A impressão que se tem é que ele, o narrador, apontou o dedo para Deus e o chamou para uma conversa; uma conversa de 'deuses'. Arrumou as almofadas no sofá da sala, preparou o café e a prosa começou: deus, tempo, pensamento, moralidade, palavras são alguns dos 'assuntos' discutidos. Uma discussão que começa com a arrogância de um 'deus' e termina com a humildade de um 'homem' — mais precisamente no ano de 2046, com a morte do narrador — "O mundo já está descoberto; esse mundo parece-me não ser meu mundo", diz ele.

Como deixei de ser Deus (Rio de Janeiro: Topbooks, 2009, 150 páginas),  do escritor Pedro Maciel, conta antes de tudo, a história de um ser humano, que no caso, pode ser o narrador, eu, você, o vizinho ou o autor. É uma mescla dos mais diversos pensamentos já ditos, dos mais diversos anseios e reflexões sobre a vida (incluindo a própria). No meio dos debates, grandes mestres vão 'surgindo' a partir de referências ideológicas e, assim, Nietzsche, Marcel Proust, Dostoievski, Virgínia Woolf, Guimarães Rosa, Machado de Assis entre outros, ficam cara-a-cara na sala do narrador. Este, com toda a sua maleabilidade em argumentar, pensa que a máxima de Sócrates "Só sei que nada sei" já não é tão verdadeira: "Desaprender: ensinar a si mesmo. Quem acredita que nada podemos saber não sabe sequer se sabemos o suficiente para afirmar que nada sabemos." É filosofia, é religião, é sociologia e antropologia, é psicologia, é literatura...

A originalidade caminha em todas as páginas do livro, que apresenta na capa uma sala de decoração vermelha, convidando a pessoa que lê a acomodar-se por ali e aguardar o diálogo que em instantes irá começar. Mas o leitor, recém-chegado ao lugar, nem imagina em quão estranho mundo está prestes a observar. É o mundo do narrador e seus convidados, um planeta desabitado por criaturas de senso-comum; uma região azulada, repleta de crateras e com uma fotografia logo na página 12.

Passar para a folha seguinte é ainda mais intrigante: espera-se por um romance, palavra anunciada na capa, e, quando se fala em romance, pensa-se em histórias povoadas de personagens, situações e conflitos. E é exatamente isso o que Como deixei de ser Deus traz (porém, de uma maneira um tanto quanto diferente). O livro é composto por fragmentos enumerados, pequenas frases soltas interligadas por entrelinhas. A sequência dos números não é sempre perfeita (do 151 passa-se para o 158, por exemplo) e nem mesmo a estrutura dos pequenos períodos gramaticais segue uma 'lógica' (uma máxima pode iniciar-se com reticências ou terminar com elas; pode ainda, ter dois pontos, como em uma citação). Enquanto o lado esquerdo do livro é toda uma página em branco, o outro lado mostra a união das palavras em trechos. Porém, a ordem destes não é tão importante; pode-se começar a ler o livro em qualquer página, em qualquer fragmento, de trás para frente ou até mesmo, de cabeça para baixo (no caso dos mais habilidosos). Um grande romance com textos ocultos; apenas algumas frases à mostra e em destaque (deveria o leitor preencher toda a narrativa?).

Sim, talvez esta seja mesmo a ideia de seu autor. Em determinado momento, o excerto  1321 diz: "Quantos de meus leitores percebem que estes escritos podem ser entendidos da forma que se desejar? A minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro- o que qualquer outro 'não' diz em um livro". A imaginação percorre a cabeça de quem acompanha os 'diálogos'. Pode-se querer saber quem era aquele irmão que "se matou para tornar-se Deus". Também pode haver reflexões em frases como "Por que tanto esforço em ser como eles? Um dia serei eu o outro".

Em meio a tantos questionamentos, o livro, lançado no segundo semestre de 2009, tem como seus 'leitores-indagadores' pessoas ilustres da literatura nacional, como Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar e Antonio Cícero. Pessoas nada comuns em seus dizeres e que portanto, sentem-se em casa quando se sentam no sofá vermelho da capa.

As páginas viram, o tempo passa (mas o que é o tempo?, está o leitor a estas alturas a se perguntar) e de repente, chega-se ao ano de 2046. "Cada tempo é uma história. Todo fim é uma imensidão", encontrou-se lá atrás, na 'sequência' 1265. No final de tudo, todo o debate transformou aquele triste mundo em um planeta pintado de vermelho, repleto de números, relógios, riscos e dimensões. Tudo se modificou: o ambiente, o tempo, o pensamento e até mesmo, o leitor. Este deixa a sala avermelhada e agora caminha com expectativas, sentimentos e ambições modificados. Está a refletir, apesar de já ter fechado o livro. Porém, continua a ler entrelinhas, a preencher folhas em branco e a notar que em um mundo onde 'mandam' os deuses, um dia, estes também perderão os seus reinados.

 

 

 

 

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O livro: Pedro Maciel. Como deixei de ser Deus. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2009.

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março, 2010

 

 

 

 

 

Bruna G. Galvão (Goiânia/GO). Jornalista, formada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa em 2008. Sua paixão por jornalismo a fez envolver-se em diversos projetos durante sua vida acadêmica. Foi repórter de "O Ponteiro — o boletim cultural dos Campos Gerais" entre 2005 e 2006; repórter cultural do programa "Rádio Resistência" em 2006 e 2007; realizou dois curtas-metragens em 2005 e 2007; um rádio-documentário em 2008 e foi assessora de comunicação e de imprensa entre 2007 e 2008. Quando criança foi "repórter-mirim" do jornal "O Popular".
 
 
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