamado
de amor

 

 

 

 

 

 

inadequado é não ouvir

 

 

fez um frio
descomunal em abril
dentro da boca
debaixo dos olhos
sob a xícara craquelê 
fez um frio sem delongas 
enquanto era antigo
denominar o inadequado
da vulva da moça

 

[dentro dela fazia um frio
exagerado que se chamava
língua e ardia calada]

 

fez um frio de granizo
enquanto os outros 
vociferavam

 

boceta, boceta, boceta!

 

 

 

 

 

 

cabimentos

 

 

foi indelicado fechar 
a janela e me deixar
dormindo.
[penso]
acho que fui primavera de sinal
flor que se oferece na mesa
enquanto se beija e se bebe
indelicado da nossa parte
como apartar os cílios
depois do sono
erguendo as pálpebras
indelicado como separar
as sílabas de uma lápide
delicado é o vento
que me distrai sem roupa
mordiscar é verbo raso 
eu prefiro o prejuízo 
de me abocanhar

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©margarita georgiadis] 

 

 

Luciane Lopes é poeta e letrista, nascida em Mirassol, interior de São Paulo. Intimista, simbiótica, sinestésica, raramente passa um dia sem escrever algum poema e os minimalistas ganharam força e espaço na sua escrita. Desde menina escrevia como se os dedos tivessem vontade própria e isso se tornou mais intenso, quando perdeu seu pai, em 2006. A forma trágica da morte fez com que ela se tornasse uma "amoladora" de palavras. A poesia veio de forma visceral. Passou a utilizar sítios virtuais, como o Recanto da Letras e se surpreendeu com a receptividade dos leitores e o acolhimento dos escritores. Ano a ano, dedicou-se a aprimorar sua poesia e também a se descobrir por meio dela. O resultado dessa trajetória está presente em seu primeiro livro, O Miolo do Mundo é Macio, a ser publicado pela Editora Patuá, em 2016.

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