©magdalena russocka 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

dura é a carne dos olhos

 

 

ela não tinha
aptidão para o
amor
até o último
desfalecer seus
olhos e merecer
sua crueza de luz
ela não tinha
mais adornos 
e seus azuis 
rasgados
e seus anzóis

agora ela andava
e sabia 
da sua aptidão

 

 

 

 

 

 

desatinos

 

 

quantas traças
coabitando 
a mesma gaveta
um acúmulo de fome
entre as calcinhas 
carcomidas
a penúltima chance
e mais adiante
a janela vomitava as
atrocidades da moça
que assassinava traças
matando de tédio
as calcinhas 
brancas/ rendadas
vermelhas/ alvoroçadas
sem o menor pudor

 

 

 

 

 

 

porque é de nascença

 

 

uma pinta na
pele
uma pequena
mostra da sua
pequenez 
na axila direita
morava a verruga
ela nunca quis
extirpar
tingia sua brancura
de uma magia
um pouco bruxa 
um pouco puta
dessas que a gente
quase não ouve
falar

 

 

 

 

 

 

movediça

 

 

na minha própria pele
mora um domador
um inquilino
irresponsável por leões

nessa imprópria pele
os casacos caíram
e as gaivotas beliscam
algo fresco de engolir

nessa pele de escrever
nessa pele de inventar
mora um cavalo marinho
louco pelo ofício de domar

 

 

 

 

 

 

de todos os cansaços

 

 

eu já me deitei 
sem escovar os dentes 
mas nunca engoli viver sem você

 

 

 

 

 

 

causa motriz

 

 

bobagem justificar
me afoguei
porque quis
me deram um mar
na entrada do corpo
e tinha lua e fogueira
eu bebi, só isso

 

 

 

 

 

 

tríade em tentativas

 

 

acordei tarde
já era outro mês 
e quase perdi 
a viagem 
arrumei a sala
desarrumei os cabelos
organizei miragens 
(uma por uma)
escolhi três pares 
de sapatos
três odores
artefatos 
arrumei o sorriso
prendi as ventanias
no quintal 
elas me perseguem
três vezes 
não te neguei

e o galo nem tinha cantado

 

 

 

 

 

 

atalhos

 

 

pra você que
me cimentou
na orla dos teus
olhos
me passeou pelo
teu corpo
elegendo minhas
mãos
pra você que 
desmentiu a morte
pra você que
se esqueceu de me
devolver a chave
daquela rua

preciso ir embora

 

 

 

 

 

 

caminho de volta

 

 

a perna encolheu
depois os braços
e o coração
encolheu pra caber
na gaveta
no útero da sua mãe
no corpo do seu pai
na boca do último
amor
encolheu pra saber
seu limite
ser mastigada e morar
na traqueia 
até o próximo engasgo

 

 

 

 

 

 

imperfeito estado de conservação

 

 

eu senti fome
de mundo
mas já era tarde
e a cozinha alagada
de tédio
os meninos dormindo
cada um num casulo
— de outra casa —
eu senti raiva 
do mundo
mas já era tarde
pra falar sobre coisas
acordadas e confusas
eu senti então
náusea do mundo
como se fosse sábado
e eu estivesse atrasada
pra me embriagar 
e chorar e trepar com
o primeiro homem que
me olhasse com a mesma
raiva do mundo

 

 

 

junho, 2015

 

 

 

Luciane Lopes é poeta e letrista, nascida em Mirassol, interior de São Paulo. Intimista, simbiótica, sinestésica, raramente passa um dia sem escrever algum poema e os minimalistas ganharam força e espaço na sua escrita. Desde menina escrevia como se os dedos tivessem vontade própria e isso se tornou mais intenso, quando perdeu seu pai, em 2006. A forma trágica da morte fez com que ela se tornasse uma "amoladora" de palavras. A poesia veio de forma visceral. Passou a utilizar sítios virtuais, como o Recanto da Letras e se surpreendeu com a receptividade dos leitores e o acolhimento dos escritores. Ano a ano, dedicou-se a aprimorar sua poesia e também a se descobrir por meio dela. O resultado dessa trajetória está presente em seu primeiro livro, O Miolo do Mundo é Macio, a ser publicado pela Editora Patuá, em 2016.