"O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. Nasce do martírio secular da Terra". [Euclides da Cunha, Os Sertões, primeira parte, "A Terra", capítulo V]

 

O deserto inteiro e o sertão só meio:

cá fora o deserto, lá dentro o sertão.

Visto do sertão, o mundo é cancela:

as mãos de Euclides, os peitos de Gabriela.

Ao longo do deserto nem mundo há:

a espada de Lourenço e a cruz de Jerônimo,

um santo no Saara, o rei do sertão.

 

O deserto é perto,

o sertão, distante.

No deserto, a morte,

no sertão, a sorte.

O deserto é porto,

o sertão, estação.

O deserto é uno

e o sertão são vários.

O deserto é mono

e o sertão, estéril.

No deserto, serpente;

no sertão, repente.

No deserto há dunas

e o sertão tem donos.

O deserto amplia

e o sertão reduz.

O deserto, opaco

e o sertão reluz.

 

No deserto, o norte é tudo,

no sertão, bússola é o vento.

O jejum no deserto purifica;

a fome no sertão só mortifica.

Pois no deserto há pureza

e no sertão, escassez.

Se pelo deserto passam,

do sertão se retiram.

 

O deserto é o que se sabe

e o sertão não se conhece.

O deserto é todo igual

e o sertão, tão diferente.

O deserto correto

e o sertão demente.

Num se trama a aventura;

o outro, um fio de vida.

Num toureia-se o medo;

o outro se enfrenta desde cedo.

No deserto, a paz dos místicos

e o sertão é guerra por frutos.

 

O beduíno nômade,

o sertanejo trânsfuga;

o beduíno valente,

o sertanejo, um forte;

o camelo lerdo

e o bode canhestro;

o camelo trôpego

e o bode trêfego.

 

A dança dos véus de Salomé,

os anéis nos dedos de Maria Dea;

a arte caprichosa de Sherazade

e os suspiros rimados de Teodora.

 

Cadê o afago da adaga do beduíno?

E onde o peixe da peixeira do sertanejo?

Cadê o sinal no punhal do beduíno?

E onde o sangue no bornal de Virgolino?

Cadê o ódio no olho do beduíno?

E onde o amor no ombro do sertanejo?

Cadê o sal no pão do beduíno?

E onde o mofo na farinha sertaneja?

Cadê a noz no oásis beduíno?

E onde caju na roça do sertanejo?

Cadê a carga na corcova do camelo?

E onde a canga no costado do jumento?

Onde a água no poço do beduíno?

E cadê a água no pote do sertanejo?

 

No deserto, a palavra do profeta,

no sertão, o sermão do Conselheiro.

Dão bom dia a Alá mirando Meca

e dormem com Cristo lhes rondando o alpendre.

No deserto, areia nos olhos,

e no sertão atire a primeira pedra.

A caravana traça o caminho do beduíno

e a procissão trava o passo do sertanejo.

Sob o sol do deserto e o luar do sertão,

o trapo do eremita e a sombra do taumaturgo.

 

No deserto, o tosco;

no sertão, o brusco.

O deserto é mudo,

o sertão é surdo.

O sertão é fogo,

o deserto fátuo.

No deserto, o brilho;

no sertão, a trilha.

O deserto é palco;

no sertão, o parco.

No deserto se perde

e do sertão se foge.

O deserto salva

e no sertão só sendo.

O deserto é plano,

o sertão é chão.

O deserto é pátria,

o sertão é berço.

O deserto é pálido,

o sertão é sólido.

 

No deserto, amplitude,

E no sertão, a solidão.

 

 
 
setembro, 2010
 
 
 
 

 

José Nêumanne Pinto nasceu em Uiraúna, no sertão da Paraíba, a 18 de maio de 1951. Casado, tem três filhos e dois netos. Poeta, escritor, jornalista e Flamengo até morrer. Recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo Econômico (com Maria Inês Caravaggi) em 1975, pela série "Perfil do Operário Brasileiro Hoje" (Jornal do Brasil) e o Troféu Imprensa de Reportagem Esportiva (com Paulo Mattiussi) em 1975, pela reportagem "Éder Jofre e o Boxe Brasileiro" (Jornal do Brasil). Livros Publicados: Mengele, a Natureza do Mal — Romance-reportagem (São Paulo: EMW Editores, 1985); As Tábuas do Sol — Poemas (João Pessoa: Secretaria da Cultura do Estado da Paraíba, 1986); Erundina, a Mulher que Veio com a Chuva — Perfil biográfico (Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989); Atrás do Palanque — Bastidores da Eleição Presidencial de 1989Reportagem (São Paulo: Siciliano, 1989); Reféns do Passado — Coletânea de artigos e ensaios políticos (São Paulo: Siciliano, 1992); A República na Lama — Uma Tragédia Brasileira — Reportagem (São Paulo: Geração Editorial, 1992); Barcelona, Borborema — Poesia (São Paulo: Geração Editorial, 1992); Veneno na Veia — Romance policial (São Paulo: Siciliano, 1995); Solos do Silêncio — Poesia reunida (São Paulo: Geração Editorial, 1996); As Fugas do Sol — CD do CPC-Umes (São Paulo, 1999, com música original do maestro Marcus Vinicius de Andrade); O Silêncio do Delator — Romance (São Paulo: A Girafa, 2004, Prêmio José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras). Em coautoria: Partidos e Políticos (Rio de Janeiro: Editora JB, 1986); A Constituição que Nós Queremos (Rio de Janeiro: Editora Salamandra, 1988); Jornalismo é... (São Paulo: Zenon, Associação Brasileira de Anunciantes e Associação Brasileira de Imprensa, 1997). Selecionou e apresentou a antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, para a Geração Editorial, 2001. Mais na Estação Nêumanne, aqui: www.neumanne.com.

 

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