Cédula de identidade de Juan Carlos Onetti

 
 
 
 
 
 
 
 
  

 

Y el pan nuestro

 

Sólo conozco de ti

la sonrisa gioconda

con labios separados

el misterio

mi terca obsesión

de desvelarlo

y avanzar porfiado

y sorprendido

tanteando tu pasado

Sólo conozco

la dulce leche de tus dientes

la leche plácida y burlona

que me separa

y para siempre

del paraíso imaginado

del imposible mañana

de paz y dicha silenciosa

de abrigo y pan compartido

de algún objeto cotidiano

que yo pudiera llamar

nuestro

 

 

E o pão nosso

 

Só conheço de ti

o sorriso monalisa

com lábios separados

o mistério

minha teimosa obsessão

por desvendá-lo

e avançar obstinado

e surpreendido

tateando seu passado

Só conheço

o doce leite de seus dentes

o leite brando e zombeteiro

que me separa

e para sempre

do paraíso imaginado

da impossível manhã

de paz e da felicidade silenciosa

de abrigo e pão compartilhado

de algum objeto cotidiano

que eu pudesse chamar

nosso

 

 

 

Querida Litty

 

Desde hace meses

con inusitada frecuencia

no me deja el cartera cartas tuyas.

Será amnesia del hombre

o tal vez las apile

en un rincón limpio

de su cuarto de soltero

solterón

y algún día me las traiga

cinta rosa

todas juntas

como un banquete

para el olvidado hambriento

que puede imaginarse

desde ahora

una clara catarata

de ternuras y recuerdos.

 

 

Querida Litty

 

meses

com inusitada frequência

não me deixa o carteiro cartas tuas.

Será amnésia de homem

ou talvez as empilhe

em um canto limpo

de seu quarto de solteiro

solteirão

e em algum dia me traga

numa fita rosa

todas juntas

como um banquete

para o esquecido faminto

que se pode imaginar

desde agora

uma clara catarata

de ternuras e recordações.

 

 

 

Balada del ausente

 

Entonces no me des un motivo por favor

No le des conciencia a la nostalgia,

La desesperación y el juego.

Pensarte y no verte

Sufrir en ti y no alzar mi grito

Rumiar a solas, gracias a ti, por mi culpa,

En lo único que puede ser

Enteramente pensado

Llamar sin voz porque Dios dispuso

Que si Él tiene compromisos

Si Dios mismo le impide contestar

Con dos dedos el saludo

Cotidiano, nocturno, inevitable

Es necesario aceptar la soledad,

Confortarse hermanado

Con el olor a perro, en esos días húmedos del sur,

En cualquier regreso

En cualquier hora cambiable del crepúsculo

Tu silencio

Y el paso indiferente de Dios que no ve ni saluda

Que no responde al sombrero enlutado

Golpeando las rodillas

Que teme a Dios y se preocupa

Por lo que opine, condene, rezongue, imponga.

No me des conciencia, grito, necesidad ni orden.

Estoy desnudo y lejos, lo que me dejaron

Giro hacia el mundo y su secreto de musgo,

Hacia la claridad dolorosa del mundo,

Desnudo, sólo, desarmado

bamboleo mi cuerpo enmagrecido

Tropiezo y avanzo

Me acerco tal vez a una frontera

A un odio inútil, a su creciente miseria

Y tampoco es consuelo

Esa dulce ilusión de paz y de combate

Porque la lejanía

No es ya, se disuelve en la espera

Graciosa, incomprensible, de ayudarme

A vivir y esperar.

Ningún otro país y para siempre.

Mi pie izquierdo en la barra de bronce

Fundido con ella.

El mozo que comprende, ayuda a esperar, cree lo que ignora.

Se aceptan todas las apuestas:

Eternidad, infierno, aventura, estupidez

Pero soy mayor

Ya ni siquiera creo,

En romper espejos

En la noche

Y lamerme la sangre de los dedos

Como si la hubiera traído desde allí

Como si la salobre mentira se espesara

Como si la sangre, pequeño dolor filoso,

Me aproximara a lo que resta vivo, blando y ágil.

Muerto por la distancia y el tiempo

Y yo la, lo pierdo, doy mi vida,

A cambio de vejeces y ambiciones ajenas

Cada día más antiguas, suciamente deseosas y extrañas.

Volver y no lo haré, dejar y no puedo.

Apoyar el zapato en el barrote de bronce

Y esperar sin prisa su vejez, su ajenidad, su diminuto no ser.

La paz y después, dichosamente, en seguida, nada.

Ahí estaré. El tiempo no tocará mi pelo, no inventará arrugas, no me inflará las mejillas

Ahí estaré esperando una cita imposible, un encuentro que no se cumplirá.

 

 

Balada do ausente

 

Então não me dê um motivo, por favor,

Não dê consciência à nostalgia,

Ao desespero e ao jogo.

Pensar-te e não ver-te

Sofrer em ti e não alçar meu grito

Ruminar sozinho, graças a ti, por minha culpa,

No único que pode ser

Inteiramente pensado

Chamar sem voz porque Deus quis

Que se Ele tem compromissos

Se Deus mesmo te impede contestar

Com dois dedos a saudação

Cotidiano, noturno, inevitável

É necessário aceitar a solidão,

Confortar-se irmandado

Com o cheiro de cachorro, nesses dias úmidos de sul

Em qualquer regresso

Em qualquer hora mutável do crepúsculo

Teu silêncio

E o passo indiferente de Deus que não vê nem saúda

Que não responde ao chapéu de luto

Golpeando os joelhos

Que teme a Deus e se preocupa

Pelo que opina, condena, resmunga, impõe

Não me dê consciência, grito, necessidade, nem ordem.

Estou nu e longe, o que me deixaram

Girou para o mundo e seu segredo de musgo,

Até a claridade dolorosa do mundo,

Nu, sozinho, desarmado, rolou meu corpo magro

Tropeço e avanço

Aproximo-me talvez de uma fronteira

A um ódio inútil, à sua crescente miséria

E tampouco é consolo

Essa doce ilusão de paz e de combate

Porque a distância

Não é já, se dissolve na espera

Graciosa, incompreensível, de ajudar-me

A viver e esperar.

Nenhum outro país é para sempre

Meu pé esquerdo na barra de bronze

Fundido com ela.

O moço que compreende, ajuda a esperar, acredita que pode ignorar.

Aceitam-se todas as apostas:

Eternidade, inferno, aventura, estupidez

Mas sou maior

Já nem sequer creio

Em romper espelhos

Na noite

E lamber o sangue dos dedos

Como se tivesse traído desde lá

Como se a salobra mentira se engrossasse

Como se o sangue, pequena dor afiada,

Aproximasse-me ao que resta vivo, brando e ágil.

Morto pela distância e o tempo

E eu a perco, dou minha vida,

Mudo de velhices e ambições alheias

Cada dia mais antigas, vilmente desejosas e estranhas.

Voltei e não voltarei, não posso cair.

Apoiarei o sapato na viga de bronze

E espero sem pressa sua velhice, sua singularidade, seu minúsculo não ser.

A paz e depois, afortunadamente, em seguida, nada.

Lá estarei. O tempo não tocará meu pelo, não inventará rugas, não me inchará as bochechas

Aí estarei esperando uma nomeação, um encontro

Que não se cumprirá. 

 

 

 

UM CONTO INÉDITO DE JUAN CARLOS ONETTI

 

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ONETTI, Juan Carlos. Cuentos, artículos y miscelánea. In: Obras Completas III.
Barcelona: Galaxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 2009. Trad. Nina Rizzi.

 

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Eva Perón

 

i

 

De modo que ali estávamos amontoados e relativamente imóveis, olhando através das janelas as dissimulações, revelações, leves intoxicações de olhos inimigos, conversando com astúcia, com simulada ênfase, tateando entre as frases vagas e nosso vazio adequado por onde ia a deslizar o toque do telefone negro, trazido até o centro da mesa redonda que cercávamos, respeitando e amaldiçoando como um deus.

 

Falsamente lentos, mecânicos, analisando falatórios, deduções, pressentimentos, mais numerosos à medida que iam crescendo as noites, quase nos entorpecendo na sala enquanto chegava do vizinho de baixo o ruído de dilúvio das máquinas de escrever e, mais tarde, quando o único morto era a esperança da morte adiada e esquiva. A agitação da imprensa anunciava outra edição d'O Liberal sem nota de luto, nem fotografia da Senhora, nem o editorial já escrito por mim, que falava de truncamento, inescrutáveis desígnios, caridade cristã e perene exemplo luminoso. O editorial havia sido feito, semanas atrás, quando começou uma manhã cínica, alcoólica e insone; eu incomodado pelo casaco e as luvas, colocados sob os enormes retratos severos, protetores, de meu pai e meu avô. Muitos mais, e também de passos desconhecidos, nas horas noturnas, abandonadas à superstição de que a história se escreve à noite e às três da manhã morrem todos os doentes. Assim, naqueles dias, a imprensa começava a funcionar às quatro, às três, para deixar uma hora de espaço, de chance, à notícia que não queria chegar. E a Maria Inês só a acariciava no cochilo — cuidados como a um feto agitado — com fúria escorregadia e imaginativa, buscando apaziguar nela, nas sempre recém-nascidas velhas sabedorias mútuas, a inquietude de cada longa espera anterior, apalpando suas ancas, cega, a forma, os ossos de seu rosto. E também lá, junto da cama, sempre, outro telefone que não queria falar; e distantes, do outro lado da cidade, no Palácio do Governo em frente à Praça Brausen com seus canteiros cinza e brilhantes, com seus discutidos cavaleiro e cavalo que avançavam impávidos através da chuva e o frio e a ausência de pombas, a Senhora, já morta, que não se queria morrer.

 

O inverno sem fim, o pensamento luxurioso nas tardes ansiosas das esperas noturnas. Até que iniciei, para me distrair, os ataques zombeteiros a Mauri, ditos corretamente em minha melhor linguagem editorial traduzido do galego pela minha cortesia.

 

— Há momentos em que duvido não só de tão lamentado fim da Senhora, mas também da mesma existência de nossa primeira dama. Abandonando-me, também desacredito da Santa Maria, capital novinha em folha. Não há nada fora desta sala onde um grupo de dementes faz a guarda noite após noite, a uma garrafa e um telefone. Naturalmente, tampouco estão os gringos da frente se esquentando com o verdadeiro uísque numa espera infinita. Não há nada, digo, salvo nosso sonho ou pesadelo. Não há, por exemplo, ainda que jurem, um Palácio do Governo. E este palácio, apesar do não-ser, tampouco contém um sepulcro com seus inevitáveis agonizantes, médicos estrangeiros, enfermeiras, morfina e máscara de oxigênio. Nada. Olhando bem, só nos resta a conspiração catalã tramada pelo ingênuo Mauri; ingênuo que se permitiu criar uma quinta coluna, também rigorosamente separatista, batizada caprichosamente com o nome de Bosh, suposto médico catalão, embalsamador por venturosa vocação e, como corresponde a seu nome emboscado para glória d'O Liberal em algum suposto corredor labiríntico do já desvirtuado Palácio do Governo.

 

Falei somente por excitação e curiosidade. Uma noite depois Mauri me trouxe a Bosch.

 

 

 

ii

 

Bosch entrou em uma pequena fração de minha vida, das incontáveis lembranças, não, como eu esperava como teria sido harmonioso e razoável, em uma das úmidas madrugadas de hipnotismo rodeando o telefone e a garrafa. Também acreditava, suponho, nas horas fundamentais da noite e da madrugada, também eu temia ser surpreendido se abandonava a guarda já envelhecida em um mês, dos instantes escuros, pontualmente repetida de sol a sol.

 

Entrou em meu escritório, precedido por um Mauri sorridente e irônico, às seis da tarde, com vento, chuva e frio, de um dia sem data daquele junho implacável, de expectativas e talvez definitivo que havia sido disposto para Santa Maria e nós. Alto, fraco, um pouco curvado para olhar melhor por cima dos óculos, negro desde os sapatos até o guarda-chuva gotejante, entrou envolto em um abrigo, mistura convoluta de casaco e capa de chuva, um abrigo grande demais para sua magreza insalubre e pálida. E durante menos de um minuto, durante a cerimônia de apresentação e cumprimentos, no quarto fechado, e quente pelo aquecedor, o abrigo escuro, misteriosamente flutuante e agitado, reproduziu, quase lascivo, a paisagem dura de frio do vasto largo, da cidade da província e o inverno.

 

Sentado, mas com alguma distância, como cercado e defendido por uma fronteira invisível, por um circulo imaginário de giz, Bosch, médico e embalsamador, fornecedor exclusivo de S.M., estirou seu sorriso misterioso, e abaixou seu queixo para do cigarro que estava fazendo. Levantou depois, sobre o fumo, uma mão grande e forte

 

— Espere — disse —, espere um momento.

 

Eu não havia lhe perguntado nada, Mauri estava com as pernas cruzadas, silencioso e feliz. O embalsamador, com o cigarro malfeito na boca, esteve me olhando um momento, o tempo justo para ficar sem sorriso e oferecer em troca uma expressão humilde e entristecida, uma cara grande absurdamente branca, chupada, na qual os pequenos olhos míopes, nublados, ofereciam sinceridade em troca de compreensão. E quanto aos olhos, o doce filho da puta já os tinha usado para impor o hábito da palavra senhor em diálogos ou monólogos.

 

— Espere — repetiu, e o resto do que disse pode ser, com maior ou menor exatidão, assim: — Tenho que lhe dizer, antes de tudo, compreenda e perdoe que não posso esquecer nem um momento, e estou seguro, senhor, de que você tampouco, suspeita disso tudo. Mauri? Sim, claro. O Mauri já pode chamar amigo e eu dei minha palavra e, através dele para você. Estou minucioso, vivo, em estado de alarme, não durmo, espero. Espero. Para mim é sagrado. Vale dizer, as coisas são sagradas. Eu disse cinco mil, ou Mauri disse. Não posso mudar a fábrica da casa, há sempre três portas que me separam da sala. Ah, tampouco posso, seria impróprio, pedir que me mudem o dormitório. E é verdade que minha atenção se divide entre a suspeita dos ruídos e as vozes e o telefone para avisar a você. Sim, senhor, já me falou Mauri sobre reuniões centradas por outro telefone. Já está dito. Primeiro no mundo d'O Liberal. Cinco mil. Mas não falava disso. Quando falei do que suspeitava disso tudo... Apenas, raras vezes, faço espiar e olhar. E graças a uma das mulheres. Sou um homem de ciência, mas não deixo, senhor, de ser um homem seco. — Então extraiu os folhetos de propaganda que havia trazido no indeciso abrigo, agora sem gestos, e os pulsos em cima da escrivaninha para simular de imediato o desinteresse e o esquecimento. — Dezenas de vezes, e com invariável sucesso, pratiquei a intervenção que me trouxe a Santa Maria, para o que fui chamado. Meu nome é conhecido, sem vaidade, em todo o mundo. Não me ofereci, senhor, não estive buscando esta oportunidade. Chamaram-me e vim. Um convite, um pedido oficial. Não, não me fale, eu rogo, dos faraós. É um erro comum e você, senhor, não tem porque se desculpar. Muitas outras pessoas se obrigam, a saber, mais por disciplina e vocação, claro são relações absurdas. Não há tal. Como me falaram de Jíbaro1, Amazonas e o Orinoco. Como se eu improvisasse antes de você teorias e opiniões sobre Bodoni 2  e Memphis. Você, senhor, sabe melhor. — Fez-nos interromper para enrolar, lamber e acender outro cigarro. — O que comovia era vê-la agonizar com um pássaro, a pobre, tão consumida e rodeada em vão. Quase toda de pele e ossos, nervos, cartilagens, cordões que foram músculos. Tão nua e grave, senhor, que não devo demorar muito para buscar e lhe dar a primeira injeção sempre que não tramam, me escondam ou enganem.

 

Quando se colocou de pé o mau tempo se instalou outra vez no escritório, agitando a infelicidade do abrigo negro. Fiquei como um rato com Mauri e os folhetos que não quis tocar. Fiquei, ademais, lutando sem forças contra o arrependimento de ter buscado o rosto e as palavras do embalsamador, contra a convicção torturante de não compreender, lá no fundo, debaixo dos pobres homens e a farsa sem sentido de seus atos e suas diferentes formas de ser.

 

 

 

iii

 

Por que todos, nós e os que tomam uísque nos escritórios, limpos, pelas ruas, estávamos juntos na competição de conseguir a notícia com uma vantagem de minutos. Eles eram vinte e milionários; nós confiávamos em astúcias, trapaças, palpites. Eles, nós e todo o mundo esperávamos a notícia com impaciência purificada de sentimentos. Nada mais que isso, sempre éramos os primeiros.

 

A Senhora, a mulher do Governador Mandamás estava morrendo. Era, já, uma agonia, uma morte de seis meses. Todos os diagnósticos haviam falhado, todos os segredos foram substituídos, nada mais eram que firmes promessas, novas datas definitivas, postergações. A Senhora, já morta, não se movia, não se morria; e os empregados de Mandamás haviam feito, à força de revólveres e patadas, o milagre de suprimir não só a morte, antes também sua enfermidade.

 

O calunioso câncer não passava de um resfriado, pego de um quase inverno. E na verdade converteram o milagre em algo admirável. Por que toda a cidade pode vê-la ao meio-dia de domingo se inclinando para fora do grande balcão do Governador e saudar, tocada por um sol intempestivo. Estava apenas resfriada e com um braço de marionete, lento, desanimado, contestava os aplausos e os gritos junto ao sorriso brilhante de Mandamás. Estava envolta num casaco de visón; os entendidos sabiam também que estava cheia de morfina.

 

 

 

Notas

 

1 Termo comumente usado em Porto Rico para designar a montanha-moradia de camponeses, mais atualmente não só a montanha, mas toda sua cultura.

 

2 Bodoni é o nome de uma fonte tipográfica, criada por Giambattista Bodoni, considerado um dos maiores tipógrafos do Século XVIII.

 

 

 

 

ORIENTAÇÕES FILOSÓFICAS – FRAGMENTOS DE JUAN CARLOS ONETTI

TRAD. NINA RIZZI

 

Los lugares

 

— Usted puede ir a Santa María cuando quiera. Y sin que nada le cueste, sin viaja siquiera. Escuche: ... Brausen. Se estiró como para dormir la siesta y estuvo inventando Santa María y todas las historías. Está claro.

— Pero yo estuve allí. También usted.

— Está escrito, nada más. Pruebas no hay. Así que le repito: haga lo mismo. Tírese en la cama, invente usted también. Fabríquese la Santa María que más le guste, mienta, sueñe personas y cosas, sucedios.

 

 

 

Mapa de Santa María de Onetti

 

 

Os lugares

 

— Você pode ir à Santa María quando quiser. E sem que nada te custe, sem viajar sequer. Escute: ... Brausen. Estirou-se como para dormir a sesta e esteve inventando Santa Maria e todas as histórias. Está claro.

— Mas eu estive ali. Você também.

— Está escrito, nada mais. Provas não há. Assim, repito: faça o mesmo. Atire-se na cama, invente você também. Fabrique a Santa Maria que mais goste, enquanto sonha pessoas e coisas e acontecimentos.

 

 

 

El decálogo

 

A Onetti le resultaba ridículo que lo llamaran "Maestro". Sin embargo, cuando se lo pedían, daba consejos a escritores (jóvenes o no, con o sin registro de esta profesión en el pasaporte). Siempre con la ironía y la sabiduría que lo separaban del pedantismo y la pompa profesoral.

 

Tal vez intuyendo el aire malo de las bibliotecas climatizadas de nuestros días, la presión del tiempo u otros inconvenientes de los lectores con ambiciones de escribir, resumió la esencia de sus "lecciones" en once consejos cortos y persistentes:

 

 

Decálogo más uno, para escritores principiantes

 

I. No busquen ser originales. El ser distinto es inevitable cuando uno no se preocupa de serlo.

II. No intenten deslumbrar al burgués. Ya no resulta. Éste sólo se asusta cuando le amenazan el bolsillo.

III. No traten de complicar al lector, ni buscar ni reclamar su ayuda.

IV. No escriban jamás pensando en la crítica, en los amigos o parientes, en la dulce novia o esposa. Ni siquiera en el lector hipotético.

V. No sacrifiquen la sinceridad literaria a nada. Ni a la política ni al triunfo. Escriban siempre para ese otro, silencioso e implacable, que llevamos dentro y no es posible engañar.

VI. No sigan modas, abjuren del maestro sagrado antes del tercer canto del gallo.

VII. No se limiten a leer los libros ya consagrados. Proust y Joyce fueron despreciados cuando asomaron la nariz, hoy son genios.

VIII. No olviden la frase, justamente famosa: 2 más dos son cuatro; pero ¿y si fueran 5?

IX. No desdeñen temas con extraña narrativa, cualquiera sea su origen. Roben si es necesario.

X. Mientan siempre.

XI. No olviden que Hemingway escribió: "Incluso di lecturas de los trozos ya listos de mi novela, que viene a ser lo más bajo en que un escritor puede caer".

 

 

 

 

O decálogo

 

Para Onetti parecia ridículo que o chamassem "Mestre". No entanto, quando o pediam, dava conselhos a escritores (jovens ou não, com ou sem registro da profissão na carteira). Sempre com a ironia e a sabedoria que o separavam do pedantismo e da pompa professoral.

 

Talvez percebendo o mau ar-condicionado das bibliotecas de hoje, a pressão do mau tempo ou outros inconvenientes dos leitores com ambições de escrita, resumiu a essência de suas "lições" em onze conselhos curtos e contundentes:

 

 

Decálogo e mais um conselho, para escritores principiantes

 

I. Não busque ser original. Ser diferente é inevitável quando não se importa em sê-lo.

II. Não tente impressionar o burguês. Isso não adianta. Ele só se assusta quando lhe ameaçam os bolsos.

III. Não tente complicar o leitor, nem buscar ou reclamar sua ajuda.

IV. Nunca escreva pensando na crítica, em amigos ou parentes, na doce namorada ou esposa. Nem sequer no leitor hipotético.

V. Não sacrifique a sinceridade literária a nada. Nem à política, nem ao triunfo. Escreva sempre a esse outro, silencioso e impecável, que levamos dentro e que é impossível enganar.

VI. Não siga modas, renegue do mestre sagrado antes do terceiro canto do galo.

VII. Não se limite a ler os clássicos. Proust e Joyce foram depreciados quando mostraram o nariz, hoje são gênios.

VIII. Não esqueça a frase, justamente famosa: dois mais dois são quatro; mas e se fossem cinco?

IX. Não desdenhe de temas com narrativas incomuns, qualquer que seja sua origem. Roubada se necessário.

X. Minta sempre.

XI. Não esqueça o que Hemingway escreveu: "Até mesmo trechos de leituras já prontas de meus romances, vem a ser o mais baixo que um escritor pode cair".

 

 

 

El interrogatório

 

 

[Miradas sobre Onetti. Montevideo: 1995, Coord. Omar Prego]

 

¿El principal rasgo de su carácter? — La pereza.

¿La cualidad que desea en un hombre? — La bondad.

¿La cualidad que prefiere en una mujer? — La ternura.

¿Lo qué más aprecia en sus amigos? — Lealtad.

¿Su principal defecto? — Ninguno.

¿Su ocupación preferida? — Leer novelas policiales

¿Su sueño de dicha? — Whisky y una buena novela policial que todavía no he leído.

¿Cuál sería su mayor desdicha? — Superstición. No la nombro.

¿Qué quisiera ser? — Yo, en las condiciones presentes, pero con veinte años.

¿Dónde desearía vivir? — En cualquier sitio, pero de rentas.

¿El color que prefiere? — El rojo.

¿La flor que prefiere? — La rosa amarilla.

¿El pájaro que prefiere? — El gorrión.

¿Sus autores preferidos? — La Biblia, Faulkner, Proust, Céline, Dostojewski, Cervantes, Hemingway.

¿Sus poetas preferidos? — Shakespeare, Walt Whitmann, Pablo Neruda, César Vallejo, Luis Rosales.

¿Sus héroes de ficción? — Los que yo invento

¿Sus héroinas favoritas de ficción? — Las que yo invento.

¿Sus compositores preferidos? — Tchaikowsky, Prokofiev, Beethoven, Ravel, Mozart.

¿Sus pintores predilectos? — Gaugin, Van Gogh, Picasso, Goya, Klee, Braque.

¿Sus héroes de la vida real? — El Che Guevara.

¿Sus héroinas de la vida real? —

¿Su nombre preferido? — María.

¿Que detesta más que nada? — Ver sufrir sin poder hacer nada para remediarlo.

¿Qué caracteres históricos desprecia más? — Los dictadores.

¿Qué hecho militar admira más? — La campaña de Napoleón en Italia.

¿Qué reforma admira más? — Ninguna evitará la muerte.

¿Qué dones naturales quisiera tener? — Hacerme invisible.

¿Cómo le gustaría morir? — De ninguna manera.

¿Estado presente de espíritu? — Resignado.

¿Hechos que le inspiran más indulgencia? — Todo lo que se haga por amor.

¿Su lema? — Que me dejen en paz. 

 

 

Encontrada em exemplar desencadernado de Dejemos hablar al viento.

Barcelona: Bruguera, 1979, 1. ed.

 

O interrogatório

 

 

— A principal característica de seu caráter? — A preguiça.

— A qualidade que deseja em um homem? — A bondade.

— A qualidade que prefere em uma mulher? — A ternura.

— O que mais aprecia em seus amigos? — Lealdade.

— Seu principal defeito? — Nenhum.

— Sua atividade preferida? — Ler romances policiais.

— Seu sonho de felicidade? — Uísque e um bom romance policial que ainda não li.

— Qual seria sua maior desventura? — Superstição. Não a nomeio.

— Quem gostaria de ser? — Eu, nas condições presentes, mas com vinte anos.

— Aonde gostava de viver? — Em qualquer lugar, mas de rendimentos.

— Qual sua cor preferida? — O roxo.

— A flor preferida? — A rosa amarela.

— O pássaro preferido? — O pardal.

— Seus escritores preferidos? — A Bíblia, Faulkner, Proust, Céline, Dostoiévski, Cervantes, Hemingway.

— Seus poetas preferidos? — Shakespeare, Walt Whitman, Pablo Neruda, César Vallejo, Luis Rosales.

— Seus heróis da ficção? — Os que invento.

— Suas heroínas favoritas da ficção? — As que eu invento.

— Seus compositores preferidos? — Tchaikówsky, Prokofiev, Beethoven, Ravel, Mozart.

— Seus pintores prediletos? — Gauguin, Van Gogh, Picasso, Goya, Paul Klee, Braque.

— Seus heróis da vida real? — Che Guevara.

— Suas heroínas da vida real? —

— Seu nome preferido? — Maria.

— O que detesta mais que coisa alguma? — Ver o sofrimento sem poder fazer nada para remediá-lo.

— Que personagens históricos mais despreza? — Os ditadores.

— Que feito militar mais admira? — A campanha de Napoleão na Itália.

— Que reforma mais admira? — Nenhuma evitará a morte.

— Qual dom natural gostaria de ter? — Ficar invisível.

— Como gostaria de morrer? — De maneira alguma.

— Seu atual estado de espírito? — Resignado.

— Feitos que te inspiram mais satisfação? — Tudo que se faz por amor.

— Seu lema? — Que me deixem em paz.

 

 

 

El testimonio

 

 

[La vida breve. Buenos Aires: Sur, 1950]

 

Sobre el escritorio, la fotografía estaba entre el tintero y el calendario; las cabezas de los tres repugnantes sobrinos de la Queca esforzaban sus sonrisas a la espera del momento en que el hombre que me había alquilado la mitad de la oficina — se llamaba Onetti, no sonreía, usaba anteojos, dejaba adivinar que sólo podía ser simpático a mujeres fantasiosas o amigos íntimos — se abandonara alguna vez, en el hambre de mediodía o de la trade, a la estupiez que yo lo imaginaba y aceptara el deber de interesarse por ellos. Pero el hombre de cara aburrida no llegó a preguntar por el origen ni por el futuro de los niños fotografiados. "Lindos, eh" hubiera dicho yo, "la hembrita es delicosa"; y miraría sin pestañar a la muchachita de gran cinta en el pelo y ojos sin inocencia que alzaba el labio superior para toda la eternidad. No hubo preguntas, ningún síntoma del deseo de intimar; Onetti me saludaba con monosílabos a los que infundía una imprecisa vibración de cariño, una burla impersonal. Me saludaba a las diez, pedía un café a las once, atendía visitas y el teléfono, revisaba papeles, fumaba sin ansiedad, conversaba con una voz grave, invariable y perezosa.

 

 

O testemunho

 

Sobre a mesa, a fotografia estava entre o tinteiro e o calendário: as cabeças dos três repugnantes sobrinhos de Queca forçavam seus sorrisos à espera do momento em que o homem que me havia alugado a metade do escritório — se chamava Onetti, não sorria, usava óculos, deixava imaginar que só podia ser simpático a mulheres fantasiosas ou amigos íntimos — se abandonou alguma vez, com a fome do meio-dia ou da tarde, a estupidez que eu o imaginava e aceitara o dever de se interessar por eles. Mas o homem de cara aborrecida não chegou a perguntar pela origem nem pelo futuro das crianças fotografadas. "Lindos, hein", havia dito ele, "a femeazinha é deliciosa"; e olharia sem pestanejar a garotinha de grande fita sobre o cabelo e os olhos sem inocência que aumentava o lábio superior para toda a eternidade. Não houve perguntas, nenhum sintoma do desejo íntimo; Onetti me cumprimentava com monossílabas às quais incutia uma imprecisa vibração de carinho, uma piada impessoal. Cumprimentava-me às dez, pedia um café às onze, recebia visitas e telefonava, revisava textos, fumava sem ansiedade, conversava com uma voz grave, invariável e preguiçosa.

 

 

 

> Imagens, poemas e fragmentos retirados do sítio oficial do escritor:  http://www.onetti.net

 
 
 
 
 
 
maio, 2012
 
 
 
Nina Rizzi (São Paulo, 1983). Escritora, historiadora e arte-educadora. Tem textos e poemas publicados em antologias, nas revistas VacaTussa e La Papa Ruchada (Argentina) e em várias páginas da internet, entre elas, Zunái — Revista de Poesia & Debates, Garganta da Serpente e Balaio Porreta. Faz parte de Dedo de moça, uma antologia das escritoras suicidas (São Paulo: Terracota, 2009). Publicou tambores pra n'zinga (Rio de Janeiro, Multifoco, 2012). Edita os blogues Ellenismos e Quandos, e escreve no Putas Resolutas. É uma das Escritoras Suicidas. Vive em Fortaleza/CE.
 
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