©fikander
 
 
 
 
 
 
 

LUGAR NENHUM recebeu o primeiro trem ao cair da noite. Não houve festa na plataforma, nem aplausos, nem comemorações de espécie alguma. Pelo simples fato de que em Lugar Nenhum não havia ninguém. Por ali, a uns cem metros de distância, talvez, apenas o velho porco Miguel, enorme em suas banhas, com o eterno Montecristo pendurado no canto da boca flácida e sua inseparável lata de cerveja, que, por milagre ou outra arte fabulosa qualquer, jamais ficava vazia. E nada mais.

No trem, além do maquinista, um velho retorcido e sem rosto, vinha apenas um passageiro: um homem alto, pernas e braços extremamente finos, os cabelos longos e brancos enfeitando uma cabeça envolta em sombras. Esse homem, no entanto, poderia desembarcar em qualquer lugar do mundo, Paris ou a Casa do Chapéu1, que não faria a menor diferença. Ninguém iria reparar nele somente pelos seus atributos físicos. O que chamava a atenção para o homem não estava nele, no seu corpo. O que despertava interesse naquele único passageiro do trem ancorado em Lugar Nenhum era a sua bagagem: dezenas, centenas de malas dos mais variados tipos e tamanhos, pequenas médias e grandes, lotadas de livros e rascunhos, manuscritos e impressos sobre os mais variados assuntos.

Dom Luis Cortez de Aldaya i Bragança, ou Braga, este o nome do passageiro, era um sábio, como gostava de ser chamado. Chamá-lo de intelectual era briga na certa. Porque intelectual, na sua opinião, era um tipo de gente inerte, inimiga da ação e produtora de vento.

— Uns porras! — dizia a todo mundo. — Eles falam do peido2 com palavras tão bonitas e polidas que os ignorantes chegam até mesmo a achar que se trata de algo de muito bom gosto e cheiroso!

No meio da plataforma, portanto, apenas o sábio Braga sozinho de tudo, rodeado de malas e mais malas. Mais adiante, dentro da escuridão, brilhava a ponta vermelha da brasa de um charuto. Miguel. Que vinha se aproximando no seu passo suíno, lento, balançante.

O Braga não se surpreendeu quando descobriu por detrás da ponta vermelha do charuto um porco enorme e velho. Lugar Nenhum tinha dessas coisas, fora avisado com antecedência.

— Você é o Miguel, não é? Me recomendaram que o procurasse.

O porco se aproximou o suficiente para que Braga lhe sentisse o bafo carregado de tabaco e cerveja.

— Eu mesmo. Venha comigo.

— E minhas malas? Alguém pode roubar...

— Não se preocupe. O ladrão mais próximo deve estar a uns mil quilômetros daqui.

 

O edifício de três andares ficava bem próximo da estação de trem e parecia ter sido construído um pouco depois da Torre de Babel. As paredes externas mostravam rombos por toda parte e aquilo que no passado fora tinta azul exibia agora apenas fuligem e cansaço. O endereço ideal para os contos de Poe, pensou Braga enquanto cruzava a larga porta de entrada.

— Você foi o primeiro a chegar — falou Miguel. — Tem direito a escolher o quarto.

Braga abriu a boca para agradecer, mas Miguel já desaparecia dentro da escuridão. Mais uma vez sozinho, Braga abriu então a porta do primeiro quarto: era apertado, sufocante, as paredes de um branco pastoso, um penico sob a cama magra, uma cadeira e uma escrivaninha. A paisagem que se observava pela janela também era econômica: a estação de trem, apenas. Nada mais à esquerda, nada mais à direita. Só escuridão.

Os demais quartos eram idênticos ao primeiro. Irritantemente idênticos, pensou Braga, para quem a estadia ali naquele fim de mundo, Lugar Nenhum, começava a se mostrar chata demais. Mas o sacrifício, continuou ele, será em nome de uma boa causa. A Obra Definitiva será o livro dos livros, mais importante do que a Bíblia, até. Pretensão? Talvez. Mas possível, sim, ainda mais com a ajuda dos maiores sábios do mundo, dos cérebros mais notáveis gerados no planeta.

Quando pensou na frase "os cérebros mais notáveis gerados no planeta", Braga sorriu. Imaginou cérebros flutuantes desprovidos de corpo, pulsando feito corações, vagando pelo espaço deserto e fantasmagórico de Lugar Nenhum. Novamente a imagem de Poe lhe veio à cabeça. Não seria a última vez.

Com o espírito embalado por cérebros voadores, contos de terror e charutos fedorentos, Braga finalmente decidiu se instalar no último quarto do último andar. Por ser mais alto, dali poderia assistir com um pouco mais de conforto à chegada dos demais. E foi da janela que viu, pela primeira vez, a Casa Rosada3.

 

O porco Miguel era um mistério. Também misteriosos eram os seus charutos e a lata de cerveja, sempre cheia e gelada, mesmo sob o calor constante que varria Lugar Nenhum de cabo a rabo. Mas de mistérios, porém, Miguel não se ocupava. Era porco, sim, mas prático, coisa raramente vista nos outros de sua espécie. Aquela história d'A Obra Definitiva, por exemplo, precisava muito do seu senso, caso contrário poderia acabar em água. Não que ele se importasse muito. Achava aquilo uma tremenda inutilidade, conversa pra boi dormir. Mas ao final, dando certo ou não, foda-se, lhe renderia alguns trocados. E isso sim era importante.

A Obra Definitiva, segundo ele, era apenas mais uma entre tantas outras tentativas malucas de colocar no papel a essência do Humano, se é que isso é possível. Mas, conhecedor que era dos humanos, assim mesmo, em minúscula, sabia que era um projeto desde sempre fadado ao fracasso. Os homens, pensava, só conheciam duas coisas na vida: buceta4 e poder, sendo que uma se conquistava através da outra e vice-versa. Sabedor de que buceta não havia em quilômetros, Miguel logo percebeu que os homens que chegariam a Lugar Nenhum estavam todos mesmo é atrás de poder. Que porra de poder conseguiriam escrevendo essa tal de Obra Definitiva, não tinha a menor idéia. Mas não era pago para especular nem supor.

 

E foi assim, com suína disciplina, que Miguel foi recebendo os homens na estação de trem, um a um, dia após dia, e os conduzindo até o edifício que já abrigava o Braga, que a essas alturas já havia decorado as paredes do seu quarto com umas tantas fotos de mulher pelada.

— É pra lembrar da vida civilizada — falou o Braga. — Um pouco de luz nessas trevas de barbárie!

Miguel, direto ao ponto:

— Luz o caralho, Braga. Isso aí é a tua desculpa pra punheta!

O Braga sorriu, vermelhíssimo. A objetividade de Miguel era mais implacável que um coice de mula.

 

Os homens, que não paravam de chegar, eram todos intelectuais, ou sábios, como insistia o Braga, vindos de todas as partes do mundo. Alguns não traziam bagagem alguma; bastava uma caneta e o conhecimento. Outros, por sua vez, traziam livros e malas e, dentro das malas, mais livros e outros intelectuais que traziam suas malas também e dentro delas outros intelectuais e assim por diante ad infinitum. Em resumo: gente pra caramba que Miguel, sempre com o charuto pendurado, instalava como podia no edifício, já batizado festivamente de O Pombal.

 

No sétimo dia depois da chegada do Braga, o último intelectual arriou suas malas e livros no Pombal. Veio roxo de fome:

— Cadê o restaurante? Sou capaz de devorar até mesmo o grunhido de um leitão!

Miguel não gostou nada da fala do recém-chegado; quem come o grunhido de um leitão é capaz de querer se assanhar pra cima de um porco também, e isso não seria nada recomendável para a sua saúde. Havia na fala do sujeito, porém, um detalhe que lhe escapara: aqueles homens todos, intelectuais ou não, precisariam, mais cedo ou mais tarde, comer. O último restaurante de Lugar Nenhum fechara as portas há bem mais de duas décadas.

— Não temos restaurante aqui — falou Miguel, rezando para que o homem não lançasse sobre ele o mesmo olhar que lançaria para cima de um pernil assado.

— Não tem restaurante? E eu vou comer o quê?

Pela primeira vez em dias o Braga se deu conta de que também não comera.

— É mesmo, nobre Miguel — falou ele. — Vamos comer o quê?

Desde que não seja eu, pensou o porco, o problema é de vocês.

— Vocês não vivem dizendo que a poesia é alimento? Pois então! Duvido que entre vocês não haja um poeta capaz de suprir-lhes todas as necessidades...

— A poesia é o alimento da alma, Miguel — falou o Braga. — O alimento que bem precisamos agora é aquele para o bucho, entendeu? Falta-nos a nobre matéria-prima do cocô! Muitos consideram que um sábio de estômago vazio é uma coisa sublime, mas eu lhe digo: sublime porra nenhuma! Não existe nada mais sublime do que uma bela feijoada regada à caipirinha.

Os demais sábios, ou intelectuais, subitamente se deram conta de que também estavam famintos. Ao ouvir do Braga a menção à feijoada, aplaudiram e gritaram urras! e putaquelospariuses foram lançados ao ar numa clara indicação de qual era a disposição geral. 

— Só se reabrirmos o restaurante — continuou Miguel. — Mas tem um pequeno probleminha...

Os homens todos perguntaram em uníssono:

— Qual?

Miguel, sentindo-se minúsculo entre tantos famintos, falou, um fiozinho de voz:

— Quem é que vai cozinhar?

Braga, que não sabia a diferença entre um ovo frito e um cozido, foi logo propondo uma votação democrática para resolver a questão. Os intelectuais acolheram a proposta e imediatamente foram criadas chapas e campanhas, essas coisas do gênero às quais estamos acostumados a ver e que sabemos desde sempre que não resolvem porra nenhuma.

— Antes, porém — falou Zé Mario, antropólogo bissexto e poeta maldito —, não seria melhor discutirmos profundamente o assunto?

Uma parte dos homens gostou da idéia e se propôs a escrever teses sobre a macarronada à bolonhesa, suas origens e tradições; outros, mais refinados, se dispuseram a escrever O Tratado Universal do Escargô à Baiana, cujo sabor permanece um mistério até hoje.

Prático, Miguel atalhou:

— Bem, senhores, enquanto vocês discutem sobre a comida, a comida de fato não surge na panela. Não seria o caso aqui de passarmos da teoria à prática?

— O Braga cozinha! — gritou um filósofo.

— Zé Mario faz um excelente sanduba de mortadela! — falou um professor de artes.

— Telefona e pede uma pizza, porra! — arrematou um sociólogo.

A discussão se instalou entre os homens. Dois três dias depois, após discursos apaixonados e teorias surrealistas, tapas na orelha e palavrões, os intelectuais chegaram enfim à óbvia conclusão: nenhum deles sabia cozinhar.

— E agora? — perguntou o Braga.

— Só há uma alternativa — falou Miguel. — Precisamos de uma cozinheira!

Embora um pouco envergonhados pelo dilema ter sido resolvido por um porco, os intelectuais todos se sentiram muito bem e comemoraram a solução do problema com muitos abraços e goles de cachaça de alambique. Foi dessa maneira então que se instaurou em Lugar Nenhum o estado de fome festiva.

 

Madame Odete Proença chegou dois dias depois no trem das onze. E em sua bagagem, para espanto geral, não havia panelas, pratos ou qualquer outra ferramenta destinada às artes da cozinha. Havia sim calcinhas e sutiãs multicoloridos aos montões, correntes e chicotes dos mais variados tipos e tamanhos, máscaras e roupas de couro preto destinadas a práticas nem um pouco ortodoxas. Trazia também pela mão uma ninfeta infernal, garota dos seus 16 ou 17 anos, o rostinho tão delicado quanto endiabrado era o resto do corpo. Na plataforma, boquiabertos, o Braga e Miguel, mastigando bovinamente5 o seu charuto.

— Nenhum dos cavalheiros vem me receber? — falou Madame Odete.

Braga sacudiu a surpresa e se adiantou, dando a mão fina e esquálida para que a mulher a segurasse.

— Muito obrigada, senhor Miguel. Sou Odete Proença, sua criada.

— Miguel é o porco, dona Odete. Eu me chamo Braga.

— Dona Odete nada — continuou a mulher. — Deixemos os formalismos pra lá. Aqui sou apenas Dedé, pronta para lhes servir.

Miguel se aproximou e a ninfeta foi em sua direção.

— Adoro charutos, sabia? São tão... másculos!

O Braga, que tinha entre as suas mãos a mão de dona Odete, ou Dedé, engasgou ao ouvir a observação da ninfeta.

— E esta, senhores, é a minha afilhada, Narinha.

— Sua ajudante, Dedé? — perguntou o Braga, já íntimo.

— Quando o cliente paga bem... — falou Dedé às gargalhadas.

Naquele momento o Braga percebeu, finalmente, que as recém-chegadas eram muito mais do que simples cozinheiras.

 

A Casa Rosada era uma construção de dois andares, robusta, imponente — mas indecisa. Sua arquitetura emprestava dos gregos as colunas, dos romanos os arcos, gárgulas francesas pontuavam a construção aqui e ali. Uma impressionante pirâmide composta por placas de barro rosado (talvez aí a origem do nome) fazia as vezes de telhado. Numa breve descrição: era um edifício de mau gosto. Seus dezessete quartos, no entanto, todos situados no andar superior, apresentavam um equilíbrio que contrastava largamente com o exterior: eram amplos, iluminados pela luz do sol, as paredes brancas acentuando ainda mais a sensação de espaço. O andar inferior, apesar de abandonado há muito, guardava no entanto uma adega de incontáveis preciosidades e exibia um frescor incomum, como se ainda na véspera gentes das mais variadas posições tivessem feito dos corredores ainda atapetados e salões de estilo neoclássico seu mais aprazível refúgio6.

Foi para esse ambiente insólito que Braga e Miguel conduziram Dedé e Narinha, as duas mais novas habitantes de Lugar Nenhum.

— O aspecto é de um puteiro francês decadente — falou Miguel, sem meias-palavras —, mas posso garantir às senhoritas que a cozinha e os fogões ainda estão em perfeito funcionamento.

As duas mulheres se olharam por um segundo e deixaram escapar um sorriso maroto.

— O senhor, seu Miguel — falou Dedé —, já deve ter percebido que a cozinha é o que menos nos interessa, não é, seu Braga?

O Braga assentiu imediatamente, um sorriso também pendurado no canto da boca.

— Vamos deixá-las a sós para que se instalem com tranqüilidade — falou, seriíssimo, Miguel. As mulheres recolheram suas malas e, sem palavras, desapareceram escada acima.

 

— Eu peço cozinheiras e me mandam putas! — falou Miguel, indignado.

— Tá reclamando do quê, nobre suíno? — falou Braga. — De qualquer maneira, elas vão nos dar de comer...

— Vão matar todos vocês, isso sim.

— A mais bela das mortes, morrer entre as pernas de uma mulher!

— Vão morrer de fome, todos vocês. Acho que essas duas aí são mais ignorantes em matéria de cozinha do que você, Braga.

— Em compensação, aposto que são PhD em matéria de sacanagem!

Miguel percebeu que era inútil discutir com o Braga, que já se mostrava apaixonado pelas duas. Mais fácil era dar a questão da comida definitivamente por encerrado.

 

Dedé e Narinha se meteram imediatamente na grande banheira do quarto principal.

— Que que cê acha desse lugar, mãe? — perguntou a garota.

— Um lugar como outro qualquer. Nessa profissão, menina, a gente não escolhe: encara. E olha, tenho cá pra mim que aqui a gente vai ser tratada como princesa. Somos as únicas mulheres num raio de quilômetros e, pelo que ouvi, aqui tem pra mais de cem homens, que vieram pra cá escrever A Obra Definitiva.

— A Obra Definitiva? Queísso?

— Sei lá. Mas pouco me importa. Vamos ter muito trabalho pela frente.

— Por trás também, mãe.

— Nem me fale!

— Cê num acha que são muitos?

— A gente dá conta. Cem homens, digamos, divididos por nós duas, cinqüenta pra cada uma. A gente pega dez por dia, em cinco dias de trabalho a gente liquida a fatura. E ainda sobram o sábado e o domingo para o sagrado negócio do ócio.

— Já estive em piores condições. Quinze, vinte por noite, todas as noites. Se bobeasse, de dia também. E olha que o dinheiro nem era tão bom assim. Aliás, quem é que tá bancando esse negócio?

— Disseram pra mim que é o Miguel, mas eu não acredito.  

— Nem eu. Um porco, onde é que já se viu?

Neste momento um uivo medonho atingiu as paredes da Casa Rosada.

— Ouviu isso, mãe?

— Ouvi.

— Lobo?

— Nada, menina. Deve ser o Miguel uivando.

— O Miguel?

— Por que não? Ele fala, fuma e bebe cerveja. Por que não uivaria?

No Pombal, os hóspedes também ouviram o uivo. O Braga, lembrando-se mais uma vez de Poe, falou:

— Creio que Lugar Nenhum acaba de receber mais um hóspede...

A cena clássica do lobo enorme, de olhos vermelhos como fogo, cruzando as ruas desertas numa noite de lua cheia invadiu os seus pensamentos.

— Senhores — falou ele. — Acho que temos um problema por aqui.

Zé Mario, o poeta maldito, concordou:

— Também acho, Braga. Largamos os nossos afazeres, os nossos projetos particulares, a família e o escambau, para virmos aqui para este fim de mundo escrever A Obra Definitiva. E o que temos até agora? Porra nenhuma!

— Temos as meninas da Casa Rosada... — lembrou o Braga.

— Puta por puta eu ficava com as minhas — continuou Zé Mario. — Vim porque achei o projeto fantástico, me senti privilegiado por ter sido escolhido para a feitura de tamanho empreendimento. Mas aqui escrevo menos do que em casa, escrevemos nada todos nós. Só essa expectativa em torno de coisa nenhuma, essa interminável punheta metafísica cujo gozo não passa de um peido.

Os outros sábios, que em maior ou menor grau também viam a questão nos termos de Zé Mario:

— É isso aí!

— Apoiado!

— O povo unido jamais será vencido!

Percebendo que a coisa ia descambar para a bandalheira, o Braga, os pensamentos já longe de Poe, resolveu organizar:

— Que tal se nos sentássemos e discutíssemos as diretrizes d'A Obra Definitiva? Não podemos escrever a obra das obras sem um projeto, um ponto de partida. O que é que vocês acham?

Uma grande interrogação pairou sobre os homens no Pombal. Um rumor desordenado passou a ganhar volume, conversas isoladas aqui e ali, uma crescente e ruidosa discordância prestes a explodir e que só foi interrompida, bruscamente, por outro uivo ainda mais terrível que o primeiro.

 

— De novo, mãe!

— Sabe o que eu acho? Devem ser aqueles tarados lá do Pombal, só pode ser. Tanto tempo sem mulher, vai ver estão uivando pra nós!

— Isso não é uivo de gente não, mãe. Isso é coisa de animal!

— E o que você acha que eles são? Esse povo aí, todos metidos a besta, escritores e professores e sei lá o que mais, é tudo bicho, menina. Não ponho minha mão no fogo por nenhum deles.

— Maldade. Acho que eu já gosto deles todos!

— Pega pra você, menina, que de homens desse tipo eu já estou farta. Estou aqui para trabalhar. Gostar já é outro departamento. E por falar em trabalho, que tal se a gente der um trato neste casarão? Parece que aqui não tem mão de mulher há pelo menos duzentos anos...

 

Depois de acalmar os ânimos com abraços, cachaças e sopapos, o Braga finalmente conseguiu juntar os homens e colocá-los todos de acordo: a primeira reunião em torno d'A Obra Definitiva seria realizada na Casa Rosada, e nessa reunião seriam discutidos os temas, os rumos que se pretendia dar, as bases do trabalho e, por fim, uma possível data para o efetivo início da escrita. 

— Por que na Casa Rosada? — quis saber um dos homens.

— Porque aqui — respondeu o Braga —, aqui nos amontoamos uns sobre os outros como sapos no cio, numa espécie de promiscuidade viscosa e inevitável. Na Casa Rosada, por outro lado, o espaço é maior, temos salões amplos e iluminados e, além do mais, para o necessário lazer, que todos aqui somos ateus mas filhos de Deus, 17 quartos à nossa inteira disposição para crescermos e multiplicarmos se assim  quisermos.

— E as raparigas já sabem disso? — perguntou Zé Mario.

— Ainda não — respondeu o Braga. — Mas isso não é problema. Eu mesmo vou avisar.

— Não é justo! — gritou um antropólogo, que pelo aspecto não comia desde a queda do Império Romano. — Ou vamos todos ou não vai ninguém!

 

A gárgula de olhos esbugalhados e dentes de serpente ficava exatamente embaixo da janela sobre a qual estava debruçada Dedé, os olhinhos muito vivos acompanhando o avançar da multidão de homens que se dirigia à Casa Rosada.

— Acho que o nosso trabalho vai começar mais cedo, Narinha — falou ela, um sorriso entediado no rosto.

— Já?

— Pois é. Às armas, minha querida, que a batalha vai começar!

O maior grupo de sábios já reunidos no planeta, liderados pelo Braga, avançava a passos rápidos. Com a desculpa de comunicar a Dedé e sua pupila a abertura dos trabalhos d'A Obra Definitiva, pensavam mesmo é em festa e esbórnia, em afogar nas carnes do prazer as suas mágoas de poeira e de solidão. Quantos anos sem mulher, quantas noites de vaziez? Os solteiros conheciam bem o significado da solidão das letras, do desamparo literário, das carícias que só encontravam nas páginas dos romances. Os casados, embora se esforçassem em mostrar o contrário, também padeciam do mesmo mal: viviam aos pares com suas esposas mas no fundo sozinhos com as palavras, nelas e só nelas a única oportunidade de companhia e abrigo, o incurável vício das letras preenchendo uma lacuna que mulher alguma seria capaz de preencher.

Movidos por esses motivos e outros tantos mais, os homens rumavam para a Casa Rosada como um exército de aflitos, paradoxalmente exibindo o que mais lutavam para esconder. Dedé, mulher experiente e de coração triste, educada na fria cartilha dos sorrisos forçados, sabia muito bem do que se tratava. Acolhia o desespero alheio entre as pernas desde muito cedo, e se considerava uma espécie de cura possível, um oásis na imensidão do deserto humano. Sabia que era mentira, uma farsa necessária, mas era essa ilusão que a mantinha viva e seguindo em frente.

Foi dessa maneira então que os homens invadiram a Casa Rosada: com sorrisos e festas, sendo recebidos por Dedé e Narinha igualmente com abraços e beijos cálidos de estudada emoção. Era um jogo sem vencedores, sabiam todos, mas não importava. Cada qual ali desempenharia o seu papel da melhor maneira possível; a verdade que se fodesse.

— Viemos fazer um comunicado — falou o Braga, o braço direito envolvendo a cintura de Narinha.

— Pois que seja breve, Braga — sentenciou Dedé. — Tenho certeza que vocês não vieram aqui só para ficar de papo-furado.

Desvencilhando-se de um beijo, o Braga pigarreou, estufou o peito magro e disparou:

— Com a sua permissão, Dedé, queremos escrever aqui A Obra Definitiva, que será o livro dos livros, a mais importante obra já escrita pelo espírito humano.

— Na minha casa vocês podem tudo, até mesmo escrever...

Dando então por abertos os trabalhos d'A Obra Definitiva, o Braga se agarrou às coxas de Narinha e uns tantos outros cercaram Dedé, que organizava as investidas e lambidas entre gemidos e gritinhos e gargalhadas artificiais.  

— Calma, meus queridos, que aqui tem pra todo mundo!

 

Três dias depois, sem que uma só linha d'A Obra Definitiva tivesse sido escrita, Zé Mario pôs a cabeça para fora da janela e avistou uma porta improvável plantada bem no meio da poeira de Lugar Nenhum. Em silêncio, desceu as escadas, pulando corpos e mais corpos de soldados adormecidos e orgulhosamente vencidos pela árdua batalha sensual que ali se travara sem trégua, e foi para a rua, ainda de cueca e com os cabelos todos em desalinho.

A porta, que se erguia com natural leveza numa paisagem que jamais a suportaria em outras circunstâncias, não era de mais nem de menos: madeira escura comum, os batentes igualmente escuros e vagabundos, uma maçaneta simples, sem requintes de espécie alguma, ora vermelha ora azulada.

Zé Mario sabia-se acordado, mas aquilo tudo era cena de sonho ou pesadelo, uma porta plantada no vazio cujo propósito sequer se atrevia a imaginar.

— Quem vai por esta porta não volta jamais — falou subitamente Miguel, que Zé Mario não notara chegar.

— E aonde leva esta porta? — quis saber o poeta.

— Só você poderá saber, se fizer a travessia.

Zé Mario estudou a situação. Uma simples porta, certamente plantada ali pelo próprio Miguel, que, à falta do que fazer, resolvera se divertir às custas dele e dos seus amigos.

— Isso é alguma espécie de brincadeira, Miguel?

— Eu não brinco.

A expressão de Miguel não aceitava contestação.

— Pois vou atravessá-la — falou Zé Mario, invocado. — E vou provar que tudo isso não passa de bobagem.

— Você vai e não volta, já avisei. Em troca, alguém vem no seu lugar.

— Não entendi. Quem vem no meu lugar?

— Aquele que tornará A Obra Definitiva possível.

Considerando as palavras de Miguel tolices sem tamanho, Zé Mario girou a maçaneta e se meteu porta adentro. Desapareceu para sempre no mesmo instante.

O homem que veio em seu lugar era alto, os cabelos negros e volumosos, a barba cerrada feito uma floresta.

— Bem-vindo à Lugar Nenhum, Cortázar — saudou Miguel, enquanto a porta se desvanecia no ar.

 

Assim que colocou os pés na Casa Rosada, Cortázar foi envolvido pela canção Ne Me Quitte Pas, na voz personalíssima de Maysa.

— Madame Dedé logo vem atender — falou Miguel, e se retirou, rápido, como se aquele ambiente estivesse contaminado por terrores indizíveis.

Cortázar olhou para o amplo salão e viu, desacordados, pelo menos duzentos homens. Riu. A um canto mais retirado, imerso em sombras, um velho senhor sentado numa poltrona alta balançava lentamente a sua bengala. Cortázar riu novamente e se aproximou.

O velho, com os olhos vazios ancorados no nada, falou:

— Estou aqui desde o início, e só você me enxergou.

— Também existem os cegos de espírito, Borges.

— Mas estes homens são intelectuais! Deveriam ir mais além.

— Eles foram além, sim. Além de suas forças.

Borges sorriu, como há muito não fazia.

— Não vi as putas, mas sei que não são seres imaginários. E receio que elas também não tenham me visto.

— Não viram você, Borges. Jamais verão.

Dedé vinha descendo a escada. Apesar da maratona dos dias anteriores, exibia ainda um vigor admirável.

— Senhor Cortázar — disse ela. — Com quem está conversando? Nesta casa hoje só se ouvem roncos e peidos.

— Com um velho amigo — respondeu ele. — Mas ele já se foi.

— Bem-vindo à Casa Rosada. Gostou do nome?

Cortázar riu novamente. Não imaginaria nome mais adequado para um puteiro.

— Perfeito. Mas as minhas considerações políticas não cabem aqui. Vim por outros motivos.

— Eu sei — continuou Dedé. — Mas os escritores estão fora de combate. Acho que só estarão em condições amanhã.

— Se sobreviverem a esta noite — alfinetou Cortázar.

Dedé simulou um sorriso, aproximou-se de Cortázar e lhe deu um beijo nos lábios. O escritor então foi para a rua com passos largos, acompanhado ainda pela voz de Maysa.

 

Cortázar não sabia que tempo era aquele em Lugar Nenhum: parecia noite, parecia dia, não era nenhum deles. Impossível aplicar à cidade a régua rasa dos calendários e relógios. Era apenas, e bastava. O escritor sabia disso, de certa forma. Nenhuma surpresa, portanto. Apenas a sensação incômoda do dever a cumprir. Pela primeira vez alguém realmente se importava com a feitura d'A Obra Definitiva.

Sem ter o que fazer por ora, foi andando pelas ruas poeirentas de Lugar Nenhum. O Pombal não o interessava; a estação de trem serviria apenas para outros fins. E nada mais havia além da Casa Rosada, só quilômetros de vazio e ansiedade, um horizonte repleto de interrogações.

— Quer uma cerveja? — perguntou Miguel, que sempre surgia do nada.

Cortázar aceitou, recebeu também um Montecristo e ficaram os dois, fumando e bebendo, os pensamentos ancorados na imprecisa paisagem da alma.

Um uivo, o mesmo uivo, se fez ouvir novamente. Nenhum dos dois pareceu se incomodar. Cortázar apenas levantou uma sobrancelha.

— Deve ser algum dos homens — falou Miguel com gravidade.

— Então é o que nos resta — falou Cortázar.

— O quê?

— Esperar, apenas isso.

 

Dois ou três dias depois, difícil definir, Cortázar se viu finalmente no salão principal da Casa Rosada, diante dos sábios que escreveriam A Obra Definitiva. Não foi saudado com a reverência corrosiva destinada às celebridades, mas foi aceito como fundamental para o andamento do que se pretendia fazer.

— Senhor Cortázar — falou o Braga, Narinha colada à sua pele. — O problema é que não conseguimos iniciar o trabalho. Temos aqui filósofos, poetas, ficcionistas como o senhor, estudiosos das mais variadas disciplinas do conhecimento — mas não conseguimos escrever uma linha sequer. Parece até que algo maléfico nos impede de trabalhar.

— Da maneira como você fala, Braga, parece que eu tenho o dom de fazer o que vocês não conseguiram até agora, e não é nada disso. Não estou aqui para tomar o trabalho de vocês em minhas mãos. Vim somar, apenas. Juntar o meu esforço ao esforço de vocês.

— Esse é o problema, senhor Cortázar: o único esforço que temos feito nos últimos dias é de outra natureza.

— E muito bem feito, diga-se de passagem — falou Dedé no alto da escada.

— Bem — continuou Cortázar —, estou aqui para ajudá-los. Se é isso que estão fazendo, estou pronto também!

Os olhares todos se dirigiram para Dedé, que do alto da escada aplaudia e sorria animada.

— Madame Dedé — falou o Braga, outra vez grudado ao corpo de Narinha —, feche as portas da rua e abra as portas da adega que os trabalhos de hoje não têm hora para acabar!

Do lado de fora, sozinho, Miguel sentiu-se prestes a testemunhar o Apocalipse.

 

Sessenta dias e sessenta noites foi o tempo que durou a festa na Casa Rosada. Nunca Lugar Nenhum fora palco de tamanha orgia. Às vezes, exaustos de tantos beijos e abraços, tantos gozos e chupadas, alguns homens se permitiam ir à janela para tomar um pouco de ar. Logo retornavam, porém, porque a urgência do amor os esperava de pernas abertas.

Narinha, que pela sua juventude e beleza fora eleita a preferida da casa, tão logo dispensava um namorado já se encarregava de outro, de outros, três quatro ao mesmo tempo. Dessa maneira, portanto, não houve homem na Casa Rosada que não tivesse conhecido de Narinha a vertigem dos beijos ou os encantos da bunda. Dedé, cuja experiência supria em muito as imperfeições da exuberância, também ela se ocupava de vários ao mesmo tempo, e na medida em que o trabalho ia sendo cumprido, amontoava os homens — ou aquilo que deles restava — na porta sempre aberta do seu quarto.

Diversas foram as vezes em que Cortázar se encontrou num estado que jamais soube definir, entre o onírico prazeroso e a terrível lucidez. Um estado de conto, diria mais tarde, onde os limites se desdobravam em outros limites e outros mais sem fim. Um dia, acordando no colo de Narinha, sem saber se pela primeira ou pela décima vez, perguntou onde estava. Lugar Nenhum, respondeu a menina, e Cortázar se viu despencando em um abismo de estrelas fulgurantes, voltas e mais voltas sobre o negro absoluto, seu corpo rumando para um estado que sua cabeça jamais conseguiria alcançar.

— Estou acordado ou dormindo? — perguntou.

Não houve resposta. Apenas o rumor de mil vozes, a princípio distantes mas depois cada vez mais próximas, vozes que ele reconhecia de alguma maneira, as vozes dos companheiros de viagem. Ao abrir os olhos então Cortázar se percebeu não numa cama ou nos braços de Narinha, mas inteiramente nu no salão inundado de luz branca e vigorosa, luz que não via igual desde que as portas fecharam a Casa Rosada num mundo inteiramente composto de suspiros e desmaios.

 

Muitas foram as tentativas de escrever A Obra Definitiva depois desse largo intervalo amoroso — mas todas elas resultaram em vão. Mês após mês, e os sábios, já deprimidos, passaram a ocupar os seus dias com lamentos e maldições, impropérios e lágrimas das mais variadas intensidades. Trocaram, muitos, a poesia pela cachaça; outros, fizeram de confidentes as garrafas de uísque. Cortázar oscilava entre uns e outros, preocupado. Não entendia ainda o seu papel, a sua função. Sabia apenas, de maneira vaga, que o trabalho ainda não tinha acabado.

O Braga, que se encontrava em estado semelhante, quando o álcool permitia, falava:

— Veja só, senhor Cortázar. Um bando de inúteis, é nisso que nos transformamos. Os cérebros mais notáveis gerados no planeta reduzidos a isso: pó e fracasso. A Obra Definitiva jamais será escrita, não por esse bando de idiotas.

— Calaboca Braga — falou Dedé no alto da escada. — Reúna os homens que tenho uma comunicação importante a fazer.

Cortázar e o Braga trocaram um rápido olhar e foram trazer os homens, pelo menos aqueles ainda capazes de andar e compreender a fala humana.

Sob a escada, no salão que mais parecia um campo de batalha em ruínas, os homens ouviram de Dedé:

— Senhores, quero dizer a todos vocês que Narinha está grávida!

O silêncio se seguiu por vários minutos. Alguns homens, temendo a responsabilidade de uma paternidade repentina, se retiraram do salão. Outros, ainda sem entender do que se tratava, olhavam fixamente para Dedé como se vissem nela um anjo ou demônio encarregado de transmitir uma mensagem cujo sentido não alcançavam.

O Braga, saindo do transe, falou:

— Não entenderam ainda, seus burros? Nós vamos ser pais!!!

Cortázar sentiu que o peso que trazia nas costas subitamente se converteu em alegria. A mesma alegria sutil e silenciosa do conto realizado, do trabalho cumprido.

— Nós, pais? Quer dizer então...

— Consegue apontar apenas um homem? — continuou o Braga. — Narinha dormiu com todos nós...

Abraços e beijos, mais uma vez, foram trocados no salão, e os homens, antes deprimidos e à morte, voltaram a brindar e dançar em nome da alegria, que há muito estivera ausente.

No alto da escada, mesmo considerando-os um bando de sábios idiotas, Dedé se emocionou pela primeira vez desde a juventude.

 

A Obra Definitiva já era um projeto relegado ao esquecimento quando Dedé se materializou entre os homens com um pequeno embrulho nos braços.

— Aqui, aqui! — disse ela.

Emudecidos, os homens fecharam um círculo estreito em volta de Dedé.

— Sai, sai, se afastem. Assim vocês vão sufocar a criança!

Cortázar e o Braga afastaram os mais afoitos, com delicadeza e chutes nas canelas. Dedé, afastando a manta que cobria o bebê, falou emocionada:

— Senhores, chega de perder o sono e o senso com essa história de Obra Definitiva. O trabalho de vocês chegou ao fim.

O Braga atravessou:

— Como chegou ao fim? Nós não escrevemos nem uma linha!

Cortázar sorriu. Dedé também.

— A verdadeira Obra Definitiva está aqui em meus braços — falou ela. — Não queriam condensar num só trabalho todo o conhecimento, todo o gênio humano? Não buscavam a forma perfeita?  Se queriam o livro dos livros, a escrita mais sublime, ela está aqui, enfim: escrita em forma de gente, filha de Narinha e de todos vocês!

 

Quando o trem partiu levando o último sábio, Lugar Nenhum já era uma cidade inexistente. No lugar onde estivera a Casa Rosada, apenas uma porta sustentada pelo céu poeirento.

Cortázar e Miguel fumando e tomando cerveja, geladíssima.

— Palhaçada — falou Miguel.

— O quê?

— No final das contas, essa Obra Definitiva não passa de uma filha da puta!

Cortázar riu.

— Depende do ponto de vista.

— Ponto de vista o caralho! É isso mesmo! E os cretinos nem me pagaram...

Enquanto Miguel excomungava os sábios, as putas e tudo o mais, Cortázar atravessou a porta. Uma ventania então varreu o vazio.

 

 

 

Notas

 

 
 
julho, 2008
 
 
 
 

 

Claudio Parreira (São Paulo-SP). Publicou Por um laço invisível (edição do autor, 1983) e, nos anos 1984/1985, o panfleto periódico Renovar. Integra a coletânea Contos de algibeira, com o miniconto "Mãe" (Porto Alegre: Ed. Casa Verde, 2007). Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos online, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Edita o blogue PPC!

 

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