"A linguagem é tão antiga quanto a consciência — a linguagen é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, que existe, portanto, também primeiro para mim mesmo e, exatamente como consciência, a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade de intercâmbios entre os homens". Marx e Engels in A Ideologia Alemã

 

 

A reflexão gramsciana centrava-se na necessidade de, através da corrosão do consenso ideológico da sociedade civil em relação à sociedade de classes, facilitar e preparar o processo revolucionário imprescindível à superação das contradições sociais e, portanto, das tendências civilizatórias declinantes nascidas da não solução daquele impasse, abismalmente fortes no início deste terceiro milênio.

No seio da esquerda classista há amplo consenso sobre a necessidade de antepor as visões do trabalho às do capital na literatura, cinema, música, artes cênicas e plásticas, ciências sociais, formas comportamentais, etc. Paradoxalmente, pouca atenção tem sido tradicionalmente dada à questão da língua, considerada em geral como dado natural, neutro, suprassocial e supra-histórico.

O domínio e a consciência crescentes do mundo material, espiritual e social deram-se através da linguagem, igualmente produto histórico e biológico da humanidade. Em Ideologia Alemã, Marx e Engels lembravam que "a linguagem", "tão antiga quanto a consciência", é nos fatos expressão e produto da "consciência real, prática" dos intercâmbios sociais. Um fenômeno, portanto, essencialmente histórico e social.

Também nos anos de 1930, sobrepondo-se às construções da ditadura social stalinista, o linguista marxista Michail Bakhtine realizou revolucionária interpretação da linguagem, definindo-a como expressão social do devir histórico, em oposição frontal às visões naturalistas propostas pelo linguista estruturalista suíço Ferdinand de Saussure, hegemônicas na época como ainda hoje.

Retomando e aprofundando a visão marxista da linguagem, em O marxismo e a filosofia da linguagem e em outros trabalhos germinais, Michail Bakhtine apresentou a língua como expressão e registro do mundo social. Para ele, as classes sociais veem, sentem, interpretam e expressam o mundo em forma singular e contraditória, através de vozes, acentos e linguagens singulares e contraditórias.

Sobretudo, Michail Bakhtine lembra que o policlassismo das formações sociais origina, no nível da interlocução, uma rica e contraditória polifonia social. Que a construção da hegemonia estatal, étnica, social e sexual dá-se no contexto da imposição e reprodução incessante da hegemonia linguística estatal, étnica, social e sexual.

Portanto, a sufocação dos timbres, das vozes e das línguas dos oprimidos é condição essencial para a manutenção da hegemonia dos opressores. Um processo que se impõe plenamente a partir da universalização da visão alienada da língua como fenômeno natural e universal e não social e singular. Para Bakhtine, há liberdade apenas quando abandonamos a voz dos outros, para assumirmos a nossa, expressão natural e necessária de nossas necessidades.

A língua é palco privilegiado da luta de classes, expressão e registro dos valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados. As nações imperialistas lutam para impor suas línguas e, através delas, impor seus valores às nações dominadas. Assim, as classes dominantes esforçam-se para que os dominados submetam-se plenamente a uma ditadura linguística, que facilita e consolida a ditadura social e econômica.

Para além das aparências, os signos linguísticos, profundamente determinados pelos conteúdos sociais que os engendram, ao perseverarem através da história, assumem inevitavelmente novos conteúdos e determinações, permanecendo, entretanto, mais ou menos prenhes dos sentidos ensejados pelas realidades sociais que os produziram, mesmo quando estas últimas foram definitivamente superadas.

A dupla esfera do signo linguístico materializa-se em contexto sócio-histórico determinado. Através dos anos, sua instância significante prossegue a sua jornada, assumindo e ampliando significados, ao mesmo tempo que mantém conteúdos mais ou menos latentes, produzidos quando de sua origem e consolidação inicial. O signo linguístico possui espécie de patrimônio genético que resiste a se metamorfosear plenamente.

Em uma sociedade patriarcal, a língua assume aparência e conteúdo patriarcal. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Friedrich Engels lembra que, antes mesmo da gênese da sociedade classista, a primeira forma de opressão que surgiu na face da terra foi a do homem sobre a mulher.

Apesar do critério sexual ser parte integrante de outras variáveis sociais — classe, idade, profissão, etc. — a origem patriarcal da maioria as civilizações deixou marcas concretas, profundas e multifacetadas na estrutura e no uso da grande maioria das línguas do mundo.

Na maioria das línguas, o gênero feminino dissolve-se por detrás do masculino, expressando ideologicamente a ocultação patriarcal objetiva da mulher pelo homem. Assim, naturalizado no uso costumeiro e abrangente, sintético e neutro do gênero masculino, impõe sua essência social, reforçando as relações e dominação patriarcal do mundo real.

Causa de muitas dificuldades e ambiguidades comunicativas, a absorção do gênero gramatical feminino pelo masculino não constitui fenômeno linguístico lógico, natural e universal, ainda que assim se apresente para a consciência da imensa maioria dos locutores. O caráter quase geral desse fenômeno é apenas um dos elementos mais visíveis da dominação geral e milenar das mulheres pelos homens.

A língua evolui mais lentamente que o mundo social. Apesar da discriminação sexual estar em processo de regressão relativa nas sociedades mais "desenvolvidas", a maioria das línguas continua apresentando as marcas linguísticas dessa opressão social e, assim o fazendo, fortalecendo-a inexoravelmente.

Marx e Engels pensavam também nas mulheres ao conclamarem os "Proletários de todo o mundo" a se unirem. Se o chamamento tivesse sido "Proletárias e proletários de todo o mundo, uni-vos!", certamente exerceria influência mais profunda, por mínima que fosse, na organização das mulheres e na luta contra o sexismo no interior e no exterior do mundo do trabalho.

São marcas gritantes do sexismo linguístico as dissimetrias entre os gêneros masculino e feminino "que se escondem no sentido de palavras aparentemente simétricas" [YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes. Paris: Payot, 1992. et passim]. Em muitas "grandes" línguas — é o caso do francês — termos relativos à profissão, funções públicas, cargos, etc., não possuem femininos e, quando os possuem, em geral masculino e feminino são conotados diversamente.

Os grandes dicionários de português do Brasil ensinam, por exemplo, que a costureira é a "mulher que costura amadorística ou profissionalmente, especialmente roupas sociais", enquanto que o costureiro é "aquele que atua profissionalmente na costura" ou "que dirige confecção de alta costura, criando roupas e acessórios exclusivos e originais, expostos por modelos em desfiles, geralmente glamourosos, cobertos pela imprensa mundial". A mesma dissimetria envolve a dupla lexical cozinheira-cozinheiro [HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.]

Constitui também vestígio exemplar da condição social entre homens e mulheres a falsa simetria entre os próprios conceitos de homem e mulher. Em todas as línguas românticas, o termo usado para designar o ser humano de sexo masculino — vir em latim — passou a ser identificado com o vocábulo que designava a espécie humana -homo.

Nos dicionários, a palavra homem, no sentido de ser humano do sexo masculino, costuma ser conotado com traços fortemente valorizados — coragem, determinação, vigor sexual, força física e moral, etc. O termo raramente é associado à união com a mulher. Para tal, a língua dispõe de outro signo: marido.

Ao contrário, o termo mulher é fortemente polissêmico, servindo tanto para referir-se ao ser biológico — no qual são centrais as características ligadas à reprodução da espécie — quanto à companheira conjugal ou amante do homem, assumindo parte de sua significação no contexto de relação/dependência ao seu termo oposto — homem.

As conotações habituais e os campos semânticos aos quais o vocábulo mulher é associado relacionam-se sobretudo com sexo, beleza física e traços pouco valorizados — fraqueza, leviandade, etc. [Houaiss, ibdem]. Nesse sentido, a língua encobre o fato de que a  mulher foi submetida pelo homem devido à capacidade produtiva e reprodutiva, e não a uma pretensa inferioridade natural.

O ser humano faz a sua história tendo consciência quando muito apenas parcial do que faz. No mesmo sentido, se produz a linguagem com um grau de consciência muito muito limitado de sua construção e conteúdo. Nos fatos, se a essência e a aparência dos fenômenos sociais coincidissem, as ciências sociais seriam desnecessárias. Apenas através da crítica racional e científica pode-se desvelar, mais e mais, os significados e os conteúdos profundos dos fenômenos do passado e do presente.

 
dezembro, 2012
 
 
 
Nina Rizzi (São Paulo/SP, 1983). Escritora, vive atualmente em Fortaleza/CE. Formada em Artes Dramáticas e História, especialista em Arte-educação e mestranda em Letras. Participa de diversas antologias, revistas e suplementos literários. Arrisca-se em traduções do espanhol e francês e em videopoemas. É uma das escritoras suicidas [www.escritorassuicidas.com.br]. Lançou em 2012 tambores pra n'zinga, pelo selo Orpheu/ Ed. Multifoco.  Edita a Revista Ellenismos — Diálogos com a Arte [http://http://ellenismos.com], e escreve seus textos literários no quandos [http://ninaarizzi.blogspot.com].