©maria kreyn
 
 
 
 
 

 

 

Ele fora ao teatro porque nada poderia fazer, se tivesse algum compromisso seria exclusivamente com a filha, Lisete, que dera para chamá-lo, pois a dor não a abandonava. Quanto à mulher, subira ao promontório e se atirara. Agora, o corpo poderia ser visto içado pelo dente de um rochedo, as costelas e parte do seio descobertos. Um dos expectadores, já que todos vestiam capuzes, comentou como o caminho das casas até o molhe estava frio, pelo fato de que soprava o bafio dos chorões e da matéria fermentada das docas. Mas Laertes não foi pelo atalho dos portos. Não conseguia dormir, a pensar de que maneira extravasaria seu ódio. Polanas, que naquela hora devia estar ocupado com seus afazeres, havia dito:

— Você é dócil. E muito mais sua mulher.

Dissera isto refestelado na poltrona, a cabeça de gesso enorme sobre a coluna de barba grisalha, uma das pálpebras inteiramente vermelha com um coágulo pendente a brilhar em compasso com a ponta do cigarro. Um homem gordo, qual Herodes, de olhos vidrados e estáticos, terminou de fechar a maleta sobre a mesa de trabalho. Mas Laertes não reagira, só sabia que devia prestar contas com a mulher. Deixou o edifício onde trabalhava, uma construção de vidro que lembrava a incubadora de um recém-nascido prestes a morrer, ou a guardar o batráquio de barbas cinzentas, para a rua oleosa da última chuva — então, a mulher era dócil. Estugou o passo e, logo, quis vê-la ao entrar em casa. Não havia ninguém na cozinha, só as facas de carne espetadas no dorso de uma vitela. Foi ao quarto de Lisete. A menina estava acordada, pequena em sua magreza, a dificuldade cada vez mais acentuada de comer estampada nas olheiras e no arroxeado em torno dos lábios. Acabara de levar um de seus lenços aos lábios e o tirara vermelho. Laertes sentou-se ao seu lado, na borda da cama, e deslizou a mão pelos cachos encaracolados e sedosos. Acarinhar a filha o fazia lembrar Helena, quando ainda dormiam juntos, mas um asco crescente da esposa fora os apartando. No entanto, ela não se deixara vencer pela abstinência da carne, pois Polanas sabia de sua docilidade.

Olhou uma vez mais a filha e pensou que ela era o único fruto que restara de sua vida. As órbitas vidradas e envoltas em círculos escuros, a pele fervendo sob alguma febre que precisaria, de todas as formas, evitar, a luz difusa a qual fazia ressaltar os ossos da criança, tão frágeis que seria capaz de parti-los com a pouca força das mãos; de repente, Laertes a apertou com mais intensidade contra o peito, e a menina, momentaneamente cega pela luz difusa que emanava de uma das luzes do teto, lembrava o corpo da mãe a emergir do dente de rocha. Haveria outros corpos à semelhança daquele, em verdade, corpos seccionados, deixando entrever as costelas. Um rosto, totalmente envolto em gazes mofadas, comentou sobre a cena:

— Logo Polanas irá surgir, com sua carne obesa sufocada no terno, a barba mais lanosa, caprina, negra e folheada de neve nas pontas, tem em tudo a maneira de um lacaio, a qual esconde por sob uma postura benevolente e cruenta, de superior na escala hierárquica, em todos esses anos, o rosto circular, e os olhos, já reparou neles, iguais ao de uma solha pendente de um gancho no mercado. Além disso, há outra solhas sobre a barraca do peixeiro, decapitadas, tinto todo perímetro, como se, das frinchas nas tábuas, respirasse sangue, por debaixo da casa há peixes destrinchados, veja, como Helena teve sua vida mudada? Desde que Polanas a convidou para a incubadora, ela não fez por menos, e, à medida que recuperava o prazer, foi nascendo um pólipo. Laertes passara a evitá-la, e ela, quando percebia o marido adormecido em outro cômodo, se despia. Principalmente acariciava os seios, que sentia túmidos, como em uma segunda gravidez. Depois, depositava as mãos sobre o ventre, à procura do indício de seu novo amor. Assim por tanto tempo, a filha já descorada, esmaecida, chegando a casa após o colégio, sempre necessitava passar pelo molhe, encolhia-se ao sussurro dos chorões, e escutava entes dizerem que, em breve, teria um irmão. Pois à mãe não mais lhe interessava a filha, porém tão só o enorme ventre piscoso de Polanas.

Pagara assim mesmo a entrada do teatro, apesar de que aquela fosse sua última cédula. Dera dinheiro ao rosto oculto por sob a tela decorada com desenhos de insetos, toda negra, a recobrir uma freira. Na verdade, o teatro poderia ser a igreja a qual, das docas, era vista a intervalos, desde que a luz do farol pousasse rapidamente sobre ela. De areia, com rendilhados de querubins e uma rosácea onde se viam cenas de mártires degolados. No fundo do altar, ou do palco, um Cristo de cinco andares tinha seu corpo atravessado por pequenos ganchos puxados por cordas. É que alguns fiéis rasgavam sua carne e vinham degustá-la. Homens, mulheres, crianças com gotas de água, como se recém-saídas de um banho, punham o que sobrava em cestos e, então, um gancho perfurou seu pulso, a coroa de espinhos estava ungida de flores, como numa estação primaveril, e de uma veia vazada bebiam vinho. Cristo, cujos membros eram envoltos por lençóis, chorava, pois tamanha era a dor que sentia. E o pólipo, uma segunda natureza finalmente descoberta. Helena não podia negar, nem o médico lhe negou, e a sacerdotisa, no pudor de uma infanta, escondeu o perfil do mamilo sob a blusa com uma das mãos.

— O que você tem, filha? — perguntou Laertes, e percebeu na febre de Lisete, agora muito mais implacável – sem evitar, no entanto, que em seus lábios se estampasse a confissão de sua herança, tantas vezes perpetuada na terra, a paternidade —, que restava pouco tempo:

— Você é dócil, lhano.

Sentado à escrivaninha, encarava-o nu, a barba atravancada em uma coluna. Não revidara, até sorrira. Rira, afinal, por saber que estava certo em não ter chorado pela mulher. Ela fora ali, depois que soubera, sentara-se na mesma cadeira em que estivera sentado, contara sobre o que iria acontecer, começara a soluçar. A cabeça taurina de Polanas, de um búfalo, permanecera no ar, sobre a escrivaninha, como um seio de Medusa. Devassara aquele corpo mediante o qual alimentara, por algum tempo, a vergonha de seu empregado:

— E como seria eu me lambuzar com um único seio? — os olhos de solha ficaram duas vezes maiores, dois carbúnculos no rosto rubicundo. — Igual à mulher que perdeu uma perna, uma colegial. Quer ver? A colegial a se despir lenta, lasciva e, depois, se abrindo para uma câmera.

Helena entendeu que, com essas palavras, os lábios dele sentiam prazer. Ele teria um imenso gozo em vê-la amputada, até gostaria de assistir à cirurgia, a cicatrização, o dossel para a amazona. Mas ela poderia deixar-se filmar. Iria mostrar também a colegial, totalmente despida, andando com muletas num parque público, brincando num balanço, os seios perfeitos, a carne macia e reluzente no lugar em que fora feita a incisão, o gramado se estendendo a perder de vista, o rosto queimado de sol, com sardas disputando a beleza dos cabelos loiros.    

Sua única herança. E beijou a testa de Lisete, que delirava. Puxou as cobertas até estas deixarem somente os dentes trincando, vermelhos de sangue, os olhos azuis perdendo progressivamente a vida, os cabelos em desalinho, que não deixou de arrumar. Sua única salvação seria que Laertes a levasse a um médico, mas o pai, agora visto pela plateia — todos os fiéis de capuzes acendiam lanternas, cujas luzes desenhavam expressões bovinas nas tessituras das gazes —, entregava seu fruto às sombras. Pois estas, enfim, é que conseguiam extravasar-lhe o ódio. Apertou o cabo do punhal, já que antes de se dirigir à filha, quando entrara em casa, retirara-a da vitela. Inúmeros córregos afluíam de Cristo, e Laertes, saindo do quarto da filha, desceu pelas escadas do palco, enquanto as lanternas o seguiam. Saiu para o molhe, e o odor, então fétido dos chorões, anunciava a estagnação de toda a covardia, pois ainda não era tão tarde que não pudesse ir até Polanas. À frente, chalupas, atracadas no ancoradouro, tinham os gurupés e mastros tecidos por redes de pesca, como panos mortuários, talvez as telas que cobriam os rostos de seus assistentes. O farol surgia e desaparecia — soluços, vindos de Cristo? enfunavam as velas da morte —, os ventos só traziam o cheiro de putrefação e calor insuportáveis. Laertes atravessou uma sentina, afundando os pés no barro que parecia querer engoli-lo. Depois dos chorões, árvores anãs ladeavam o passadio, em verdade, o píer, que serpeava a partir da ilhota até o edifício de escritórios. Todos perceberam que havia luz no primeiro andar:

— Mas é assim que sempre termina, todas as vezes. Lá está Polanas, pois seu ofício é, sem remissão, tramar a urgência das humilhações. Ele as planeja em pequenos blocos de papel. No intervalo de seus pensamentos, não se depara consigo mesmo, porém com um rotundo corpo nu, de foca untada de óleo. Os peitos são imensos, por baixo de pelos como que de um centauro, desaparecem seus dedos sob a gaforina. O projeto das humilhações não se separa das cifras, dos emolumentos, dos písceos cargueiros que atravessam os passadiços. A cabeça de gesso, pendura-a numa gaiola, e os pés, de licorne, escoiceiam o seio de uma menina, até retirá-lo.

A plateia acompanhou Laertes até este parar à entrada do píer, no instante em que o farol banhava de luar todo o edifício, ao longe; alguém, pelo excesso de calor, decidiu retirar a gaze, foi desfiando-a, e surgiu um rosto coberto de talco, que desceu pelo ancoradouro e deu com um caixão muito selado com piche, de modo a evitar que a água penetrasse. Era uma peça de pinho, atada a uma estaca por uma corda.

— Ei, venha cá! — o rosto de talco se dirigiu a Laertes.

Este, que apertava em convulsão o cabo do punhal, ia agora, às carreiras, na direção do edifício. Quantos golpes, até que todo o sangue vazasse, de modo a alimentar devidamente todas as solhas debaixo do piso? Com certeza poderia curar a febre de Lisete. Quem seria dócil? Talvez Polanas pedisse, com extrema doçura, que não se fizesse nada com ele:

— Não é justo.

Um batráquio. E a figura de rosto enfarinhado conseguiu segurar sua mão. Outros expectadores foram descendo Laertes pelo pequeno barranco. Ele viu o caixão, sem conseguir evitar as lágrimas. Tremia e deixou que lhe depusessem o punhal. Então tinham mais telas no rosto. Eram seres níveos, como que saídos de fornos antiquíssimos, pessoas de farinha, manejadas como golens, olhos raspados, sem brilho ou pupila. Ele se deitou, sentindo o calor das almofadas macias que confortaram sua cabeça. Percebeu que aquele que o guiara pela mão até o esquife era um mulher, pois limpara todo o talco das faces. Seu rosto era rosado, molduravam-no cachos louros, encimados por uma auréola. Laertes sentiu-se abraçado por águas gentis, tecidas talvez por crianças. Não segurava mais o punhal, pois a mulher o retirara dele e o sustinha. Escutou o sussurro dos expectadores, os fachos das lanternas atravessando seus olhos. A jovem inclinou-se e pôde perceber seu perfume, algo como vindo dos círios. E, também, ouviu o atracadouro ser pisado por inúmeros pés, ranger de mastros e polias, um choro mais acentuado vindo do teatro:

— Não é nada — a mulher apaziguava seu medo —, somente que trazem os cestos para as chalupas. Há um riacho macio que verte do Crucificado, e tanta carne sob as mantilhas, que se abraça com o fermento e o sal. Haverá um banquete, todas vezes é assim, e, agora, já começam a lavar o palco. Cristo desce da cruz, se encolhe, limpa as chagas com os lençóis, ainda passará por outras sessões. Os funcionários do teatro já lavam o sangue do palco, das coxias, da boca de cena. A maresia entra por todas as seteiras, e Jeová já se reclina de frio, como o passarinho.

Ela beijou sua testa exatamente como ele fizera em Lisete e, neste instante, a viu num parque público, correndo, sorrindo num balanço, folhas crestadas varridas pelo vento. Bafios de lixívia subiam do atracadouro, viu uma gaze descobrir rosto nenhum. Mas só queria segurar algumas das estrelas, pequeninas constelações no céu, despontando das nuvens, o punhal cortou a corda, ele tinha o lenço da filha, como uma rosa num dos bolsos do cafetã, o caixão deslizou pelas águas, um carpinteiro começava a trabalhar nova madeira na enxó.

 

 

 

 

janeiro, 2013

 

 

 

Leonardo Vieira de Almeida é escritor, doutor em letras, professor substituto de literatura da UERJ (Faculdade de Formação de Professores) e pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio. Autor dos livros de contos Os que estão aí (Ibis Libris, 2002), A flor no rosto (Multifoco, 2010) e Veredas do grande conto: a descoberta do sertão em Guimarães Rosa (ensaio, Editora da PUC-Rio em coedição com a Uapê, 2011, Prêmio Antonio Olinto, da União Brasileira de Escritores, 2012).

 

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