©chema madoz
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

SANDÁLIAS

 

 

Queria cantar,

era tarde.

Movia-se a noite para longe.

Logo viria

o dia?

Arrastava as sandálias pela sala.

O ruído,

antes que acontecesse,

já ouvia.

E ria,

pensando em dálias.

Que as palavras nele tinham por hábito

provocar esse efeito de evocação.

Dália,

flor que nunca vira,

às vezes demente,

poderia ficar horas a contemplá-la

a esmo.

Mesmo que não existisse,

a vida passava,

deixando marcas no tapete.

 

 

[Poema da Antologia VMD. Itu: Ottoni, 2004]

 

 

 

 

 

MOLEQUE AO SOL ENTRE FLANELAS

 

 

Pé no freio,

bomba de gasolina.

Perto do fim da linha,

a vista embaça.

Sob forte mormaço,

um moleque Ricardo,

na janela do carro,

a flanela passa.

Tiro os óculos.

Esfrego na camisa

meu corpo de vidraça.

O garoto sorri,

sorrio de volta.

Mas nada limpa a minha dor.

 

 

[Poema da antologia Vozes na Paisagem II. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2011]

 

 

 

 

 

POEMA MIO

 

 

Esgueirei-me

pelos cantos da casa,

pelos prantos da sala,

pelos pratos da pia.

Os meus olhos de gato,

entre os fantasmas

do fundo do quarto.

Afundei-me entre botas,

fechaduras de portas.

No fim das contas

de vidro.

 

 

 

 

 

O PENETRA

 

 

Um poema indecoroso,

à Gregório e Glauco Mattoso,

inteiramente fora do tema, aparece de repente.

Na festa de lançamento, com todo o atrevimento,

sobe na mesa e rebola um remix improvisado.

Sob apupos e aplausos, vai rasgando a roupa,

enquanto balança a genitália louca.

Aos berros, chama deus e o mundo de canalha.

Sorve toda a água e todo o vinho,

faz-se homem e mulher de todos.

Mete até nos buracos da Lua.

Arrebenta colares, distribui as pérolas.

Inclusive, aos porcos e aos gatos sem botas.

Rasga estofados,

e, em clima de entrudo,

cobre os pobres de veludo.

Num final ilustre, dependura-se no lustre,

e despenca triunfante entre pingentes de cristal.

 

 

[Poemas de Proyecto Cultural Sur Brasil, poesia do Brasil, antologia, v. 13, Bento Gonçalves, 2013]

 

 

 

 

 

DIANTE DA PORTA

 

 

A vizinha do quinto andar me garante

que, quando morrer, vai pro céu.

Espanto-me,

mas ela me assevera que aceitou Jesus

e que esse é o seu comércio com Deus.

Claro que não usou esta palavra: comércio.

Ela disse trato. 

Deixo-a cantarolante no quinto,

onde um apartamento em obra

produz um barulho dos infernos.

Pensativo, subo.

Não ao sétimo céu,

mas ao nono pavimento.

Ignoro se estou salvo.

Ignoro se ela está salva.

Mas ela acredita

e canta.

Diante da porta,

tento encontrar a chave.

 

 

 

 

 

DE NOITE NA NECRÓPOLE

 

Décadas depois do golpe,

a estátua do general

ajoelha-se no chão da necrópole.

Pede em vão aos anjos de pedra

que lhe concedam o perdão.

 

 

 

 

 

MORTE E PAIXÃO


Gostaria que a morte
se aproximasse
sem muito estardalhaço.
Viesse de repente,
com poucas palavras.
Não me trouxesse nenhuma cruz,
nenhum cravo a mais.
Ademais, tal um grande amor,
que eu a reconhecesse
ao primeiro olhar.
Gostaria que fosse amável morena clara,
vestida em sumária branca anágua.
Que me envolvesse em seus braços de seda
e me seduzisse completamente.
Que me permitisse, naquele derradeiro instante,
um último e estrondoso gozo.
Queria a morte igual à água:
transparente e com gosto de nada.


Rio, 29/03/2013, Sexta-Feira da Paixão.

 

 

 

 

 

O BRILHO DO SOL EM ZAMORA

 

 

Eram 17 horas.

Depois de muita chuva,

o Sol brilhou em Zamora,

desafiando os 11 graus daquela tarde.

Com minha supercâmera digital,

tentava, afoitamente, fotografar-lhe o rastro.

Tudo que restou daquele momento inimitável:

várias fotos e nenhum astro.

Imagens completamente escurecidas,

somente vistas às 18 horas, de 20 dias depois,

sob o entorpecente mormaço do Rio.

Ai de todo o artista

que tente aprisionar a luz.

 

 

[Poemas de Quadrigrafias, antologia que reúne quatro livros, com quatro diferentes autores; no prelo]

 

 

 

 

 

OS VULCÕES

 

 

Os vulcões são serenos,

cordiais e amistosos

a maior parte do tempo.

Suas lavas,

quando vêm à tona,

lavam o solo em que tocam.

Os vulcões expelem

seus espermas de fogo

e defloram toda terra virgem.

Indiferentes, cobrem também as cidades

das quais ignoram a existência e a História.

Ardentes,

são considerados cruéis

pela maioria dos homens.

Os vulcões são solitários,

não sabem o que fazem,

e ninguém atina como se lhes dá o orgasmo,

tantas vezes contido por séculos.

Sofrem muito.

Descendem do coxo Vulcano,

senhor do Inferno e da fealdade.

Deus tantas vezes traído

por sua bela e insaciável esposa Vênus.

 

 

[Facebook, outubro de 2013]

 

 

 

 

 

LENÇOS PÁLIDOS

 

 

Levados ao rosto,

lenços pálidos

escondem lágrimas.

Revelam

monogramas

e dores.

 

 

 

 

 

SURPRESAS DE DOMINGO

 

 

Na moldura imaginária,

seu rosto creme,

com mechas de chocolate quente,

invade a tarde fria de Ipanema.

Em meio à ventania,

meus pensamentos

espalham ao redor

a incontível alegria

de estar contigo.

E tudo é tão puro:

mar de telas,

recostadas nos muros.

Em plena feira hippie de domingo,

na sua cinquentenária boca nordestina,

aparece, num repente,

um sorriso de menina.

 

 

 

 

 

FÁBULA

 

 

Há 31 anos destranco meu cofre.

Teclo tanto treco,

tento tanto troço.

Dos destroços que recolho,

faço minha crítica fortuna,

meu fabuloso tesouro.

 

 

[Poemas inéditos, especialmente para Germina Literatura]

 

 

 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

RICARDO Ingenito ALFAYA (Rio de Janeiro/RJ, 1953). Divorciado, sem filhos. Formado em Direito e em Comunicação Social, Jornalismo. Trabalha atualmente como revisor e consultor literário. Escreve em verso e em prosa. Publicou os livros de poesia Através da Vidraça (São Paulo: Poeco, 1982), Sujeito a Objetos, em Rios, coletânea de poemas (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2003) e Frutos da Paixão, em Vertentes, coletânea de poemas (Rio de Janeiro: Five Star, 2009). Integra ainda 43 antologias. Obteve 41 prêmios literários. Encontra-se em mais de 70 periódicos do Brasil e do exterior. De 1995 a 2006, foi editor do Nozarte Informativo Impresso e Eletrônico. Tem página no Facebook.
 
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