quando a cortina do teatro se abrir e a platéia irromper em aplausos Ela estará nua no quarto ou no que o cenógrafo alcoólatra imaginou ser um quarto talvez apenas a cama o abajur e a penteadeira então é isso esse mesmo o início da peça: abre-se a cortina e Eu estou nua no palco de costas pro público e de frente pra um espelho vejo as pessoas através do reflexo e finjo me assustar com as palmas Ela vira-se mostrando o púbis recém depilado não melhor só aparar o delta delineando o triângulo que excita multidões é e se houver na platéia algum tarado que morra de tesão por púbis raspados que mora logo de uma vez porque isso é apenas o início do meu espetáculo e minha nudez de púbis triangular é a única coisa óbvia que existirá pra cativar o público por aquilo que ele é acostumado a ver aplaudirão porque Ela é belíssima famosa e está nua já me viram nua nas revistas nas novelas nos filmes mas vê-la nua quase palpável ali no palco deve ser uma emoção muito mais emocionante e vai atrair público sim palpável quase? e se algum tarado subir ao palco e vier me agarrar? precisarei contratar seguranças para tal eventualidade de preferência uns homens fortões negros dizem que eles têm o pau grande eu não sei em tantos anos de profissão Ela nunca transou com um negro mais uma falha no seu currículo e no ânus também para se fazer logo uma analogia barata mas agora voltemos à peça teatral Ela se vira para o público e assustada por flagrarem-na nua na intimidade do seu quarto pega uma toalha ou lençol ou travesseiro que esteja por ali e se cobre espera "amedrontada" os protestos e aplausos terminarem não deve incorrer no erro de se exibir cobrindo e descobrindo o corpo feito uma puta qualquer deve sim manter-se surpresa pois é uma personagem atormentada como se verá no decorrer da peça ao cessarem os protestos ou aplausos correrá para o banheiro à coxia do teatro não é melhor antes no auge da ovação Ela saíra correndo para o banheiro e só retornará quando o público se acalmar tomara que não demore muito né? volto olhando pra todos os lados? Ela quer se certificar de que os intrusos foram embora a platéia então estaria quieta educadíssima à espera do drama que seguirá daí Ela retorna ao quarto e uma parede desbotada encobriu as pessoas Eu me sento na cama de molas que rangem e além de mim só o espelho está aqui e pela janela aberta entra o vento frio dessas noites de julho em São Paulo e as luzes da avenida não iluminam nem um cartaz me anunciando a espetacular Mirabella e nem no prédio em frente há nenhum moleque loiro tarado me espionando por uma luneta como nos filmes e Eu tenho que me vestir e ir rápida pra boate porque o aluguel tá atrasado faz dois meses e meio vou rebolar muito hoje pra ganhar mais gorjetas senão amanhã vou ter que trepar outra vez com o síndico aquele velho peludo nojento que fode bem pra caralho mas me lembra o meu pai que me fodia mal e me expulsou de casa quando minha mãe morreu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como se fosse simples tudo aquilo. Ela disse eu só quero saber a verdade. Soluçava. Os olhos molhados. Vermelhos. Torcia as mãos. Tremia inteira. Eu tinha que ser sincero. É só o que podia fazer. Naquela situação. Ali, exposto. Deveria. Falei nós nunca vamos saber a verdade. Segurando-a pelos ombros. Olhando nos olhos. Para que entendesse. Não duvidasse de mim. Era uma verdade. Embora não fosse a verdade. Real. Me empurrou. E caminhou pela calçada. Eu atrás. Bem perto. Ela cambaleava. Se tropeçasse, eu evitaria a queda. Aquela. As outras quedas não consegui. Entendera o que eu quis dizer? Nem eu aceitava. É fato. Ninguém nunca saberá o que realmente aconteceu. Porque não estávamos lá. Na hora. Dentro do carro. Ou onde estiveram antes de chegar ali. E agora que também chegamos, é impossível saber. Podemos imaginar. Deduzir. Jamais desvendar. Disso tenho certeza. Não me conformo. Me resigno. Ela não. Aproxima-se dos destroços. Agarro-a pela cintura. Outra vez. Seria melhor ela não rever. Já devia estar com as imagens cravadas na mente. Para sempre. Por que olhar tudo de novo? Precisava é esquecer. Ao menos tentar não lembrar. Difícil. Eu sei. Eu mesmo nunca vou conseguir. Me atormento. Mas me controlo. Tento. E ela não. Debate-se. Com força. Grita. Fora de si. Chamando mais a atenção. De todos. Esmurra-me o peito. Quase esbofeteia meu rosto. Seguro-a firme.  Imobilizo seus punhos. Para contê-la. Só aumento sua fúria. Chuta-me a perna. Com o bico do sapato. Fino. Fina, a dor. No osso. Outro hematoma em mim. Roxo. Os demais, invisíveis. Mais dolorosos. Os de hoje em dia. Pedi que se acalmasse. Alto. Severo. Calma?! Ela grita. Eu quero saber o que houve! Senão vou enlouquecer! O que eu podia dizer, então? Não sabia quase nada além do que todos sabem hoje. E não poderia falar. Prometera sigilo. Vou cumprir. Até os nossos fins. Ela já estava mesmo enlouquecendo? Histeria; o médico diagnosticou. Levaram-na numa das ambulâncias. A que chegou tarde demais. E tornou necessária a vinda do rabecão do IML. A primeira socorreu a ele. Sortudo. Até naquela circunstância era um felizardo. O infeliz. Quem é aquela vadia? Ela berrava. Amarrada à maca. Eu vou matá-la! Nem que precise ir ao inferno! Já estávamos vindo. Arder em nossas labaredas. Não sabíamos ainda. Descobrimos há poucas horas. Eu, antes dela. E tolero. Sentiu-se vingada por ocupar a ambulância no lugar da desgraçada? Pois especializou-se em desforras. Desde então. Não percebeu que a acompanhante dele foi dilacerada contra o poste? Aproveitei as brechas no trânsito. Persegui a ambulância até o hospital. Onde ele era preparado para a cirurgia. Urgentemente. Como sempre ordenou a todos. Toda a vida. Até à morte. Horas mais tarde. Hemorragia interna. Meu sangue e o de tantos outros amigos doados em seu nome. Puseram-na num leito da enfermaria. Olhava o ventilador girar no teto. Quando entrei. A histeria já sedada. Segurei-lhe a mão. Esquerda. Fria. Sem tremor. Nenhum. Quis dizer-lhe alguma coisa. Que pudesse confortá-la. Mudo. Permaneci. O que ela queria ouvir eu jamais diria. Nem direi. Tomara que aquele cachorro morra. Ela falou. Mas a voz não parecia a sua. Irreconhecível. Rancorosa. Dolorida. Impassível, ela estava. E permaneceu. Olhos secos. Outra Helena. Nenhuma lágrima mais derramou. Diante de ninguém. Nem no enterro dele. Perdeu o homem que mais amou na vida. Desde a adolescência. Indago-me onde se perdeu a Helena que conhecíamos. E ainda amo. Ficou presa na ambulância? Sedada na enfermaria? Eternamente?! Essa, de hoje, não amo tanto. Mas é a que me restou. Eu, habituado às migalhas. Ex-cunhada. Esposa, agora. Porém, doando-se a vários outros corpos. Além do meu. Tolero. Para sobrevivermos. Trai a ele. Não a mim. Toda cópula, uma ressurreição. Por que se morre? Por estar vivo. Pergunta idiota. Resposta imbecil. Como tudo deveria ser. Sempre. Banal. Como todas as verdades que a gente esconde. Ou ao menos tenta esconder. Até de nós mesmos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Respirou fundo o ar perfumado, à sombra dos cajueiros. Pegou uma fruta do chão, quase podre de tão madura, e atirou nas águas claras do rio Tacuru. Viu-a ser beliscada por um cardume de peixes não muito grandes; a castanha descendo devagar na correnteza. Olhou ao redor, em busca de um bom lugar para sentar. Foi até a margem e, no barranco arenoso, sentou-se.

    Calmamente, espetou uma gorda minhoca no anzol, jogou a linha na água. Alguns pingos frescos o molharam. Sentiu uma estranha sensação de limpeza.     Engraçado... Limpo? Ele, que há menos de meia hora havia sujado para sempre o próprio caráter? Seu olhar mortiço vagou ansioso, mas lentamente, para a outra margem. A areia alva (como deve ser a da praia) já não mostrava suas pegadas. O vento as apagou.

    Três andorinhas brincalhonas voaram rente à água, tomando seu banho vespertino. A linha da vara de pesca teria sido levada rio abaixo, se não estivesse presa. Será que seria preso? Puxou a linha para ver se fisgara algum peixe. A minhoca estava branca, lânguida. Cheirando o aroma dos cajus, colocou um pedaço no anzol e atirou a linha na água novamente. Os pingos que agora o molharam fizeram com que se sentisse sujo. Mas não era ele que estava sujo... Era a água! Toda a água daquele rio! Águas sujas de sangue, águas mortíficas!

    A vara agitou-se. Ele puxou-a violentamente, e uma grande traíra caiu na areia, sujando-a de sangue.

    Apavorado, como se aquilo o denunciasse, atirou o peixe no rio. Foi descendo na correnteza, com uma maré vermelha. Menor do que maré de sangue que seguiu o cadáver de sua mulher rumo ao oceano.

    Querendo dar vida ao que matara, livrar a alma do pecado, saltou no rio; e não nadou.

 

 

 

(imagens ©m/m paris)

 

 

 

 

 

 

Luciano Serafim nasceu em Maceió (AL), em 1977. Mora em Dourados (MS) desde 1994, onde cursa graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Publicou Eu, Entre Nós (poemas em 2002) e Outro Dia a Gente Sai (contos, 2003).