ÚLTIMA CINZA DA SOLIDÃO

 

Misturado às colombinas,

sem pieguice

encontrei o único

pedaço inquebrável

da solidão

que o pierrô desvairado

não estraçalhou.

 

Me perdi

na folia da noite,

e só quando as cinzas

no ar

prenunciavam

o término

da infeliz diversão

quebrei a última

metade de mim

que não era alegre:

a máscara de folião.

 

[Do livro Eu, entre nós, 2003]

 

 

 

 

 

 

travo

brigas

contra

as trevas

em teu olhar

 

tranco-nos

à chave

lá fora

sob as chuvas impiedosas

e o fogo cerrado

 

não há trégua!

 

os raios

nos apartam

em vis metades

 

parcas

porções,

singro

por tuas veias

sem fundo

nem poço

a um passo

das nuvens

 

sangro!

 

aí, tu

vens

nu

e me estragas

em postas

aos cães

e às onças

da esquina

 

VÍSCERAS

 

 

 

 

 

 

fostes generosa:

não mandavas

eu me foder;

 

tu me fodias

 

VIDÃO

 

 

 

 

saiba, Sabiá, assobiar

um samba

qualquer

ou

nem adianta

abrir as asas:

irás ao abate

sem as bênçãos de Abaeté

 

tua sina é ser declamado,

eterno hino

deste país depenado

 

assobia, Sabiá, um sambinha

pra essa gente aprender também

a voar

 

CANÇÃO DO ESPÓLIO

 

 

 

 

 

Ferem-me

O gume das facas

Os gomos das frutas

A goma das fezes

 

FOME

 

 

[Do livro Mordendo as lábias, 2008, em que os títulos dos poemas aparecem ao final]

 

 

 

 

 

 

 

quando for meia-noite

eu te quero

 

                   oferenda

                   sagração

 

quando

         for

minha noite

 

 

 

 

 

 

 

furacão

de quinta categoria,

devastas

as penínsulas

do meu corpo

e me abandonas

em escombros,

em estados

de desatenção,

de calamidade privada!

 

 

 

 

 

 

 

mãos tépidas

boca estúpida

 

sex appeal de poste

em tardes de inverno

 

 

 

 

 

 

 

ainda não estou

quite com a vida

nem ao gosto dos fregueses

 

peço

encarecidamente

descaradamente:

 

se eu morrer na praia

me atirem aos tubarões e sardinhas

 

se eu morrer na praça

me atirem aos corvos e andorinhas

 

serei mais útil

ao me fundir à bosta

de peixes e pássaros

do que se fertilizar

um cova

tornando-me estrume

de vermes

 

por enquanto

por descaso

me deixem

crustáceo

incrustado

     às pedras

     e aos podres

              pormenores

desta vidinha besta

 

BANQUETE VIL

 

 

 

 

 

 

 

a princesa mimadinha

sentiu nojo do sapo

 

pecado!

 

viveu infeliz

por todos os séculos sem fim

                       amém

 

CUENTO SIN FODA

 

 

 

 

 

talvez

eu me atire

pra vida

como bala de coco,

desamparo certo

nos fins da última festa

de minhas infâncias

 

      talvez

eu me arrisque

a dançar

uns passos em falso

pra celebrar

minhas infâmias

 

quando estiver

mais pra lá do quiproquó

 

 

[Do livro Sururu com Coca-Cola, inédito, títulos ao final]

 

 

 
 
setembro, 2010
 
 
 
 

 

Luciano Serafim (Maceió/AL, 1977). Vive em Dourados/MS desde 1994, onde cursou Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados. Publicou os livros Eu, entre nós (poemas, 2002), Outro dia a gente sai (contos, 2003), Mordendo as lábias (poemas, 2008) e Curumim de asfalto (infantojuvenil, 2009). Atualmente, finaliza um novo livro de poemas, Sururu com Coca-Cola.

 

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