©farhad shoja
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 

"Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual no fundo rebelam-se os meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que é dizer: ouçam-me! Pois sou tal e tal. Sobretudo não me confundam". Esse Homo, Nieztsche

 

 

a força, a tradição, a literatura

 

a experiência da tradição não pode mais nos dar nem os frutos da tradição nem a tradição dos frutos: nem a massa tradicional nem a negação da tradição: nos resta o gesto vital e fundador de enfrentar o horror com as armas da literatura.

o viver continuado na "máquina tribal" (a nossa tribo, o "ocidente", o "capitalismo", a "cristandade" — isso agora mundo) despotencializa a força da narrativa por despotencializar, antes, a força, ou melhor, no nosso caso, a narrativa da força, deixando só o usufruto, o consumo ruminante de mercadorias e das forças já fracas tornadas ketchup. a força da narrativa se tornou também e só mercadoria aguada pro consumo.

a narrativa da força foi passando, não é mais força narrada, mas força fraca, força vencida, a última força, "o fim das forças".

o poema, em toda sua grandeza épica, trágica, narrativa, carnal e dramática passou pela entrega ao nada de nada do suco de laranja. castrado, ele há muito tempo é só verso, poesia, performance.

prosa se tornou best seller e a poesia, essa coisinha patética e tolamente egóica, se tornou pastiche de um "eu" esgotado inteiramente no século xix e ainda continuando por inércia ridícula ou paródica.

num mundo de forças fracas, forças reativas — criar uma narrativa da força, criar uma força da narrativa, é um feito doloroso e profundamente alegre. a força da narrativa só se potencializa quando produz e é ativamente a narrativa da força, força menipéia, dionisíaca, vital — esse passo além do mercado, contra deus, o estado, o povo, a língua. mas é preciso estar dentro, diante e com as forças e não apenas inventando uma força, delirando forças, punhetando o "escrever bem".

a classe média, enquanto "classe produtora de intelectuais e artistas", olha de longe a força criadora do existente, como aquele q olha e não sabe o q acontece, sendo apenas descritor, jornalista e sociólogos travestidos de escritor. a força da narrativa decai a níveis mínimos. o afastamento do poeta das potências de produção do existente levam o verso a ser apenas um recado, um textículo, uma mensagem, uma prosa aguada, algo degustável, algo apenas algo, uma poesia (essa coisinha desgastada e de "funcionário público"), esse minúsculo diário q nada enfrenta. nada disso pode se tornar literatura, poema, senão numa dobra de força, numa torção violenta e perversa criando outra perspectiva.

um gesto de mudança e diferença não é feito pela crítica, pela teoria, pelo saber, mas pelo reposicionamento prático na vida, do corpo na escrita da vida, essa vida mais profunda q não se confunde com a "minha vida" nem a "nossa vida", mas com os fluxos mais violentos do viver nosso. uma torção da coragem e da indignação, uma torção de enfrentamento.

 

 

o verso o poema

 

1

 

 

*. o verso é o domínio do eu, daquela dimensão do íntimo, do pessoal, aquele centro criado lentamente no século xviii e fortalecido no século xix e q sempre serviu como expressão dos letrados, dos apaixonados, dos estarrecidos consigo mesmo, com sua vida e o q lhes acontece (quase pensamento): é dimensão literária camuflada das cartas, dos diários, das mensagens, dos desabafos e sentimentos, das crônicas camufladas: a dimensão do "coração" (essa víscera preferida dos poetas e cantores), a perspectiva da subjetividade romântica (escondida no "eu lírico" e no narrador direto, q é o poeta) q logo envelheceu, mas inda continua com sua exclusividade camuflada e força numa repetibilidade esgotante e esvaziadora, se tornando uma espécie de subjetividade fascista.

 

*. o poema só existe quando instala o impessoal, o dialógico contra o monólogo — o monológico, quando fabula, quando instaura ficção (ficção contra ficção), q não é nem imaginar nem projetar um eu: o poema só começa quando nasce uma terceira pessoa q destitui e supera o poemata do poder de dizer eu (bakhtin, deleuze) e se configura uma ficção densa voltada e vinda do enfrentamento do horror: seu lugar é no mundo, entrenós, atuação essencialmente política: como diz deleuze: o poema é aquilo q está "à escuta da vida".

 

*. não é "miniconto" — é um poema. "miniconto" é apenas uma historinha, variante da "prosa", crônica, isso tão querido pelos poetas porq são eles o q fala (a primeira pessoa é sempre o verso camuflado, incapaz de se jogar num enfrentamento, a primeira pessoa da classe média, dos letrados, dos q seguem o "poder central", o "sistema de crenças da nação", a anulação do poder da escrita, a gramática fundante, sempre). também não é poesia porq isso se estragou irreversivelmente há muito e só restou uma escrita fraca, egóica, impotente, repetitiva e vazia, gozando pra ninguém. e o poema parecer com o verso é só um momento fantasma.

 

*. o poema é a repotencialização de uma escrita q "antigamente" seria chamada de poesia, mas q hoje não vale mais, não significa nada mais a não ser numa chama pálida de teóricos e na ciranda dos q "adoram poesia", e não por "não vender", mas por absoluto esgotamento e servidão.

 

*. a poesia fica com o verso, o poema se separa, retoma o velho caminho onde a densa "força da narrativa" advém em ser constitutivamente uma "narrativa da força". o verso está irremediavelmente envolvido com o "eu", com as perspectivas limitadas e tolas do eu, com os desejos, as ilusões, as minúsculas dores e ideias do eu (a poesia o verso foram raptados pela subjetividade servil, pela opinião, pela descritividade, pela confissão, pela apoliticidade, pela covardia). o poema é um enfrentamento político do horror, um enfrentamento do real — o poema é, antes de tudo, política, uma configuração do horror.

 

*. se o poeta precisa dizer alguma coisinha do seu "eu" e da sua vidinha, crie, invente, instaure uma guerra de troia pra dizer e esconder, pra expor e tornar grande sua pequenez, a insignificância de sua sensação-zinha (é óbvio q minha vidinha, meu eu-zinho é o centro do uni-verso: daí o verso, a poesia — jamais o poema, q é a força de inter-ferir, de ferir desde dentro, de repetir a monstruosa ficção do monstro pra ferir desde dentro). isso faz di-ferir o verso do poema. há mais de 200 anos (talvez essa tolice seja bem mais antiga ou uma inescapável condição estrutural) q a poesia essencial e brutamente só cuida desse euzinho e suas tolices num mundo também egóico e esquizoide, mundinho dos letrados cheios de dor e alegria, extasiados com seus minús-culos acontecimentos, num redemoinho monológico estarrecido em seus monólogos q só aparecem como diálogo.

 

*. esse "eu" é sempre tolo sem saber (é um ruminante do q já foi sentido, vivido e escrito desde meados do século xviii — os poetas não sabem q o eu-zinho não é infinito), sempre fantasma de outros eus sem saber, banal, crente, integrado, cristão, ateu, funcionário e covarde sem saber. sempre nacionalista, sempre de uma terra, de um povo, de um "momento histórico", de uma classe, de uma raça, de um sexo, de uma língua (a de deus, do estado, da nação e sempre de mamãe e de papai: perspectivas q são, na verdade, do senhor: cada um defendendo as ilusões do senhor como-se não soubessem a monstruosa rede imaginária criadora de perspectivas e a luta q garante cada perspectiva enquanto coisa natural, histórica e social: o horror é científico).

 

*. a "língua portuguesa" é a língua do senhor (não é a "língua brasileira" nem a língua do poema, q não é nenhuma das duas). não adianta escrever como "marginal", nem criar um patuá ilegível, ou camuflar a subserviência. o poema exige uma posição excêntrica, uma loxografia (o poema é loxográfico): enquanto não se enfrentar a gramática geradora da realidade da tribo, mantenedora de redes imaginárias, a gramática q a gramática das escolas é apenas uma serpente menor, não haverá uma literatura feita entre os q vivem-aqui, mas uma escritura oficial feita por escreventes.

 

*. a poesia é, essencialmente, reacionária: na "expressão do eu" há um gesto de ocultamento (do horror), uma reafirmação (da normose) e uma fuga (daquilo q é o "eu"). com isso não se diz dessa gosma integrada, morna, adoecida das multidões de poetas, mas dos "grandes poetas" (não se consegue dizer nada dos miúdos porq os grandes são apenas grandes no imaginário em busca de reconhecimento dos miúdos). neles se expressa a mesma vontade de dizer como estão, como vieram a ser, como vivem, no q acreditam, no q sentem sobre as coisas mínimas deles mesmos e do grande mundinho: a diferença dos miúdos poetas é apenas pertencerem a "redes culturais de poder" q os colocaram em suas "posições maiores". mas a tolice é a mesma, mais perigosa, mas a mesma. seu eu-zinho se torna exemplar, modelo de excelência, se torna federal, nacional, estatal, mercantil — posições sonhadas pelos miúdos em busca de se tornarem o "funcionário do mês", o "trabalhador do ano", o "poeta federal" (a mórbida e obscena necessidade de reconhecimento dos servos: todo poeta é funcionário público ou do mcdonald, ou de alguma "firma comercial": esse é a sua "visão de mundo": essa será, mimetizada, o q será defendido e exposto em versos).

 

*. o verso, a poesia é realmente o q disse brodsky em "menos que um" (1994) — "a poesia é uma forma de educação sentimental": esse é o limite esgotante e infinitamente ruminado até a mais bruta e invencível/invisível/insensível saturação. a "metafísica do drama pessoal" de brodsky foi levada até as fezes.

 

*. uma coisa óbvia como pensar q o poema expressa (essa palavra tão querida dos poetas) a interioridade do poeta só acontece naqueles q são poetas (os q fazem poesia, os abismados no eu), naqueles q expressam o esperado, o sentido por todos, o tradicional, o crente (em deus, na natureza, na história, na sociedade, na pátria, no povo, no amor, no ódio, na língua, na família e no amor): na expressão a normose cavalar.

 

*. o poema tem tanto a ver com interioridade quanto uma vaca tem a ver com a ideia de ruminante. o poema é a verdade da linguagem, da fala, do corpo enquanto aquilo q vigora em ação, em enfrentamento político do real e suas configurações: o poema é linguagem em luta, linguagem indignada expondo batalhas, agonias, impedimentos, configurações do horror na medida da sua essência (linguagem não pode coincidir jamais com aquele q é o "responsável jurídico", o autor — essa ilusão policial, religiosa, educativa, estatal: a linguagem é a "guerra de troia", não o eu-zinho e suas dores, é ficção enfrentando as ficções constitutivas). nada a ver com um eu, um sujeito, uma interioridade (essa doença religiosa e literária perfeita na figura serva do "funcionário público", figura escrava do trabalhador — não há interioridade fora das "relações burguesas de trabalho": o poeta é o "agregado", o "bacharel", o "coroinha"), uma "profissão de escritor", a busca pelo reconhecimento tradicional de servos, escravos e servidores: nada faz babar mais q um reconhecimento.

 

*. o poeta é aquele q é absolutamente inocente (não só ignorante do essencial, da essência, mas burro — o empacado, o imóvel, o q resiste com sua normose: o eu é sua âncora q se ancora no conhecido e aceito: o poeta recita, o poeta gosta e precisa de aplausos, o poeta brilha, o poeta canta, o poeta tem alma de purpurina, o poeta se alimenta de metáforas, o poeta brilha em todas as terras, o poeta é uma besta): o poeta é sempre fascista, é sempre uma dimensão direita, alguém q vive emulando "os grandes autores" pra tomar um lugarzinho ao sol: isso garante o lugarzinho do "grande" e um lugarzinho pro "pequeno".

 

*. o verso é fruto de uma "vontade", uma "inteligência", um "talento" (esses fantasmas, esses álibis do eu, essa expressão maior da normose e da metafísica essencial do "mundo do capital"): um corpo fraco q goza nessa e dessa fraqueza tentando fazer disso uma força de reconhecimento: vejam, sou um bosta, mas brilho, sou capaz de voar, sou um bosta, mas tou aqui dizendo q sou mais: o "funcionário do mês" agora é gerente, é chefe de gabinete, é embaixador, é advogado, é amigo do ministro, é um "homem da terra", é um "homem de bem".

 

*. o poeta é o silenciador, aquilo q silencia a linguagem porq faz parte dos processos de silenciamento e enfraquecimento da linguagem, enfraquecimento da língua divergente, da língua q se abre em diálogo e negatividade, aquele q aceita, concorda e mantém as força do horror — o poema é narrativo, posta um narrador q não é o poeta, o poema não é lírico, o poema só é poema quando se insurge, quando se dobra raptando as dobras perversas do horror.

 

*. o q é possível é criar uma favela literaria (um poema favelar, faveloso, favelante), a q é feita dos múltiplos pedaços das casas dos senhores, dos servos, dos servidores, partes da cidade q se desmantela, a cidade capital, a cidade do trabalho, a cidade língua: poema favela. apenas essa posição ativa o enfrentamento. parece português mas é favela linguística, é favela literária. longe de uma literatura marginal, q não passa de um pastiche acomodado das culturas do senhor sem conseguir esconder a língua do senhor.

 

2

 

*. loxografia/loxográfico: oblíquo, equívoco, inclinado; torto, tortuoso, vesgo, indireto/direto/indireto, malicioso, dissimulado, ardiloso; transversal; ambíguo, dúbio, duvidoso; q desperta suspeita; engano, erro; fora de prumo; curvo, envergado, dobrado; atraído, seduzido; vencido; tem má índole, tende pro mal; o q sai dos limites: esquerdo, esquerda: libertino, liberto. irônico, ferino, violento, selvagem, sarcástico, palhaço. dionisíaco/menipéia/cínico.

 

*. o poemata é libertino, o poema é loxográfico, o poemata é esquerdo, é vândalo, é bárbaro – o poemata não é: é o q se libertou, o liberto.

 

*. o poema é trans-a-gressivo: é um constante levar ao limite, um intermitente afastar os limites: o poema é um ataque pornográfico, esquerdo, loxográfico contra a poiesis (a máquina tribal). precisamente por isso não é "branco", não é "negro", não é "mulher" nem "homem", não é "homossexual", não é "brasileiro" ou "chinês": ele só é quando não é e se instaura contra o q é, tudo o q é — ele é menos q nada — tudo q é foi feito pro senhor, pra alegria do senhor, como a arte, a arte toda, q jamais liberta — apenas alegra o senhor sem expor sua carne arrancada e os ossos: é só uma festa, um carnaval, essa coisinha trágica dos servos, dos escravos, dos trabalhadores soltarem sua impotência cavalar.

 

*. poiesis (a ficção substancial) como forças formatadoras, mantenedoras, repetidoras e protetoras do real máquina tribal: atividades dos entrenós: o poema se insere nessa rede de forças, corporificando, enquadrando, fazendo ver forças encalacradas, sentidos dispersos, novas configurações: o poema luta contra a poiesis, fazendo ver a poiesis q é sempre coisa obscura. os poemas são fragmentos, máquinas de fazer ver aqui, aquém, além, dentro, o escorpião e seu ferrão — mosaicos da máquina tribal, porções disso q se vive mas não se sabe, se sente sem saber de onde, cristalizações desse animal monstruoso de infinitas partes em infinitos tempos, essa atmosfera mundo.

 

*. o poema luta contra o presente, contra as configurações, as cristalizações do presente, o horror do presente, sempre do presente — dessa maneira busca sua essência, sem afundar no agora e suas modas, tecnologias e costumes: o poema é político: daí a condição inescapável do poema — ele é inútil e fracassado, ele é esse nada tolo e patético q continua precisamente como um ajax desmoralizado eternamente sem conseguir chegar ao lugar da lâmina: o poema é o lugar da lâmina, o poemata é ajax.

 

*. a condição do poemata é a de guerrilheiro — aquele q usa as forças, as formas, os ritmos, as indicações do passado enquanto arsenal, não como cânone ou o paideuma, mas como matérias disponíveis na criação de molduras, de máquinas de fazer ver o horror (o poema é crítico). pra isso o passado faz parte dos componentes q o próprio presente procria e apresenta ao poemata (q não perde sua condição de vidente, de mago, de iluminado, de xamã — mas torna vivamente isso — política, isso q vê a polis como mundo e o mundo enquanto monstruosa polis naturalizada). com isso o poema não se apresenta como uma mercadoria (não, o "tudo é mercadoria" é uma crença fascista) e sim como uma visão do horror. por isso o poema exige não um leitor (essa coisinha do mercado e do estado e da educação e do reconhecimento do servo), mas um ladrão, um raptor, um trapaceiro, um quilombola, crackers — o "leitor do poema" é o legítimo "ladrão de livros", aquele q precisa visceralmente daquela arma, daquele arsenal pra sua luta: o leitor do poema sem poder levar o livro, se esconde e vai lendo e rasgando e mastigando e engolindo e lendo e rasgando e engolindo o livro inteiro até só restar a caixa das páginas: pelo menos hoje e por um bom tempo não haverá essa fome.

 

*. o passado é insuficiente enquanto cânone ou paideuma pra fazer ver o horror precisamente porq esse passado é literatura, é literário, faz parte das crenças culturais de poder e do poder, é passado e é preciso o presente em toda sua multiplicidade viva, enquanto o poema pra existir exige a linguagem, a experiência, o pensar feito e se fazendo no enfrentamento de compreensão estética da máquina tribal - enquanto estética a máquina tribal é condição do poema). o poema não é avaliado pela tradição, pela língua, pela literatura, mas por sua "funcionalidade" em fazer, esteticamente, ver, o passado a tradição entanto no poema quando é coisa viva e violenta, coisa q pede pra ser raptada, coisa q instiga e não suporta mais o passado preso naquele verso e clama por sair dali e enfrentar o horror agora, esse horror aqui, esse horror q o medroso poeta deixou passar mesmo sabendo dele (como os "poetas abolicionistas" todos tão covardes, tão pulhas, tão execráveis, são capachos — quantos versos lindos).

 

*. o poemata não é um "consumidor da língua portuguesa", não é um "usuário da língua portuguesa": sem deixar de crer q faz parte duma língua, duma história, duma cultura e dum povo não podemos falar dum poemata nem dum poema: os sistemas de crença q integram num determinado mundo como se esse mundo fosse real antes e além das crenças e relações nessas crenças, impossibilitam o poema: "ser brasileiro", "falar português", "fazer parte da história do brasil e de portugal" são limites reificados intransponíveis ao fazer poemas. ao poema e o poemata só existem não fazendo parte dessa "corrente pra frente": nenhum poema é escrito numa língua, só os versos são escritos numa língua.

 

*. estritamente (apesar de heine, kafka e brecht) só há poemas depois de auschwitz. a poesia praticamente quase chegou até lá, tendo morrido bem antes e continuado como zumbi. só poemas podem enfrentar o horror com a devida coragem estética, a devida coragem política e ética. o resto é verso. literatice e poesia.

 

3

 

*. o poema é, antes de tudo, presença e ação — não sentimento, expressão ou emoção — presença do horror, presentificação do horror — ele ta aqui, eis um pedaço do horror: a ação de expor esse horror, de tornar ele visível, exposto, atingível: o q se expõe é o horror, não o "autor", essa figura religiosa do mercado, nem o "eu" essa figura mercadológica da religião. o poema é, exposto e expondo, uma "peça de acusação" tanto no sentido teatral quando no sentido jurídico, logo, político: o q se expõe se põe pra ser avaliado exigindo uma política. ao mesmo tempo o poema sabe q é uma peça inútil, uma peça boba, uma coisa impotente e idiota: a ética tornada beleza, ou vice-versa, não esconde sua essencial impotência, sua inescapável condição de "coisa do servo" (nenhuma arte consegue escapar ao campo de força do senhor, nem mesmo aquela q se ensaia com os senhores sendo guilhotinados): o poemata é só mais um "bobo da corte", mas o horror foi exposto e o convite radical do poemata, radicalmente democrático, foi dito, foi ouvido, foi feito.

 

*. o poema se desvia dos patrões da tradição, do julgamento dos letrados, servos daquilo q impede de ver, pra uma avaliação tático-proustiana — se consegue ou não fazer-ver, fazer ver-mais. "a tradição viva" só importa na medida em q contribua com elementos q façam-ver. o poema, essencialmente político e é política a sua avaliação, isto é, se esteticamente ele consegue autonomia capaz de fazer-ver o horror: não q exista separados a política, a estética, a ética — no poema esse é um nódulo inextrincável.

 

*. a forma-poema (a forma é a respiração do poema, sua agonia, seu indomado, seu insolente) nasce não de uma consequência-do-passado, mas da politicidade ficcional do imediato do presente e do presente e seus combates (aquilo q combate a ficção-realidade com a ficção). ao mesmo tempo a forma-poema não é simples enfrentamento do presente, mas compreensão da continuidade do horror, isto é, a forma-poema não se esgota no presente (provincialismo, brasilidade, jornalismo, sociologismo ou memorialismo: ou o universalismo da sua aldeia, o universalismo do capital): o q se enfrenta é a máquina tribal e sua essência (o horror), não o presente enquanto imediato, acontecimento, tecnologia, politicagem e "fatos midiáticos" (não cabe ao poema o imediato do presente a não ser quando ele seja uma fissura na poiesis, um estrago na sustança, na subst-ância da poiesis máquina tribal).

 

*. a linguagem não tem fins literários, mas políticos (ou mercantis enquanto criadores, mantenedores e protetores da linguagem escrita). o literário continua fora do poema enquanto dimensão servil dos letrados. o literário, o estético, o poético do poema segue outro caminho: se torna instrumento de fazer-ver, de desobediência, de resistência, de enfrentamento, de desvio, de bolha quântica (o pensar deixou de ser "denso", "extenso" pra se tornar momentâneo brilho q se desvia e some: isso, quase isso, é o poema).

 

*. poemas são enfrentamentos, traços duma guerra de compreensão - daí serem antes de tudo políticos, ou melhor, a forma político-filosófica q o literário toma ao assumir o enfrentamento do horror como seu projeto estético-coletivo de exposição da essência do horror — pra interferir no corpo enquanto rede ficcional básica: o poema exige e obriga o real a revelar suas forças motrizes, seus segredos, seu horror encalacrado, o q supera os sentidos e o pensamento fraco.

 

*. a sensibilidade é uma "coisa viciada" por séculos de crenças tolas perigosas, de vivências reprodutoras do corpo, do desejo e do pensamento, das "relações fascistas", religiosas e estatais. sem a sensibilidade o mercado entra em pânico: são infinitas toneladas da mais pura sensibilidade q produzem negros, brancos, machos, fêmeas, trabalhadores, suíços, pederastas, políticos, professores, estátuas de bronze, muros, quintais, supermercados, escolas, cadeias, hospícios...

 

*. a compreensão vital da absoluta falta de transcendência acarreta a absoluta dissolução da imanência: natureza, história, sociedade, humanidade, raça, sexo, corpo, trabalho somem enquanto abstrações de defesa e reprodução teórica do existente: uma ideia, uma noção de caos sempre reconfigurado por nossas atividades e nós mesmos enquanto atividades e caos configurado e reconfigurado conforme os ritmos e jogos de forças — máquina tribal e suas historicidades constitutivas — poiesis: o poema é a delimitação dessas forças em atuação, fazendo ver o q passa, o q foi naturalizado, o q foi domado, o q se dispersa pra vencer.

 

*. o rolo do verso-poesia com o eu é um vestígio poderoso e camuflado da ideia de alma, de espírito, de corpo-espírito, de um tipo de mundo religioso, teológico q foi naturalizado sem perder seu fundamento divino, seu olho de deus sempre presente. a poesia-verso é o fragmento desse mundo estraçalhado da metafísica, da religião e das transcendências: o poeta é essa alma divinizada, sensível, leve, essa coisinha divina q toca o indizível com seu olho de anjo, um anjo gramatical.

 

*. as verdades do poema nascem da deformação — principalmente porq o poema não tem verdades, mas intensidades — cada poema é uma moldura, uma jaula q captura traços vivos do horror: uma jaula de intensidades q aprisionam um naco de sombra do horror.

 

*. o poema torna visível traços do horror deslocando e intensificando numa moldura a normalidade, q se torna estranha, estrangeira, incomum — sendo o comum precisamente o q o poema intensifica pra tornar visível, intenso, palpável: cuidado se colocar a mão na jaula pensando com "as maneiras educadas de colocar os dedos na coisa escrita": vai perder a mão e um dia será considerado mais um imbecil.

 

*. sem quebrar hábitos, crenças, opiniões não há o poema, mas o verso, criador de naturezas mortas, sensíveis, representativas, expressivas, assim como todos os personagens de "madame bovary", como todas as falas de "madame bovary", como todas as descrições de "madame bovary": todo poeta é uma "madame bovary" cercada por versos bouvard e pécuchet.

 

*. o narrador do poema (jamais o eu-lírico ou o poeta ou esse narrador q parece impessoal escrevendo palavras soltas, ou palavras belas, ou o narrador sério na vera: todos esses não são nada mais q a "voz do brasil") é aquele q faz parte do horror, aquele q aceita o horror como normalidade e certeza, aquele q defende o horror, aquele q não vê o horror, o q naturaliza a máquina tribal — não a vítima, o destroçado, o trabalhador q se derrete a maia noite dentro dum ônibus — apenas em situações bem especiais: é preciso q haja um tempo pra q o poema encontre seu caminho, talvez aberto por heine em "navio negreiro" (sem ser aquele pastiche ridículo e senhorial e escravocrata de alves) onde se desenha plenamente o q é um poema, ao q ele se destina, o q ele faz ver. ou um narrador q seja um estranho a aquele horror e o poema seja seu espanto, sua agonia, seu deslocamento.

 

*. o eu q cada indivíduo sente como uma entidade é diferente do eu literário. os dois são diferentes formas de ficção, com historicidades também diferentes, com diferentes extensões e periculosidades. enquanto o eu literário é uma lenta constituição (q acompanha o "mundo do capital" e o "mundo burguês") q vem pelo menos desde dante, chaucer, villon, shakespeare e cervantes — mas só se tornando autônomo quando o eu pessoal se configura durante o século xviii (rouseau e kant são momentos e deságuam no "romantismo alemão" enquanto a configuração forte desse processo) — apenas quando o "capitalismo", "a sociedade burguesa", certo tipo de estado, de cidadão, de sociedade civil — homo sacer — se configuram é q esses dois eus parecem aos poucos, ou em rompantes mutacionais, se tornarem um só. nessa reconfiguração monstruosa a "literatura romântica" é fundamental. estranhamente essa reconfiguração "acarreta" um lendo e inexorável enfraquecimento na potência do ficcional naquela dimensão q é essencial como caracterizador da vida do ficcional: naquela q pode enfrentar a ficcionalidade máquina tribal na mesma dimensão, ficção contra ficção (sem a distância do "pensamento" — máquina tribal não é pensamento, eis a fraqueza da filosofia q até platão tentou reconverter): só a ficção pode enfrentar a ficção, só ela pode dar ao pensamento/ação o universo, o campo, a matéria a ser atingida: é a ficção contra a ficcionalidade máquina tribal q se torna política, isto é, aquela política q não é apenas expressão servil.

 

*. o "autor" não é um eu, ele é quase também um eu: antes de tudo é um imenso e complexo nódulo de praticas, rituais, crenças, linguagens, perspectivas em tempestade, em fluxos múltiplos, em movimentos e forças q nenhum eu daria conta, poderia conter ou compreender. "guerra e paz" é infinitamente maior e mais complexo q o eu de tolstoi, mas cria uma ficção q podemos chamar de eu-tolstoi (a pessoa passa a ser tão complexa e capaz quanto seu eu ficcional, o eu q escreve e cria e um parece ser o outro); "o abutre" é insuperavelmente gigantesco e infinito diante daquele euzinho gralhoso kafka, mas só esse minúsculo poeminha cria um eu-autor q terminamos chamando kafka como se ele fosse o franz kafka de carne e osso. um eu não explica, não justifica, não abarca nada ou esconde e deforma muito mais do q mostra. um livro escrito por um eu seria uma palhaçada tão monstruosamente nada q nem livro seria, ou melhor, se veria o quanto é incapaz essa coisinha inflada, esse flatus vocis.

 

*. mas esse flatus vocis, o autor — esse impostor, continua a ser o narrador preferido do "leitor de literatura" e da poesia. ele é direto, parece um repórter, ele é sincero, ele é sensível, ele é culto, ele é "branco", ele dá a impressão q ta bem alimentado, ele é um filhote dos tipos de narradores teológicos, filosóficos, historiográficos, geográficos, jornalistas q foram se consolidando desde a "idade média" (essas idades q jamais existiram e fazem o gozo idiota dos professores de história): o narrador estabelecido, conhecedor do q está falando, o q merece respeito. esse narrador se camufla muito. ele aparece travestido em muitas máscaras e na poesia sua máscara preferida chamam de "eu lírico". quando num poema de auden lemos "Stop all the clocks, cut off the telephone" não tenha dúvida, quem fala é auden; quando... todos são eles mesmos. o "eu lírico" é uma máscara patética do próprio autor, daquele q tem carteira de motorista e carteira de identidade e pensa e sente exatamente daquela maneira. colocado em "versos", com "rimas", em "métrica" — temos poesia. sim, temos realmente um verso, uma poesia — nada mais q uma crônica patética de alguém falando algo de sempre. mesmo quando shelley escreve "I met a traveller from an antique land" não apenas é shelley escrevendo/falando mas sua função é típica da poesia, esconder o senhor, esconder o seu senhor, a permanência do senhor, dizer o sumiço daquele senhor sem atingir o seu senhor, os senhores — e quanta beleza, quanta profundidade, quanto esforço teórico em torno desse belo e maravilhoso embuste. a mesma covardia quando a "máquina do mundo" se abre e depois o "eu lírico" do poeta diz q "desdenhando colher a coisa oferta" segue "vagaroso, de mãos pensas" sem ter "colhido" nada como só e apenas mais um letrado funcionário público realizando a profunda missão da poesia: criar covardias sem enfrentar a máquina do mundo, a máquina mundo, a máquina tribal. mas o grande e profundo problema não está jamais com o agregado, mas com a infinita massa de agregados cúmplices dos "agregados artistas".

 

*. se percebe, se sonha, se pressente — "algo" — q não se vê, q não se sabe, q não é mas faz parte do incomodo de certo viver, de certa perspectiva enviesada, de certo se incomodar: então se pro-põe (o q propõe é o incômodo, a insatisfação, a indignação — forças) uma lente (certas filosofias produzem muitas lentes q se se abrem, se fecham, se mesclam como um leque, como um cinematógrafo, como um instrumento de oculista procurando o grau de miopia, de astigmatismo, o q não permite ver — até encontrar a medida, o foco, a velocidade, as cores — mas inda não sabe o q é: mas agora o pensar — q é corpo — sabe q há "algo"): a literatura já em busca, já com suas linhagens, com suas aventuras da visão, do riso, da ironia: o q se recorda, o q se faz agora recortar, se diz-dizendo é o poema.

 

* . antes de tudo, e talvez só isso, tá em quem-diz a coisa toda, o narrador. e isso pra levar a questão poema, questão constitutiva e essencial do poema, pra fora do "narrador literário", do "narrador cronista", do "narrador jornalista", do "narrador poeta" — iludidos e iludindo com essa coisa fantasma e mentirosa de "eu lírico", sempre contando alguma coisa, algum sentimento, alguma ideia. o narrador do poema é, necessariamente, um "narrador teatral", ele está em cena, ele faz parte. "isso" q supera em muito qualquer "eu" deformado por certo romantismo num sentido amplo desde meados do século xviii. ele é outro, ele não é um "eu" q também é um outro – ele é um outro, ele é realmente outro, ele é aquilo-outro q aponta algo e faz existir, aquilo q é separado dos fluxos do horror e agora pode ser visto — é isso o poema. q não é a "história", mas a cumplicidade, o clima, a atmosfera, o ritmo do dizer, a perversidade dos tons, o gozo daquilo existir dito daquela maneira — onde a história é apenas mais uma isca.

 

*. a língua portuguesa estraga a potência da literatura e é praticamente mortal, venenosa pro poema. daí praticamente não existir "entre nós", o poema, mas o verso, a coisinha poesia. não há poemas em língua portuguesa. ou há, mas são tão poucos q praticamente não existem ("geni e o zepelim", e outros poemas da "ópera", tipicamente coisa de brecht, é um exemplo de poema, mas é visto dentro da "ópera do malandro", sendo absorvido como teatro e música, não deixando sua força se espraiar pela literatura). o narrador-teatral inda resiste mesmo com o q se fez com todos os narradores teatrais de peso, aqueles q são vivos de uma plenitude dolorosa. mas em português eles se tornam delicados, se tornam madres superioras, se tornam funcionários públicos, se tornam doces. o narrador teatral do poema deve ser levado pra rua, jamais pras "leituras de poetas", pras leituras de "apreciadores de versos", pras "leituras de atores, atrizes, cantores e cantoras". o poema exige seriamente a rua, violentamente a rua.

 

 

para mais leituras: enfrentarohorror.blogspot.com.br

 

 

março, 2016

 

 

Alberto Lins Caldas publicou os livros de contos Babel (Rio de Janeiro: Revan, 2001), Gorgonas (Recife: CEP, 2008); o romance Senhor Krauze (Rio de Janeiro: Revan, 2009) e os livros de poemas No Interior da Serpente (Recife: Pindorama, 1987), Minos (Rio de Janeiro: Íbis Libris , 2011), De Corpo Presente (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2013), 4x3 — Trílogo in Traduções (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2014, com Tavinho Paes e João José de Melo Franco), A Perversa Migração das Baleias Azuis (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2015). Blogue: www.poemasalbertolinscaldas.blogspot.com.br

 

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