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Para o Jorge Melícias*

 

Realidade e Subjectividade

 

As emoções e a realidade concreta de que a poesia possa partir são só estímulos, uma espécie de trampolim para que se crie a realidade nova que é o poema. Essas emoções ou os objectos de que o poeta tenha partido não conseguem explicar a razão por que o poeta escreveu o poema assim e não de outra maneira. As emoções ou a pedra do poema são as emoções e a pedra do poema. Essas emoções e essa pedra já pouco ou nada têm a ver com as emoções ou a pedra que algures o poeta tenha sentido, visto ou tocado. A poesia, tal como toda a arte, é  invenção e projecto (Erfindung und Entwurf). Por isso, toda a grande poesia é objectiva. Segundo Michael Inwood (dissertando sobre Heidegger) a poesia "ilumina o habitual e arranca-nos, temporariamente, do mundo da normalidade, para nos levar  até um outro mundo; ela transforma toda a nossa visão do mundo".1

A título de exemplo vejamos o poeta espanhol Antonio Gamoneda: grande parte da sua obra está assente na memória / imaginação. Partindo, na maior parte dos casos, de uma realidade pretérita — de factos que o próprio homem vivenciou ou a que muitas vezes assistiu — biográfica e histórica ( a sua difícil infância, a guerra civil espanhola, etc.) este poeta, por meio da criatividade imaginativa, transfigura essa realidade, tornando-a numa espécie de sobre — realidade poética. Em muitos dos poemas de Gamoneda encontramos essa transfiguração: o ponto de saída encontra-se assente num testemunho, aquilo que em certas situações foi, como já dissemos, vivenciado ou visto, isto é, um impulso emocional  que tem como motivos acontecimentos concretos do dia-a-dia, por exemplo a passagem por um mercado, a confusão das ruas, um cavalo morto, homens em uniforme, vendedores, mulheres, crianças, etc. ou a visita a uma catedral ou igreja, assim como o seguinte poema exemplifica:

 

 

Un ángel gótico

 

Inmóvil, claramente

inhumano en la

pura catedral

vive un ángel.

Un ángel no tiene ojos.

Un ángel no tiene sangre.

Él no vive en la vida, él no vive

en la muerte, él está

vivo en la belleza. 2

 

 

Este belo poema parte de um motivo concreto, real, da visita a uma  catedral onde o poeta viu um anjo de pedra gótico. Todavia a memória / imaginação de Ganomeda, ao visualizar as cenas passadas, liberta-as, de imediato, como fragmentos ou estilhaços soltos, do seu contexto original ou real e, assim, da banalidade, para as envolver em imagens, muitas vezes, enigmáticas ("vi los estigmas del relámpago sobre aguas inmóviles, en extensiones visitadas or presagios", "Cruzan palomas entre mi cuerpo y crepúsculo, cesa viento y las sombras son húmedas", "pienso en el dia en que los caballos aprendiron a llhorar"3), criando, desse modo, um espaço mágico e hermético de uma obscura-luminosidade, ou seja, uma nova realidade.

Tal como dizíamos, no início desta nótula, a respeito das emoções e da pedra, o poema "Un ángel gótico", que acima transcrevemos, exemplifica perfeitamente como aquele anjo de pedra, que o poeta viu de perto, se transfigurou, agora, numa realidade própria, autónoma: este anjo já nada tem a ver com o anjo visto, situado algures num determinado espaço-tempo (catedral) concreto, este anjo é agora a própria substância poética que é, nesse caso, o espaço-tempo-poema, a realidade estética, intemporal e histórica da palavra, em que não há morte nem vida (Él no vive en la vida, él no vive / en la muerte, él está / vivo en la belleza ) — porquanto ela é a linha intermediária que une esses dois lados (morte-vida) que nos aparecem como opostos mas que lá no fundo não o são —  e que o leitor ajuda a (re) construir.

 A partir deste momento a comparação entre o anjo de pedra, concreto e o anjo do poema anulou-se. Agora só existe o anjo do poema: a realidade que chamarei a metáfora-metáfora  e que para o verdadeiro poeta não é uma figura de retórica, mas uma nova imagem que substitui a primeira imagem e que paira diante dos seus olhos, em vez  de um conceito.4

 

 

Notas

 

* Esta nota poética, bem como outras quatro, resultou de uma troca de e-mails que tive com o poeta Jorge Melícias e, por isso, lhe é dedicada.

 

1 INWOOD M. Heidegger. Herder/spektrum, Meisterdenker, 1999, pg. 141.

 

2 Site de Antonio Gamoneda. Disponível em <http://amediavoz.com/gamoneda.htm> Acesso em fev. 2010.

 

3 GAMONEDA, A. Esta luz: poesía reunida: (1947-2004), Barcelona: Galaxia Gutenberg: Círculo de Lectores, 2004(dt. Esta Luz / Dieses Licht : Eine Anthologie: 1947-2005, Kiel: Verlag Ludwig, 2007)

 

4 NIETZSCHE, F. A Origem da Tragédia. Lisboa: Guimarães Editores, 1996, 7ª ed.

 

 

 

 

março, 2010

 
 
Luís Costa (Carregal do Sal, distrito de Viseu, Portugal, 1964). Tem poemas e ensaios publicados nas revistas eletrônicas Triplov, Agulha, Conexão Maringá e Zunái. Prepara o lançamento do livro Gritografia ou esta voz de barro e sangue. Escreve o blogue O Arco e a Lira.
 
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