selbstlos im lavabad (selfless in the bath of lava) | pipilotti rist | video still | 1994
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

1 – os motivos

 

Sempre haverá um rompimento

ou uma discussão envenenada.

Por um momento, bem sabemos,

motivo é o que menos há.

 

Sempre haverá uma dor de perda

que só se perdendo para esquecê-la.

E há, sempre há, motivo obscuro

nunca suposto, jamais revelado.

 

Sempre haverá demissão inesperada,

concepção indesejada, inoportuna,

surgida em hora ingrata pela mão de sujeito

sem-nome, sem-vergonha, sem-cara.

 

(Nenhum que justifique ou que explique)

 

 

 

2 – a forma

 

É público, porém limpo —

outros verão o espetáculo,

não aqueles de apreço.

 

(Em casa, o sangue manchará

cortinas, desvalorizará o imóvel.)

 

É público, porém limpo —

outros verão o show, serão

aqueles que por um ou dois dias

deixarão de dormir,

beberão café em excesso,

terão um cigarro queimando os dedos.

 

Serão aqueles que esquecerão logo,

que comentarão via telefone,

especularão pela mãe — pobrezinha! —

e levarão o episódio às manicures.

 

É público, porém limpo.

Logo a ambulância fará o seu serviço

e a chuva ou as varredeiras, o seu.

 

(Em casa, o sangue entupirá

o ralo e excitará o cão.)

 

 

 

3 – o viaduto

 

a) Demolir seria insano, já que é via importante que oxigena o corpo da cidade. Demolir seria por fim a engenharia respeitável, amputando a paisagem. Bem sabemos que sempre haverá outros métodos a serem utilizados: a corda e a faca preenchem o cardápio.

 

Demolir seria insano, já que é veia vital que irriga o coração da cidade. Demolir seria incinerar o dinheiro do contribuinte, aleijando o cenário. Bem sabemos que sempre haverá outras formas convidando ao ato: revólver dormindo debaixo do travesseiro, mata-rato na prateleira final do supermercado.

 

b) Policiar se mostra inútil — seria o mesmo que montar base sobre os ossos dos cavalos ou à estátua de um elefante cinzento.

 

Policiar se mostra inútil, posto que se trata de região rica em possibilidades: os rios convidam ao afogamento e as margens barrentas à decomposição.

 

E quando tudo estiver sitiado, sobre a cômoda uma dezena de comprimidos da mãe.

 

 

 

4 – a rota

 

Nenhum semáforo que avermelhe

ou placa de trânsito que obrigue

 

(O sol

projetando a sombra)

 

Caminho pouco imaginativo

de paisagem em baixa resolução

 

(O vento

desmanchando o penteado)

 

 

 

5 – instante

 

Último pensamento

incapaz de ser compartilhado

pela brutalidade do pouso:

              nada é mais belo que o pôr-do-sol

                    dourando as bordas do abismo.

 

 

 

 

 

Razão

 

 

De forma embrionária carreguei esse poema por mais de um ano. Sua história teve como estopim o fato de uma garota ter decidido pôr fim a sua vida, saltando de um conhecido viaduto da cidade. Não era a primeira vez que eu havia escutado sobre pessoas que utilizavam o local para esse fim, mas sempre me causava um arrepio tal notícia. Eu conhecia bem o local, desde a minha infância era ponto de referência comum, por ali eu transitava semanalmente.

Diante das notícias peguei um caderno e rabisquei a parte 3, sobre o viaduto em si. Nunca escrevo à mão, no entanto estava na faculdade, em sala de aula, quando a notícia me atingiu. Essa parte foi escrita em minutos, pois era dia de prova e não havia tempo para nada. Fechei o caderno e me esqueci do poema.

Um ano mais tarde, por um acaso, um amigo comentava sobre a menina suicida — que havia sobrevivido saindo do ocorrido com alguns arranhões e uma fratura na bacia. Lembrei-me do poema e corri em busca de meus cadernos — já havia terminado o curso e, possivelmente, pensava, tudo teria ido para o lixo. Por sorte encontrei-o.

Em minutos escrevi o restante do poema como se ele estivesse maduro em minha cabeça, palavra por palavra, sem dificuldade alguma. As especulações que compõe a primeira parte são basicamente as considerações que ouvi sobre o ocorrido.

De forma geral, a única parte que escrevi afastado do fato em si, com uma intenção puramente estética, foi a quarta parte, que narra o percurso da garota de sua casa até o ponto onde iria saltar (ou narra o percurso que ela fez do parapeito ao chão?). Achei que o poema merecia uma parte "estética", pois o trecho que trata do viaduto se formou como uma massa concreta, sólida — como o viaduto. Pareceu-me de bom tom um trecho mais fluído, em queda, mais veloz, contrastando.

 

março, 2011
 
 
 
 
L. Rafael Nolli (Araxá-MG). Poeta, publicou Memórias à beira de um estopim, 2005. Escreve o blogue Stalingrado III.
 
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