Rabbit | Jeff Koons | 1986 | aço inoxidável | 104 x 48 x 30cm

 

 
 
 
 

  

O curto-circuito na estética tem um nome: Kitsch. Faça sol ou chuva, com vírus ou bactéria, do Himalaia até os confins da Amazônia, no público e/ou privado, na cueca ou sutiã, nas cores e estampas, na geladeira (olha o pinguim!) e principalmente na TV. Ou no toque de uma música do celular. Bingo: é automático! Todo mundo usa, todo mundo gosta. Eis a profusão: e isto nos remete à Sociedade do Espetáculo. Também à outra: a Sociedade dos Chavões. Falarei de passagem, sobre esta última; com ressalvas e as devidas dimensões necessárias, creio que os chavões são primas em primeiro grau do Kitsch. Por mais que alguém seja contra ou determina evitá-los, não podemos negar, os chamados clichês, modismos, gírias profissionais e lugares-comuns dominam a linguagem jornalística. Não somente ela, mas também a linguagem do mundo da arte. Todavia, não cabe condenar os jargões, pois toda a população faz uso deles. Atire a primeira pedra o jornalista, escritor, artista, crítico ou qualquer mortal que nunca utilizou o artifício dos chavões ou algum ditado/provérbio bem antigo. Em tempos de internet e na situação intrincada das contemporaneidades dá o que pensar as palavras de Tognolli: "É preciso dizer: sem o lugar-comum não há como se operar os níveis da fala. Não se pode propor a sua eliminação no mundo atual. Onde se lia reflexão, hoje se lê rapidez e eficiência. Talvez McLuhan tenha se tornando incompleto: não só o meio é a mensagem. O e-mail agora é a mensagem 1". Acredito que o mesmo se aplica, numa dimensão mais ou mesmo semelhante, à questão do Kitsch.

Podemos considerar o Kitsch como uma extensão da profusão. Ou vice-versa. Para muitos, uma erva daninha, para outros, uma medida dos sonhos. Um encanto celeste saciando os desejos. Efeito sentimental já confeccionado num mundo de acúmulos e faltas. Acúmulos de bons gostos. Também de gostos nada apropriados. O acúmulo reacende a hipérbole com números esfuziantes de um relógio digital. Saltitante como o cancã. E faz lembrar as mulheres de Toulouse-Lautrec e as melindrosas de J. Carlos. Também a moda da art deco (eu gosto de escrever assim, mas tem gente que escreve art decó. Dá no mesmo!), mais pragmática com estampas surgindo de todos os grotões. J.Carlos soube vestir muito bem a melindrosa seja com motivos tropicais, orientais ou geométricos, sempre de acordo com as estações e datas importantes do ano, derramando a exuberância das cores, sinuosidade e o requinte. Por outro lado, Coco Chanel e seu "luxo pela simplicidade", contemporânea de J.Carlos, revolucionou a moda e tirou os grilhões e ferraduras dos trajes rígidos, faixas, cintas e demais apetrechos desconfortáveis do século 19. Descobriu a cor preta (o pretinho básico!) para o vestuário feminino, mais o perfume (à base de uma planta da Amazônia), jaqueta de corte reto, os acessórios e o uso do tweed. Que imaginação, sensualidade e sonho!

Jeff Koons trilha o caminho oposto do Kitsch. Para evidenciá-lo e ao mesmo tempo contestá-lo. A instalação em madeira, flores, terra e aço com mais de dez metros de altura Puppy (eta, cachorrinho bacaninha!) e o aço de Rabbit (coelho inoxidável comendo a cenoura inoxidável), imagem acima, demonstram liberdade e criatividade. O cara sabe manipular o espectador. Não tenho certeza, mas acho que foi ele quem se casou com a Cicciolina (lembram-se dela! Hummmm!). As obras de Jeff Koons são puras provocações, pra não dizer gozações. Vi uma imagem de uma obra, um grande coração, no qual o americano extravasa com o signo. Hello Kitsch! Mas vamos adiante: "A estimulação do efeito torna-se Kitsch num contexto cultural em que a arte é vista, pelo contrário, não como tecnicidade inerente a uma série de operações diversas (e é a noção grega e medieval), mas como forma de conhecimento realizada mediante uma formatividade com fim em si mesma, que permita uma contemplação desinteressada. Nesse caso, então, toda operação que tenda, com meios artísticos a fins heterônimos, cai debaixo da rubrica mais genérica de uma artisticidade que se realiza de várias formas, mas não se confunde com a arte. Pode estar empapada da habilidade artística a maneira pela qual torna apetecível uma iguaria, mas a iguaria, efeito de artisticidade, não será arte no sentido mais nobre do termo, enquanto não fruível pelo puro gosto de formar que nela se manifesta, mas sim desejável pela sua comestibilidade 2".

O efeito da "mentira artística" no contexto cultural reaparece nos confins do passado. Aí que saudades da minha camiseta vermelha/vinho tendo ao fundo o rosto negro do geminiano Che Guevara. Que me deixava enfeitiçado, naquele fetiche de juventude e militância no movimento estudantil, mais tarde no sindical e partidário. Ainda estou à procura (além do pinguim preto e branco de louça. Um pinguim bacaninha, né?) de uma bela camiseta vermelha/vinho com o rosto do Che. Eis o kitsch e uma das suas características: o efeito sentimentalista em forma profusa e reincidente. "O kitsch não diz tanto respeito à arte quanto a um comportamento de vida visto que o Kitsch não poderia prosperar se não existisse um Kitsch-Mench que necessita dessa forma de mentira para reconhecer-se nela. Então o consumo do Kitsch surgiria em toda a sua força negativa, como uma contínua mistificação, uma fuga das responsabilidades que a experiência da arte, pelo contrário, impõe 3."O Kitsch provoca determinados efeitos, e no centro destes efeitos há a oposição entre a vanguarda e o próprio kitsch. A Indústria Cultura vende "efeitos já confeccionados, a prescrever com o produto as condições de uso, com a mensagem a reação que deve procurar4."

E Eco aponta o que não pode passar batido, mesmo que a citação seja mais ou menos longa e recheada de pausas: "Com uma fórmula feliz, Clement Greenberg afirmou que, enquanto a vanguarda (entendida, no geral, como a arte na sua função de descoberta e invenção) imita o ato de imitar, o kitsch (entendido como cultura de massa) imita o efeito da imitação.(...) A vanguarda, ao fazer arte, põe em evidência as reações que a obra deve provocar, e os elege para objeto do seu discurso, o Kitsch põe em evidência as reações que a obra deve provocar, e elege para finalidade da sua operação a reação emotiva do fruidor. (...) O que porém, não está plenamente compreendido em Greenberg é que o Kitsch não nasce em conseqüência da elevação da cultura de elite sobre níveis sempre mais impérvios; o processo é totalmente inverso. A indústria de uma cultura de consumo dirigida para a provocação de efeitos nasce, como já ficou visto, antes da própria invenção da imprensa. Quando essa cultura popularizante se difunde, a arte produzida pelas elites ainda está ligada à sensibilidade e à linguagem comum de uma sociedade. É justamente na proporção que a indústria da cultura de consumo se afirma sempre mais, à medida que a sociedade é invadida por mensagens comestíveis e consumíveis sem fadiga, os artistas começam a atentar para uma vocação diversa. (...) Visto que não só a vanguarda surge como reação à difusão do Kitsch, mas o Kitsch renova-se e prospera justamente tirando um contínuo proveito das descobertas das vanguardas 5."     

Por outro lado, para complementar as leituras, vale também observar com atenção as lúcidas palavras de Décio Pignatari, feitas principalmente a partir de Eco: "O Kitsch resulta do compromisso entre o objeto único e o objeto reproduzido, entre o artesanato e a indústria; é a imitação de ou a partir de um tipo, que é então reproduzida. Opõe-se-lhe o desenho industrial que reproduz a partir de um protótipo. O Kitsch tende á língua, o desenho industrial á linguagem. Surge estreitamente vinculado à arte — e à arte tradicional; como a afirmação e expansão do mercado de consumo de novidades, começa a lançar mão das realizações de vanguarda. Por esta razão, ele é caracterizado como 'pseudo-arte', conforme a tradução de Anatol Rosenfeld, ou como 'mentira da informação estética', como quer Umberto Eco. Trata-se, porém, de um processo dinâmico, que já se extrapolou do âmbito puramente artístico, para se caracterizar hoje, como creio, como uma 'aparência de repertório mais amplo 6'". Acho  melhor deixar Walter Benjamin fora disso, do contrário este texto ficará bem grande.

Nesta rápida reflexão, creio, Décio Pignatari usa a palavra mais que apropriada para estabelecer o elo fundamental e comum entre a profusão e o Kitsch: extrapolação. Além dos limites, exceder. No caso, a tendência do Kitsch seria uma espécie de extrapolação da profusão. Redundância mesmo. Parecendo dizer que quando a profusão perde a cabeça (se é que ela tem cabeça), já estamos no Kitsch. Uma deformação acompanhada de desinformação; ou seria uma desinformação acompanhada de deformação!? Observem que a extrapolação a que me refiro existe também ao trocar os dois termos na oração escrita anteriormente. Tudo isso em prol da redução e simplificação do repertório. Tradução: extrapolação reencarnando a redução dos sentidos. E o estranho fascínio, em contrapartida ao original, a partir da serialização, o Kitsch parece criar o seu próprio código e escala de valores. Por conseguinte temos o artesanato sendo apropriado pela indústria, e o artesanato se apropriando da indústria. Extrapolação geral! Aqui faz sentido lembrar-se da pop art, que conseguiu içar o Kitsch como uma bandeira de vanguarda, desmentido muitos críticos que o chamavam de "pseudo-arte". Eis a dialética, que ainda invade  parte das contemporaneidades artísticas. Para encerrar, outorgando que não existe um ponto final, outra citação, embaralhando mais ainda as coisas: "Do ângulo puramente estético, a questão também não fica bem iluminada. Para Umberto Eco, Kitsch se caracteriza como mentira da informação estética. Cita, por exemplo, a obra do pintor Boldini, que se especializou em retratar figuras da alta sociedade francesa dos fins do século (várias delas compareceram como personagens na obra de Proust). Boldini pintava os bustos de seus modelos academicamente, reservando o vestuário e o ambiente técnicas mais 'avançadas', impressionistas e pontilhistas. Esse 'querer parecer' vanguarda seria o traço marcante do Kitsch no entender de Eco e, em geral, dos que adotam a noção de Kitsch como 'pseudo-arte7'".

 

 

 

 

Referências

 

 

1 TOGNOLLI, Cláudio Júlio. A Sociedade dos Chavões: presença e função do lugar-comum na comunicação. Coleção Ensaios Transversais. Escrituras Editora: São Paulo, 2001.

 

2 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, 6ª ed.

 

3 Idem.

 

4 Idem.

 

5 Idem.

 

6 PIGNATARI, Décio. Informação, Linguagem, Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1997, 10ª ed.

 

7 Idem.

 

 

 

março, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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