A CAMINHO

 

 

Não devia ter sessenta anos quando morri. Fiz um esforço enorme pra me lembrar a idade certa daquele dia, mas já faz muito tempo. Além disso, ficou tudo meio embaralhado, parecido com infância.

Mas me lembro bem da pedrada na cabeça. Não que eu tenha levado uma pedra no meio da testa, mas quando a gente morre, tudo começa com a respiração débil, um formigamento e sempre termina com um golpe na cabeça. A cabeça é que são elas. Quando eu senti aquela escada caindo em cima de mim, sabia que a morte tinha acertado. Mas logo eu? Eu que ainda tinha promoção pra conseguir, filhos pra encaminhar e sei lá, até levar a Ceição pra ver as Cataratas. Mas veio certeira aquela facada na nuca. Um negócio de louco. Um dor rápida, indescritível que parecia a morte. Vi do canto do olho, sangue. Era de um vermelho vivo intenso, aquele sangue de morto. Não sei se já tinha morrido quando vi o sangue. Já faz tanto tempo, mas acho que o raio que caiu na minha cabeça coincidiu com o jorrar daquela meleca escorregando no passeio. Mas por que será que tinha tanto sangue a ponto de fazer poça no passeio da Rua de Cima com a Rua da Cadeia? Devo ter sido um troço violento. Mas nem sinto dor mais. Sinto só essa bola de ferro tacada na têmpora. E esse copo estraçalhado na cabeça? Uma violência descomunal. Vi que juntou rapidinho um pessoal que passava pra ir comprar pão. Vi uns rostos conhecidos. Olhei o do seu Zé. Pensei no quanto ele andava gordo, olhando a bunda da Maria que tinha idade pra ser filha dela. Não ia fazer diferença se fosse filha dele. O homem era um diabo e não tinha decência. Embuchava-se de linguiça com pão num pé sujo qualquer e ia pra casa arrotando cerveja e se enfiando no meio da mulher, uma pobre alma que não conhecia recusa. Deve ser meu fim mesmo. Ir pra eternidade olhando a cara gorda de mau hálito do seu Zé, era de matar! E eu achando que tudo quando viesse, seria de forma serena. Qualquer um, com a morte avançando na cara, é humilde. Mas o que eu queria mesmo era que o seu Zé caísse duro de um ataque cardíaco, colocando os bofes pra fora. Mas que eu fosse primeiro. Ir com ele não ia dar pé. Passou por mim a mocinha da banca de revista. Falou meu nome, soltou um "Senhor Deus Pai" que só serviu pra me irritar. Revidei com um "vai pra puta que pariu", mas já tava morto e ela não me ouviu. Um burburinho e uns gritos de gente querendo falar pra minha família, gente querendo chamar ambulância, gente chamando a polícia. Puxa vida, essa coisa de família era o que me dava tristeza. Eu ali, esticado, já endurecendo feito borracha velha, roxo na boca, olhos estalados que nem o ovo do bar do Tataco...

Minha mulher chegou agarrada na ponta da saia rala. Aos berros, me chamava. Eu respondia, mas ela não me escutava. Já devia estar morto. Queria contar que tinha sido uma bomba. Estilhaçou meus miolos, mas doeu quase nada, porque morri logo em seguida. Senti uma pena danada dela. Tinha filhos adolescentes pra cuidar. Ia viver de quê? Era professora, ia passar fome. Senti os olhos formigar. Mas não estava morto? Tentei chamar a minha Ceição. Ela agarrada na minha camisa não ouvia. É minha preta, morri. Boa sorte pra vocês que ficam. Tem duas contas vencidas na gaveta quebrada do armário da cozinha. Escondi pra não te aporrinhar. Soube no boteco que a nossa Susana não é mais virgem. Não esquece de trancar com duas voltas o portão, minha neguinha. Essa cidade tá perigosa. Vê o que me aconteceu? No mais, vou indo. Escureceu.

 

 

 

 

URSULA ANDREWS

 

 

Ainda tinha dois minutos para dormir. O costume era acordar às 5h43 para adivinhar qual som a filha tinha preparado no despertador para aquele dia.

Era uma distração para vida cachorra que o aguardava na estação de Tucuruvi.

Abriu os olhos e em dois minutos ouviu Ocean Breeze. Um som de mar e vento tão autêntico quanto o café com gosto de papelão que tomava na máquina do trabalho.

Sorriu com o desejo de sol, mar e brisa que a filha tinha pra ele. Talvez tivesse sido impaciente com ela ontem. Essa merda de dever de casa precisava acabar. O que tanto faziam na escola que não tinham tempo pra estudar e precisavam levar tarefa pra casa?

A menina não entendia multiplicação e já estava terminando a primeira parte do Fundamental. Pensou em falar com a professora. Desistiu no meio do caminho quando avistou no camelô da Sé uma calculadora brilhante cor-de-rosa.

Antes de se levantar, olhava pro lado. Não reconhecia mais a mulher que dormia com ele. Marta foi tão bonita. E os cabelos? No dia do casamento parecia a Ursula Andrews e pensou ter tirado a sorte grande. Nos churrascos em Ubatuba, via o Nelson, o Torquato, o Edgar, tudo de olho esticado pra ela.

O sumiço da Ursula Andrews coincidiu com a perda dos cabelos dele e com o aumento da barriga. Pensou que Marta também devia sentir falta do homem com quem tinha se casado.

O dia não permitia vagar em ideia mulherzinha. Ocean Breeze tocou pela terceira vez. No banho, visitou o dia que viria igualzinho ao de ontem, de anteontem, da semana passada, do mês passado, do ano retrasado.

Já em Tucuruvi, tirou do bolso do paletó a cópia de A coleira do cão. Tudo o que era já tinha sido registrado ali, mas não tinha nem começado A força humana.

Desceu na Sé. Deu cotoveladas em quem estivesse ao seu lado pra sair daquele buraco de ratos miseráveis. Precisava ver um fiapo de sol que fosse. Sentiu alívio quando avistou o camelô das calculadoras brilhantes. Tinha chegado estoque novo. Sua menina ia gostar daquela de coração de paetês. Foi lá e comprou. Sentiu-se generoso. Talvez tivesse sido ocean breeze do despertador a dar-lhe um momento de futuro. Comprou pra Marta uma escova de cabelos transparente. Bonita pra chuchu. Ursula Andrews há tempos não vivia com ele. Mas os cabelos ficaram. Satisfeito, rumou para o trabalho, exatamente como tinha feito ontem, anteontem, semana passada, mês passado, ano retrasado.

 

 

 

 

A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA

 

 

A notícia era de um crime. O único em cinquenta anos.

Um vilarejo escocês, fincado na terra do nada, mas com bom serviço de wifi, foi chocado pela pequenez do espírito humano.

A wifi é um dos motivos para a mudança de rotina que gerou o delito na cidadezinha.

Que crime teria sido esse que abalou de maneira irreversível o conceito de honestidade num grupo raro de pessoas que ainda vivem nesse tempo longínquo, fundamentado em verdade?

Furto de doces e balas. Ninguém foi assassinado. Não houve casa arrombada, tiro, facada, sequestro. Não, nada disso.

Na calada da noite, o doce criminoso entrou na única lojinha de conveniências do local e acabou com toda a doçura do vilarejo.

Os habitantes agora sentem o sabor amargo do desgosto.

E onde entra a internet? Aparentemente, a loja passava a noite destrancada e toda a comunidade sabia disso.

Era costume deixar a porta aberta para garantir a conexão de wifi dos pescadores que ainda na madrugada aguardam barcos, dias melhores e mesa farta.

Na loja não tinha um caixa. Tinha uma caixa, chamada de caixa da honestidade. As pessoas iam lá, pegavam o que precisavam ou queriam e deixavam na caixa da honestidade o dinheiro devido pelos produtos levados.

O problema do suposto paraíso é que o mesmo estava construído na fragilidade humana, aquela que guarda nossas mais nobres qualidades, aquelas que praticamos quando Deus não está vendo.

E mesmo que doce, o crime trouxe uma enorme mudança:

ao invés de honestidade o vilarejo agora vai precisar de confiança. Mas essa depende dos outros, não vem de dentro, vem da vigília.

Acabou a doçura na cidade. Soube que câmeras começam a ser instaladas.

 

 

 

 

 

[imagem ©truthout.org]

 

 
 
 

Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é mestra em Artes pela London Met University. Autora de infantojuvenis, em 2015 lançou seu primeiro livro adulto, Lugar Comum (Editora Pasavento). Agraciada com os prêmios Brazilian Press Awards por dois anos consecutivos e o Maximiano Campos de contos, mora na Inglaterra há muitos anos, de onde escreve e colabora para jornais e revistas.