O SANGUE E A TINTA

 

Ao Amanhecer o sangue é como uma luz

Entre as virilhas de um jovem deus

Ferve-me nas têmporas, eruptivo, sem amolecer

Enquanto a tinta se alastra pela brancura do papel

Até onde já não é possível distinguir  entre

O sangue e a tinta

 

 

 

 

 

 

DO MOVIMENTO

 

"Tudo flui".

Heráclito de Éfeso

 

Os telhados de colmo

ou uma águia de movimento  planando dentro  

das mãos abertas

onde as clareiras poisam pela madrugada

onde suas poderosas ferraduras

cintilam no rochedo possante

a rochedo do coração ou da vista

a ciência de onde tudo se ergue

como um fluido de louvores

como a elasticidade  do arbusto

ou o  formoso braço de uma mulher

equilibrando-se  na maresia 

 

Este movimento lúcido mas sincero  

que os dias trazem no seu regaço

este movimento que segue o trote dos cavalos selvagens

os cavalos de olhos de água pela noite de água

os cavalos dos lagares ou o olor do vinho novo

colado às musculosas pernas  dos calcadores

as suas vozes másculas na claridade do mosto

a luz vermelha que dele se liberta

evasão que  corre

e se enlaça à volta do bico das aves

interminável espanto do equinócio crepuscular

rosa tenebrosa que aguardas nos portos recônditos

da interioridade menstrual 

pulsar de cordas nervosas

à  hora em que os astros descansam nos costados dos bois

eis o mundo atirado  na torrente do desvario 

nesta firmeza líquida e ondulante 

 uma devastaçao nas sobrancelhas nocturnas

liberdade que verga os pulsos das árvores e dá forma à pedra

e faz explodir a semente no ventre da fêmea

cascata em liberdade 

 

eis a hora!

esta hora!

 

Hora

que  torna  o mundo mais doce e habitável

hora

onde as ferramentas descansam

lúcidas e concretas

junto ao grande tanque

hora

onde os calos se recompõem das refregas

onde se lavam os rostos queimados pelo incêndio do sol

onde os animais de carga se libertam do jugo

da dura existência 

hora de doces cetins e tinturas coloridas

dos doces frutos e do pão bem amassado

da lamparina de barro 

hora que as faces dos homens recebem de mãos abertas

quando as mulheres chegam

vencidas de cio

com maravilhosas travessas nos cabelos

hora ou abanão no bronze da carne 

com um rio por dentro

um rio implacável,

rubro,

alargando as  margens

dando forma à terra

rio violento como o touro azul

como o touro ansioso de sangue,

sem o saber,

na alucinação da marrada 

 

Ó hora

quero  conhecer-te por dentro

como quem  aprende o soletrar das letras que antes

da primeira leitura são um enigma,

uma massa negra ou um inverno tardio

onde a neve se acumula e se abate sobre as estradas

com um rumor de brancura

quero conhecer-te

sentir-te entre os dedos ávidos de suor  

sentir-te na pele transpirada

do corpo perdido no interior das grandes florestas

tropicais

onde os animais surgem   de repente   por entre o denso

arvoredo e explodem na rezina dos frutos

onde o tigre faz estremecer o mundo

com o seu pâncreas

onde tudo é movimento

 

Ó movimento da luz e do mar

do plâncton

do tubarão cego à procura da sua vítima

(turbilhão do sangue)

movimento que este corpo persegue sem saber porquê nem para quê

movimento que derrubas os belos jardins

que fazes vingar enormes torres de ódio ou amor

movimento dos olhos,

movimento das ventas

movimento que me arrastas através de oásis

e desertos de estacas

movimento onde sou um barco louco

uma caldeira em ebulição 

desejoso de liberdade

desejoso de paz

desejoso de uma tenda

onde finalmente pudesse descansar

curar as feridas,

os profundos lenhos da alma

as longas fissuras de pez que se vão acumulando nos ossos

dos antigos e ágeis guerreiros

 

Ó portentoso movimento!

 

Ainda que dos olhos me  corra o leite  mais claro

que alguma vez se possa imaginar

a tua claridade    de tão clara

é uma impermeável escuridão

 

 

 

 

 

ESPELHO METAFÍSICO

 

O espelho

o rosto ainda derramado pela meia-noite

escorrendo pelo espelho

um parir de tijolos  no corpo da música 

dos Sex Pistols

um oceano que se pesa no balouço das estrelas

as faces

            exaustas

o olho das mãos

talhado na porcelana de antigos cânticos

estas mãos assomando à tona da água pelo ventre

das mães

estas mãos trementes de azeites obscuros  

estas mãos que abrem portas estranhas

para fora e para dentro do tempo

no fogo

vagas rutilantes

ou abstracções

sombras que  amanhecem na crusta da maquilhagem

a explosão da cocaína

enrubescendo os músculos  quebrados

na  secção de cada nervo

 

Abres a janela

o azul do grito na boca que te dilacera os pulmões,

tufões de escárnio  no cérebro

os castanheiros  numa linha de pensamentos obscuros

clareiras

            lagos

                    caminhos

atalhos

          vertigens

                         becos

                                   ecos

mulheres que te inspiram  sonhos antigos

mulheres de sedas propícias

que trazem reinos minerais  na âncora das coxas

o mel saindo-lhe dos dedos

o mel que tu  ambicionas

ou as sementeiras

mós  

      amoladores

furadores

              buris

forjas

rendas 

teares

         podadeiras   

                  enxadas

enxames

e o  pulso das oliveiras

movimentando as fabulosas noras 

e um cesto de vime

junto ao canavial

ali    onde outrora era o centro do mundo

ali   onde outrora era o centro do teu amanhecer

depois dos dias fartos

quando bebias a tigela do fresco leite

isto

antes de Alcácer Quibir

 

Olhas-te de novo no espelho,

a testa dividida pelo estigma da esfinge,

soterrado entre os dois rios 

e à luz da lamparina  

escreves

escreves na agitação dos ventos

nas areias dos grandes desertos

escreves 

e olhas-te de novo no espelho

que uma procissão de sombras egípcias agora cruza

que te fura o rosto até ao lugar dos olhos

o teu rosto ou os ossos do tigre que se ergue nos ombros

o teu rosto ou a vida estremecendo

nas especiarias do coração

o teu rosto ou um monte de nada

à procura da agulha do astrolábio

das grandes viagens metafísicas

pelos subúrbios das cidades

onde as crianças têm  pregos nos olhos

e cavilhas nas pontas dos dedos

onde o céu dorme suspenso no nevoeiro das pontes humanas

por baixo das metálicas hastes  do eu

 

Olhas-te no espelho e revês   

as bétulas   as giestas

os loureiros    as cavernas

os desfiladeiros

cobras do tamanho das tempestades

pauis

longas lianas musgosas

enroscadas ao tronco dos cadáveres

caravelas  atravessando,

verticalmente,

o bosque das árvores de nomes desconhecidos

estacas

vómitos que tocam a raiz quadrada do inferno

um sonho  pneumático

a inseminação primitiva

(o seu assassinato)

a roda a motor de alta tensão na cabeça do carneiro 

a famosa hélice dos oboés

por cima dos rebanhos adormecidos

e homens cobertos de tatuagens arabescas

 

enquanto a ponta da lança jorra do capim

que o  animal ferido  transporta na sua substância negra

 

(entregue ao ritual da morte)

                     

                            — encurralado no vazio

 

 

 

 

 

 

ESTA VOZ DE BARRO E SANGUE

 

Vejo o mar subindo

Pelas caleiras de pedra azul.

O mar.

A Pedra sobre a pedra.

A cidade que se ergue, viril,

Sob a periferia das tuas pálpebras

Ainda há pouco absortas na mudez

Dos cestos discretos.

 

Vejo a estrada ladeada de altos plátanos

E o sol.

A estrada.

As paredes de pedra e cal.

O sol nos sovacos do homem.

Os olhos do homem

Olhando para dentro

À procura das dádivas da terra,

E o corpo do homem, nu, aberto,

Dentro dos sonhos do sal

E o branco do banco de jardim  

E os jornais a preto e branco

 

Vejo as dúbias tabernas

Penduradas nas mãos desta mulher

Estas mãos.

Estes pulsos.

Abertos.

A luz jorrando, negra e magra.

Esta mulher que procura o amor

Esta mulher

Onde o encanto de outrora

Ainda brilha por entre o crepúsculo

Da pele enrugada,

Esta mulher tão alta como o sol

Que traz uma saia de meia-lua

Esta mulher com o mundo

Dobrado entre as pernas

 

Vejo as coisas 

E dou-lhe a minha voz

As coisas e a minha voz

A minha voz e as coisas

Com lâminas e raios por dentro

Com cinza

Com poderosas veias

Com lenhos profundos...

Esta voz de barro e sangue

Esta voz de onde brotam  rios antigos

Voz da subcultura 

Voz de todos aqueles que se encontram

A meio dos meridianos

Como sonâmbulos

Buscando as pegadas do morno mel

E do fresco leite

 

— A ausência habitável

 

 

 

 

 

 

DO AMOR DIONISÍACO

 

Fonte de carne

Raízes que trespassam os corpos

A volúpia

Roendo a verdura dos intestinos

 

Unhas que se vergam

Sob o incêndio do sol nocturno

Os olhos são rubras cascas

De negras afirmações

 

Dizes: fode-me!

 

Debaixo do castanheiro

De Donar penetro-te

Até aos mais íntimos mistérios 

Dionisíacos

 

E falamos coisas estranhas

Em línguas estranhas         

Pois conhecemos o idioma

Das águas blasfemas

 

E fumegantes

Transpiramos a raiva do amor

Pelas mãos ungidas, à altura

Do tórax, em sangue

 

 

 

 

 

 

ARCO QUEBRADO

 

Com os ossos rasgando-te o tórax

bates às portas dos homens que trazem grandes letreiros nas testas

bates como quem bate no cabedal do vazio

e sente o estômago, trovejante, inundar-lhe a garganta

com a violência de um caudal nocturno

 

Sem guarida,

morador num corpo alugado,

caminhas pelas ruas,

e entras  em dúbias tabernas

onde bebes do amargo vinho dos miseráveis a negra bílis

e a boca fica-te  amordaçada  na  recordação do pão amargo

e desces às estações dos metros

e atravessas as noites intercontinentais

por entre labirintos de pernas e braços

e os carris chiam-te pelas veias

até desembocarem entre os dentes

fontes secas

               dias sem rumo

                                árvores derrubadas

céus sem constelações

o corpo envolto no sobretudo remendado

à procura de um sólido momento

à procura de uma tábua onde possas cravar as garras  do teu amor

 

Exilado no medo de ti mesmo

acordas fora da cidade

nas zonas intermediárias onde as linhas se entrecruzam,

sem saberem

                  umas com as outras

onde a solidão leveda até à ponta dos longos mastros

onde os calendários zunem  nos tímpanos

com a ternura dos estiletes nas morgues

onde o chilrear da angústia se interioriza nos nervos

como a ponta de uma faca diante da vítima

 

Pela confusão dos longos cabos suburbanos

voltas a ti

às brancas nervuras dos prados da tua meninice

e vês a mão de Deus caindo-te em cima

 

como se a vontade de viver  não fosse mais

que uma transgressão

 

 e a fonte do teu amor  é

                               agora

                                    uma furna de relâmpagos

 

 

 

 

 

 

DA NOITE DOS ASSASSINOS

 

Os meus ossos estremecem

na cabeça gera-se uma tempestade

mapas desfeitos

um fresco de Leonardo

apodrecido entre dedos inacabados

varais de solidão

e equilibristas

à beira de visões abismais,

pantominas

veios distorcendo a eternidade

 

oh glória de poder tocar as coisas

com a faca dos nervos!

de as sentir por dentro

como um suave veludo

ou a  lâmina enterrando-se na carne

de mulheres possessas

 

oh glória do rude metal!

 

onde tempestades de areia levam  consigo

os últimos redutos dos velhos guerreiros,

a charrua e o lavrador,

os véus da princesa de cristal

e torres que vão caindo,

fantasmagóricas,

nas mãos dos generais da imbecilidade,

e com elas a natureza vai-nos mostrando:

as garras dos tigres

os olhos em fogo

o grande escarro no silêncio das janelas

de Deus,

o seu último grito

no côncavo das mãos masturbadas dos cardeais,

a aurora

manchada de bandeiras negras

e braços enlutados,

disparando luvas de rainhas mortas

por entre risos sardónicos,

húmidos como a dor dos anjos...

 

que dor é esta?

que fizemos?

como fomos capazes de sorver a última gota da Fonte?

 

ah

este veneno que nos arde nas entranhas

com a brutalidade de barbáricas hordas de carniceiros

este sangue podre que  invade as manhãs dos remotos jardins

esta raiva que lança fogo às casas lacustres

sem outro desejo que não seja

 

— Matar! Beber sangue! Destruir!

 

que é feito da hora do amor?

que é feito daquela tremenda  força que nos estalava no peito

como um bom ciclo menstrual?

 

por todo o lado

corpos e almas violentadas,

a astúcia do cifrão,

o bezerro de ouro que encontrou de novo o seu lugar

e em vez das estrelas

um céu repleto de vazio

onde um barco naufraga,

obscuro,

destruindo-se dentro de si mesmo,

talvez um último sinal,

um grão

de esperança para os que vierem...

 

mas

as sombras já se arrastam por entre as

ruínas dos templos futuros

e o sangue corre  borbulhante pelos açougues...

 

— é a noite dos assassinos!

 

nem asas nem risos de crianças

só uma estátua decapitada no centro da praça grande

sombras  que descem até nós

ao corpo

              às veias

à boca

             ao palato

ao sexo inchado

                       ao conceito da alma,

qual uma cobra-capelo entre arrozais à procura de um naco de terra,

ou uma dança de desejos enlouquecidos

na língua de um pároco de aldeia,

e os sinos das igrejas tocam

dentro das pedras

e em nossos peitos

trementes

pulsa a angústia de não sabermos se somos

ou quando somos,

a angústia de raças  sinistras

torturando

            matando

                        copulando

banhando-se nas águas sujas de sangue,

limpando as mãos a toalhas de puro linho

a horas estranhas,

                           dizendo:

 

"pois daqui lavamos as mãos!".

 

................................

................................

................................

 

e em gritos orgiásticos,

      a multidão vibra

                         e contente, adormece

 

 

 

 

 

 

GRITOGRAFIA

 

Para o Luís Miguel Nava

 

Labaredas ou tremores de terra na pele

a pele que é um céu esvoaçante sobre estacas

artérias explodindo nas  aurícolas

relâmpagos de quartzo,

nos açougues    a febre de Deus

e a lâmina da faca que persegue o punho

à procura da doçura do corpo

 

um fluxo de sangue correndo-lhe

pela sombra do ombro

um farol na boca cheia de pedras

com um rio pelo meio

e glaciares que lhe racham   a testa   em dois

e o corte fino e perfeito

e um peixe que emerge  da claridade 

do encéfalo 

 

longos dedos enterrando-se-lhe na matriz

das vísceras

músculos que se electrizam

no lofócomo 

                                 do grito

 

 

 

 

 

 

MOMENTO DA LUZ 4

 

A mulher tem um cântaro na mão

Ela lava os cabelos e pensa no homem

Ela vê o homem na água que corre

Ela sabe dos sinais secretos

 

O homem ainda se encontra distante

Mas a mulher já o sente, túmido,

Entre as coxas furiosas e húmidas

A mulher sonha com o homem

 

A mulher é um regaço,  torna a carne habitável

O homem chega e olha  a mulher

Ela o guiará, com sua bússola flamejante

Por entre os gados   adormecidos

 

 

 

 

 

 

DOS NÃO ABENÇOADOS

 

Acordo. Levanto-me. Inspiro a luz com as pálpebras bêbedas de lentidão. Bebo um café, um café negro como os caminhos da abissínia por onde Rimbaud  andou à procura da riqueza, traficante de armas, vendedor de escravos... E leio De Sade. Sade, velho amigo dos meus sonhos, nem os calabouços da Bastilha te quebraram esse maravilhoso instinto do amor total. Porque o verdadeiro "amor é duro e inflexível como o inferno"*, porque o verdadeiro amor vai até aos intestinos, porque o verdadeiro amor é um ferro em brasa na carne, um crime nas vísceras,  um ritmo ou uma devastação nos nervos, como  quando se acorda, febril, ao meio da noite, como quando corremos desvairados por entre florestas em fogo, como quando o coração abre um buraco negro nas encruzilhadas do  peito e do seu interior se ergue o imaculado Diónisos.

Tu sabes do que falo, prezado leitor, tu sabes que entre a elevação e a queda a diferença é mínima, uma ténue linha que um simples sopro logo destruirá, um esboço  que mal desponta  logo se  quebra contra as ameias do tempo , porque é justamente o tempo que nos derruba, porque é justamente o tempo que faz de nós estes anjos caídos que não queremos ser, mas que somos. Pois só os Deuses podem brincar e jogar com a vida a seu belo prazer, tal sorte não nos foi dada. 

Porém digo-te , prezado leitor,  mais vale ser-se um anjo caído, irmão dos homens que  lançam fogo aos templos e dormem encostados às portas  e que pouco lhes importa que elas se abram  ou não  do que beijar o anel dos poderosos senhores.

Noutros tempos, prezado leitor, conheci o conforto das retretes públicas, o cheiro nauseabundo dos anjos negros, a espuma na boca de homens que morriam com seringas nos braços, homens como tu e eu, homens que a vida marcou com o desespero dos dias estranhos, sem asas, com a loucura, homens como árvores caídas ao canto das esquinas onde  as facas por vezes se erguiam, breves,  das trevas e cuspiam sangue sobre os pés descalços. E subi as escadarias que tocavam os astros e ergui a voz  em nome de todos aqueles que habitavam as margens e os manicómios... E, por vezes,  o leite correu, negro, e fizeram-se banquetes nas masmorras ( a fiest of friends ) nos lagares onde a luz era tímida...

Sim, prezado leitor, sou uma voz obscura, talvez uma aberração nos anais dos santos, mas digo: antes esta taça de vinho do que o sumo dos abençoados.

 

* Santa Tereza D'Ávila

 

 

 

 

 

 

INTROITO

  

Sento-me na esplanada

um copo de cerveja à  minha frente,

o mar espraia-se, calmo, até se tornar

horizonte,

o silêncio de Deus ondula por sobre

as dunas e toda a praia,

as gaivotas voam, baixas,

atravessam os meus óculos de sol,

rasgam o crepúsculo da íris,

destroçam  as pobres  emoções,

quase se desfazem contra os veleiros

que lá ao longe singram,

quem sabe para onde irão

Talvez para o Brasil,

Talvez para o Japão

Talvez para a terra dos pele-vemelhas

   ou  antes

para o reino do Walt Whitman

rumo ao sonho americano,

espelho já um tanto ou quanto arranhado,

mas que ainda existe,

que persiste em existir,

 com garras e dentes,

com garras e dentes,

ou para a Grécia,

para a Grécia de Ulisses

ressuscitado na memória de um professor de filologia clássica

daqueles professores que usam bengala

e uma barba que lembra Platão,

mas que pouco ou nada percebem de Kaváfis,

esse que dizia que não era grego,

mas sim a própria Grécia,

a própria Grécia,

mas isso já é outra história,

outra história para outro poema,

quem sabe, talvez.

 

Oh Veleiros para as grandes aventuras!

                   Salve! Salve!

Veleiros de Sonhos!

Veleiros voadores!

                  Evoé! Evoé!

Veleiros da imaginação e dos hálitos a vapor,

mais altos do que vós só os foguetões

que  quase tocam a via-láctea,

como nos dias das noites provincianas,

em que olhávamos o firmamento

e contávamos as estrelas pelos dedos,

eram tantas! Ó meu Deus!

Oh! Sim, eram tantas!

(tínhamos de inventar sempre mais e mais

e mais dedos)

e  encontravam-se tão distantes

mas ao mesmo tempo tão próximas....

Nos nossos sonhos tocávamos-lhe com a ponta do nariz

e dos nossos lábios emergiam

palavras indizíveis,

palavras de sangue,

palavras cruciais,

palavras de histórias incontáveis de nós mesmos

da cozinha freudiana

do sexo de Euterpe 

da carne de Pátroclo nos braços de Aquiles

de Édipo cego e Tebas ululando

da negra  farinha do Big-bang...

E por entre os astros do fundo dos ribeiros

os nossos  antepassados acenavam-nos,

com uma pomba branca nas mãos

acenavam-nos.

E nós riamos,

riamos,

ainda puros,

ainda tão inocentes!

Tudo era tão grande!

Tudo tão inexplicável!

 

E os lobisomens percorriam as sete freguesias

e as bruxas apareciam à meia-noite nas encruzilhadas

e os dias ainda eram redondos,

redondos como os campos de alfazema

na Provença de Van Gogh,

redondos e circulares como o mar dos antigos

Fenícios ou a Teologia de Xenófanes.

 

Sentíamo-nos encontrados,

éramos nós em nós,

nós diluídos na imensidão,

na pureza das coisas,

na sua luminosidade.

O tempo existia como uma pedra ou um rio,

Ou a pele quando estremece

ou um lagarto bebendo o  sol do meio-dia

ou um vinho que amacia o lagar,

o seu granito rude:

era um sempre presente contínuo,

como se diz em gramática

— um tempo para lá de bem e mal

 

Ah como gostávamos de ver as ovelhas pastando!

e as cabras na ponta dos rochedos

— como  seus cornos relampejavam!

E o pastor era um sol sob a sombra de uma bétula

e os pinheiros eram a nossa bússola

os teixos,  rosas  dos ventos

os castanheiros,  astrolábios.  

Porém,  um dia,

ao bater do relógio da torre da igreja,

enquanto corríamos por entre amendoeiras e

laranjeiras em flor,

acordaram-se  metáforas de mortos-vivos em nossas palavras,

metáforas de gabardinas sobrepostas,

de lázaros decapitados,

de máscaras negras no centro de nós,

de templos conspurcados e altares destruídos,

de espermas de homúnculos e virgens violadas.

Foi então que descobrimos a nossa falsidade,

a falsidade das ideias e dos nomes

e nos livros de história e de direito canónico aprendemos

que matar também pode  ser uma boa acção,

que também há um tempo para as guerras santas

como para tudo, como para tudo.

Um tempo cor-de-rosa, um tempo azul, um tempo

    negro e por aí adiante.

    E deste modo,

o tempo do arco e da flecha morreu,

tempo em que íamos de terra em terra

e dávamos graças aos deuses por cada nova manhã,

por cada novo  insecto,

por cada nova dádiva de Ceres,

por cada nova morte

e por cada nova vida

por cada nova certeza

e por cada nova  incerteza.

 

   Agora,

existiam as torres,

torres tão altas,

torres de pedra,

torres de vidro,

torres de aço e betão,

torres tão quentes como todo o  sol,

como os foguetões que já chegam a Marte.

Chegámos mesmo a bater às portas de Deus,

mas ele não nos respondeu.

   Não!

(o seu silêncio feriu-nos de tal modo o coração

que a pele se cobriu com uma crusta amarela )

Alguém  disse

Que ele se envergonhava de nós

como um pai que se envergonha  de um filho ladrão.

Mas não será que Ladrões somos nós todos?

Ou muito menos?

Também há aqueles que são sinceros e honestos,

mas a honestidade, a honestidade, honestidade,

dizia um antigo teólogo,

tem pernas curtas

demasiado curtas

Não é verdade dona Rosa?

Ou perguntem ao senhor Pires que estudou Teologia e Filosofia,

e  andou em duas Guerras.

Esse, esse sim, esse já viu muito,

e se Deus quiser ainda há-de ver mais.

 

Mas o destino é que manda

o destino é que manda

acredite-se em Deus ou não

ou no método cartesiano

ou nas certezas da matemática

Ou na teoria  da relatividade

Ou na mecânica quântica 

ou nas proezas da genética

que já consegue produzir homens ideais

inteligentes,

belos,

de vidro liso ou colorido,

de olhos azuis ou castanhos,

pequenos ou tamanhos,

sem defeitos aparentes...

 

Seja lá como for...

Deixai-nos de novo sonhar,

sim, deixai-nos de novo aprender a sonhar.

Pois não é verdade que pelo sonho é que nós vamos?

E nos nossos sonhos também entram

grandes veleiros e porta-aviões

e aviões que nos transportam daqui até Paris em duas horas

e a internet que nos torna todos irmãos.

Sim, irmãos, irmãos somos nós todos,

cruéis ou não

irmãos somos nós todos

ou muito menos

se não do mesmo pai pelo menos da mesma mãe.

 

— Se assim é ou não...

 isto é o que nos contam os paleontólogos.

 

 

 

[Poemas do livro inédito Gritografia ou esta voz de barro e sangue]

 

 

 

 

Luís Costa (Carregal do Sal, distrito de Viseu, Portugal, 1964). Tem poemas e ensaios publicados nas revistas eletrônicas Triplov, Agulha, Conexão Maringá e Zunái. Prepara o lançamento do livro Gritografia ou esta voz de barro e sangue. Escreve o blogue O Arco e a Lira.