©cristina coral

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

— Desculpa o atraso.

— Senta.

— Você mudou o sofá de lugar?

— Você notou.

— Gosto de móveis, essas coisas. Gosto porque a gente pode trocá-los se não gostar, mudar de lugar. Jogar fora.

— Exatamente como não dá pra fazer com as pessoas?

— Eu não disse isso.

— Você me contava do nascimento da sua irmã. Quer falar mais disso hoje?

— Sempre que eu venho aqui, tenho que desenterrar essas ideias, passados. Acho que isso não me faz bem. Sei que a ideia é que essas minhas vindas aqui me ajudem, mas não tô vendo como. Falo de coisas que me incomodam com a ambição do alívio no final do túnel escuro, mas esse alívio não vem. Acontece que me sinto sempre mais culpada.

— Você acha que é culpada?

— Não sei. Você é que deve me dizer.

— Você sabe que eu não estou aqui pra julgar. Não nos interessa a minha opinião sobre você.

— E você tem uma?

— Uma o quê? Opinião ou culpa?

— As duas.

— Sim. As duas. Você tem falado com seus irmãos?

— Ok. Vou terminar a história da minha irmã. É que eu te dizia que quando ela nasceu eu não senti amor por ela. Cresci achando que tinha falhado porque era pra amá-la e eu não sentia nada. Nem amor, nem raiva. Na verdade eu me esquecia que ela estava ali em casa. Quando ela nasceu não senti vontade de pegar no colo, nada.

Há pouco tempo, minha amiga teve um bebê. Não quis pegar. Não tenho vontade. Não acho graça em bebê. São absurdamente desprezíveis a meu ver.

— Mas você gosta de gente.

— Bebê não é gente. Enquanto só choram e dormem, não me emocionam. São muito, sabe?

— Muito?

— Quando eu vejo uma pessoa linda, maravilhosa, de beleza inquestionável, me entedia, me chateia. Não há nada de estranho. Tudo é perfeito, certo, inquestionável, muito. Olha o mar: o mar é aquilo tudo. Não tem esquinas. Você engole o mar todo de uma olhada só. Você respira fundo, te falta o ar. Um segundo depois você expira e pronto. Tudo já foi visto. É grande, é azul. Bebês são assim. Aquela pureza toda. Aquela bondade toda. É tudo tão superlativo que não me serve pra nada. Gosto de gente feia. Gosto de gente velha. Gosto de montanha. Gosto de camadas. Gosto da via tortuosa. Gosto de tomar tempo olhando as coisas. O mar, um bebê, uma pessoa bonita não me tomam tempo nem pensamento nenhum. São as simplicidades mais tolas da vida.

— E seus filhos?

— Estão crescendo. Estamos nos encontrando. Falam comigo. Falo com eles. A fase de bebê acabou e eu detestei aquilo tudo. O cheiro de talco até hoje me faz enjoar. Tudo com cheiro esterelizado, cheiro de pureza. Uma merda.

— Você conhece outras mães.

— Infelizmente.

— Infelizmente?

— Esse é o maior dos incômodos. Depois de ser mãe você é definido por isso. É como se antes, não existisse você. É como se antes de ser mãe, o que você foi não é mais importante. Eu tinha uma carreira. Eu tinha um corpo forte, duro. Eu tinha ideias. Eu tinha tempo.

Depois de ser mãe, passei a ser mãe, outro superlativo. Estou esse fiapo de pessoa porque sugam minha energia. Minhas ideias não vêm porque me encontram cansada cuidando das ideias dos outros. A carreira acabou. Criança adoece. Quem vai te dar trabalho com tanta visita em médico, dia de celebração na merda da escola?

Eu tô aqui, mas nem eu me lembro do que eu era antes dessa armadilha toda de maternidade. A primeira armadilha foi a do casamento. Depois, filhos. Não sei o que era antes de ser isso, mas sei que era bom. Mas tenho que sorrir, ver bebê na rua e dizer o quanto são lindos. Tenho que ir às festas de Natal com meu marido. Se fosse possível falar a verdade, contar que o meu desejo é ficar sozinha...

A única coisa que eu quero é ficar doente, ser presa, enlouquecer. Preciso descansar.

— Não temos mais tempo. Até semana que vem. Boa quinta.

 

 

 

dezembro, 2015

 

 

 

Nara Vidal é mineira de Guarani e formada em Letras pela UFRJ. Mestre em Artes pela London Met University, morou também na Itália de onde sempre colaborou com revistas e jornais. Autora de vários infantojuvenis, lançou em 2015 seu primeiro adulto, a coletânea de contos Lugar Comum (editora Pasavento) Participou como autora palestrante de diversos eventos literários entre eles o Cheltenham Book Festival, Contos por todos os cantos na Eslovênia e na Bélgica, Clim, FNLIJ e Flipoços. Ganhadora do prêmio Maximiano Campos na categoria conto, Nara também recebeu por dois anos consecutivos o prêmio Brazilian Press Awards na categoria literatura. Mora na Inglaterra com o marido e os filhos. "Débora" faz parte do seu próximo livro de contos.

 

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