©javier perez estrella
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O CHOU NÃO PODE PARAR

 

 

Ele derrama lágrimas pela boca quando faz sol. Sorri estrelas às vezes, sempre dependendo da instabilidade natural do seu humor. Mesmo o seu silêncio é ruidoso: é um espetáculo, sabe-se assim, e assim se considera e se exibe. O chou não pode parar.

Mas o mundo anda repleto de tédio. As mulheres-barbadas, homens-elefante e crocodilos trapezistas não lhe dão a menor atenção. Perderam completamente o respeito; perderam a capacidade de sonhar.

Os mágicos extraem palavras mortas de suas cartolas roídas pela tristeza. Os coelhos brancos de fome e raiva conspiram contra a precariedade maquiada da lona velha e podre. Um dia a casa cai, torcem eles, certos de que estarão à distância e a salvo.

Ele não está, não se sente a salvo. Cada dia, matar um leão, dois, que lhe brotam dos bolsos como  capim. Dos bolsos também retira pedrinhas azuis e lembranças pálidas. De um tempo em que fora outro, outra coisa. Alguém.

Agora é a tarde vazia que cresce nas pedras da rua, indiferença. O pulsar morno do coração que soletra ausências. Estímulo mesmo só o do conhaque, que pinga nos olhos para ver o dia em chamas.

O público, distinto público, ergue apenas as paredes da dúvida, da descrença: esse aí não é, desconfio do chou. Onde é que já se viu, espetáculo é o próximo milhão a ganhar, a grandiosidade do efêmero cintilante dia após dia após. A droga a qual nós o público estamos submetidos desde sempre, como cordeiros sob o machado de Deus.

Sabendo-se assim ele segue, cheio de nadas e de incertezas. Sob o sol é o homem-espetáculo, que teima em desafiar uma platéia de cegos. Um mundo trêmulo e arrogante, que por trás da máscara exibe apenas um circo perplexo de si mesmo.

 

 

 

 

 

CARNEIROS

 

 

Sempre gostei de carneiros. Minha infância foi repleta deles: carneiros brancos, pretos, verdes; carneiros altos, sorridentes, inquietos, carneiros quadrados. À mesa também estiveram muitos carneiros, que mamãe preparava com um exagero de vinho e pimenta e hortelã.

Hoje, no entanto, não vejo mais carneiros por aí. Uma tristeza. As pessoas, aliás, nem sabem o que é isso. Algumas consideram já ter visto algo parecido na TV; outras, em fotos amareladas. As crianças que eu conheço acham que os carneiros são apenas seres imaginários criados pela internet.

Foi por causa disso que resolvi fotografar carneiros. Trazê-los de volta à luz, resgatá-los do esquecimento. Provar ao mundo que eles ainda existem.

Tenho 7 câmeras que registram tudo o que passa na rua, 24 horas por dia, todos os dias. Meu esforço, no entanto, tem resultado inútil: acumulo já há meses fotos e mais fotos de caminhões, dinossauros, tigres de bengala e fusquinhas, hidras, minotauros, senhores de chapéu coco, medusas, anjos e demônios, a putaquiuspariu. Carneiros, nenhum.

 

 

 

A TERCEIRA

 

 

Não sei quando passei a inventar mulheres. Não foi coisa de menino; depois de grande é que dei pra variar. Em pequeno fui responsável, o adulto que queriam pra mim. Muito juízo, eles diziam, mas eu sabia em silêncio que tudo era apenas uma questão de tempo. Pois então.

A primeira mulher foi um susto: veio sem pernas. Mas o susto foi meu, só meu; ela falou, serena, que era falta de prática.

— Um pouco mais de paciência — ela falou, os dedos longos acariciando o joelho inexistente —, basta apontar bem o lápis, as pernas são resultado da técnica. Insiste.

Continuei, portanto. O lápis criando a vida assim do nada. Mas faltava algo, eu sentia, faltava — e não era a técnica. Faltava, soube disso depois, o meu coração nas coisas.

Foi uma das mulheres que me falou. Eu punha a mão no lápis, os olhos, mas nunca o coração. Daí o resultado incompleto.

A primeira sem pernas, a segunda sem braços, a terceira completa exceto a voz. Um silêncio de manequim. Boneca móvel e silenciosa. Minha irmã.

Daí que resolvi repensar. E não foi preciso muito: percebi que com as mulheres de verdade também tinha sido do mesmo jeito. Nenhuma delas teve o meu coração. Tiveram algumas uma lasca de coração, um fiapo de sonho, mas nunca tudo. Alguém que não se dá por inteiro não merece outro alguém por inteiro.

As solidões conseqüentes. O hábito de beber sozinho com os olhos cravados na lua. Quando os sonhos se transformam em vasto vazio. A minha voz que secou. Falar com quem, para quem?

O silêncio é muito pesado quando não se tem mais o que falar. Códigos, eu os conheço. Mas perdi o interesse. Não me interessava mais ouvir, falar muito menos, esse exercício doloroso e inútil da comunicação.

Escuridão, essa é a verdade. O silêncio é a escuridão da alma. Foi aí que me percebi envolvido completamente nas trevas, mudo feito uma pedra.

Eu devia sentir medo chorar lamentar meu destino. Não fiz nada disso. Não senti nada. Vaziez. Meu corpo flutuando no espaço negro.

Um século assim. Dois? Enfim, um tempo sem números,  ponteiros, impossível de contar. Só o contínuo flutuar no imenso útero negro da minha mãe. Até que a voz me atingiu, a voz improvável, impossível, a voz da muda:

— Escreve e me faz viver!

A terceira, a muda, minha irmã: falando comigo sem voz. Mas era inegável, era uma ordem. Escreve, escreve.

— Já te criei com o lápis — falei, e minha voz, há muito silenciosa, era ferrugem e pó. – Você passou a viver quando o meu lápis te trouxe do nada.

— Ainda estou no nada — falou a terceira. — Escreve o meu coração com o teu coração. Para que eu exista.

Escreve o meu coração com o teu coração. Aí sim o medo, pela primeira vez. Nunca o meu coração, pra ninguém. Escrever, muito menos. O lápis me permitia desenhar, contornar a possibilidade de alguém, trazer à vida mulheres de sonho, mesmo que parcialmente. Mas escrever era um desafio; desafio maior era escrever com o coração.

— Experimenta – disse a terceira. — Experimenta.

Foi dessa maneira então que a luz surgiu. O que antes era escuro e silêncio subitamente brilhou. A terceira, minha irmã, minha invenção. Não mais incompleta:

— Não falei?

A voz era perfeita, natural. Ela falava como uma mulher de verdade.

— Agora sou uma mulher de verdade – ela continuou. – Você me escreveu. Era isso o que eu precisava. Era isso o que você precisava.

Escrevi com o coração? Não sabia.

— Sim, sim, o coração — ela disse. — O coração, enfim!

Um novo mundo, uma nova vida. Eu e a terceira, felizes. Uma situação inteiramente nova pra mim: agora sol e luz o que antes era escuridão. A terceira também, uma menina sorridente e falante. Minha criação mais perfeita.

Minha irmã, foi aí que eu me dei conta. Minha irmã? Não não não! Minha criação, sim; irmã jamais. A sombra do pecado se infiltrando sorrateiramente no meu coração, o mesmo coração que trouxera à vida plena a terceira, minha invenção. Meu amor.

— Larga mão de bobagem — ela disse. — Isso de pecado é para os ignorantes, não se aplica à gente.

Parecia simples: somos mesmo de outra natureza, dois seres ímpares. Mas a minha consciência, esse martelo em chamas, batendo sem parar. A mesma mão que procurava a terceira no aconchego da noite era a mesma que a afastava logo em seguida.

O meu coração presente, sim, mas sofrendo como nunca. Esse o meu medo desde sempre: sofrer, sofrer. Eu via então a terceira ficando cada vez mais calada, distante. Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando ela partiu.

Minha criação agora era coisa do mundo. Fora do meu controle. Controlei algum dia? Já não sei de mais nada.

Tenho aqui diante de mim o lápis, já aprendi a escrever com o coração. Mas sei que isso não é o suficiente. Ganhar e perder, a dor de perder. A escuridão, sempre ela, a escuridão.

 

 
 
agosto, 2014
 
 

 

Claudio Parreira. Escritor e jornalista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos nas coletâneas Contos de Algibeira, Fiat Voluntas Tua, Dimensões.br, Portal 2001, A Fantástica Literatura Queer, Fragmentos do Inferno e Linhagem Montessales — Retratos da Inquisição. Recebeu Menção de Honra para o conto "O Jardim de Esperanças" (Der Garten Der Hoffnungen), da Revista de Assuntos Latino-Americanos XICOATL, Áustria, em 1996. Foi ainda o ganhador do 1º Concurso de Contos da Revista Piauí, em março de 2007 e, no ano seguinte, integrante do folhetim despropositado A Velha Debaixo da Cama, da mesma revista. É autor, pela Editora Draco, do romance Gabriel. Mora em São Paulo/SP. Edita o BLOG PPC!. No Twitter: @ClaudioParreira. No Facebook: https://www.facebook.com/claudio.parreira.7.
 
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