Sofá Papel | Irmãos Campana | Brasil |  Ferro e Papelão | 1993
 

 

 
 
 
 

  

Quando alguns pensavam que o novo, a novidade estava muito aquém da ergonomia e desenhos perfeitos, eis que surge mais ou menos após 1989, diretamente de Brotas, interior do Estado de São Paulo, Brasil, uma dupla que é referência mundial de qualidade no design de móveis e objetos. Com uma poiesis marcada por inovações das formas imperfeitas, experimentação, decomposição, reinterpretação e surpresas, usando referências visuais atuais que remetem às vias urbanas, materiais e ornamentos inusitados, a criatividade dos irmãos Fernando e Humberto Campana é uma recusa contemporânea em relação à "estreiteza" da estética funcionalista e racionalista do Modernismo [www.campanas.com.br]. Uma recusa tanto da padronização de uma produção industrial, pautada na combinação de elementos construtivos padronizados do Estilo Internacional, quanto na angulação reta na posição horizontal e vertical do plano geométrico da De Stijl; também em relação a alguns designs desenvolvidos pela Bauhaus, em especifico a cadeira Wassily, projetada por Marcel Breuer (1902-1981) e inspirada na estética da máquina, para ser produzida em larga escala.  

O grande trunfo é a inovação do uso de materiais e a singularidade das formas, numa estética que dialoga com as ruas, fruto da intuição que olha para os lados em anárquicas ponderações necessárias. Totalmente contrária a um receituário, é uma proposta "indisciplinada", porém criativa, em contraste e decomposição direta com o dogma estabelecido pelo design moderno: de fora para dentro, de cima para baixo, do centro para as regiões. Fruto da decomposição das formas e valores, um reposicionamento estético, nova linguagem visual que vai ao desencontro da forma sóbria, geométrica e metrificada de linhas retas do Modernismo.

Uma estética em trânsito permanente entre o regional e o universal, o rural e o urbano, o industrial e o artesanal. Detalhe: lembre-se que a cidade de Brotas, SP, é considerada a capital dos esportes de aventura. Talvez  a partir deste fato também podemos entender um pouco mais sobre o repertório empregado pelos irmãos Campana. Desde a cachoeira, bambus e o campo, legados importantes, fontes de inspiração fraterna.

Trata-se de uma dupla com uma maneira de trabalhar espontânea, na qual, com certeza, a idéia, a abstração latente, aliada à execução e o planejamento afunilam para a gestação de produtos aprimorados. Pois aqui temos duas cabeças, dois corações, duas memórias: uma pontuando a outra, principalmente na arte dos sofás e cadeiras. A gênese da estética dos irmãos começa pelos traços da imperfeição como o motivo inovador. Sejam nas versões dos sofás Boa e Papel, banqueta Buriti, nos assentos Três Sushis ou na cadeira Anênoma.

Numa breve avaliação e juízo estético, observa-se que as formas híbridas adotadas para uma relação corporal, sejam elas com teores primitivos ou linhas em profusão e os entrelaçamentos, expressam a desconstrução de modelos a partir das contradições das contemporaneidades. Seja pelo caos urbano ou mistura de detalhes, panos e outros apetrechos utilizados de maneira genuína, que remetem de uma outra forma aos trabalhos do Re-Design ou até mesmo ao Pop Design da década de 1960, porém carregada de uma ironia que beira o humor, um humor tropicalizado e destilado, cuja matriz, com certeza, é o Brasil, o povo brasileiro "descolado" e com muita ginga. A cadeira Favela, por exemplo, possui uma plasticidade diferenciada a partir da fragmentação e rearticulação das partes e inusitada (não somente pelo nome da cadeira), carregada de humor, expressando inteligência na composição da forma e no uso do material empregado. Parecendo ao mesmo tempo questionar/desrrotular o termo, que é considerado "imperfeito" (a noção de favela), dando-lhe um novo sentido. Esta cadeira, com certeza, rompe esteticamente, através de uma concepção autoral que agrega forma e valor, mesmo com a economia de recursos, pois observamos que a parte está no todo e o todo nas partes, pela solidez do material fragmentado compactado e sobreposto. 

 

Cadeira Favela | Irmãos Campana | Brasil | Madeira | 1991

 

A cadeira Favela revela o ditame do retalho em madeira em pequenas doses para logo ser reinterpretado. Enquanto desenho da estrutura, as tábuas de vários tamanhos empregados na composição confirmam, genericamente, a idéia comum de uma cadeira, a constituição pela justaposição de pedaços irregulares gera estranhamento e novidade, com a inusitada mistura entre precariedade e exuberância, fragmentação e solidez. Sua concepção plástica atende ao propósito de fazer visíveis a quebra e a revisão crítica de verdades estabelecidas no design, o que tem sido uma marca dos irmãos Campana.

Subverte pelo estilo, demonstrando uma anarquia, um mergulho, uma anarquia como campo de liberdade de criação e expressão, cujas regras e limites não interpõem empecilhos à visibilidade do design. A poiesis dos irmãos Campana são manifestos anti-perfeição. Um estilo, design cultural e autoral com simbologias e formas construtivas (pelo nomes dos produtos e o material usado) que remete ao real (se aproxima mais do real), todavia menos rigoroso e enquadrado. É uma opção pela diversidade, estranhamento e novidade, que combina elementos articulados de forma ambígua, com mais de um sentido no contexto, e uma certa artesania na contradição ao não usar determinados tipos de materiais normalmente institucionalizados pelo mundo do design.

Plástico bolha, cordas, borrachas, tiras de tecidos, mangueiras, papelão, tubos de PVC, etc. são utilizados em várias sofás e cadeiras de maneira sofisticada pelo irmãos Campana. Apropriações que não deixam de ser também uma provocação, pois podemos observar que vai ao desencontro dos modismos, seja na utilização do material, a inovação estética pelas formas imperfeitas e algo que beira a não homogeneização do artesanal, tratado de modo requintado e valorizado; um design que vai também ao desencontro da estética que beira o asséptico no design. Observem também que os materiais citados estão presentes nas ruas. Por isso, o diálogo que a dupla persiste com o meio externo. Haja vista também que grande parte deste material acaba sendo considerado lixo por muitos.

 

Cadeira Vermelha | Irmãos Campana | Brasil | Corda e Aço Inox | 1993-1998

 

A inovação estética das formas imperfeitas da dupla trabalha também com um tipo de conceituação da escassez que é diretamente proporcional ao estilo adotado. A sua correspondência é uma leitura e linguagem muito longe das equações matemáticas, ergonomia e programas de computadores. São peças de design. Esta afirmação é importante, para não confundir com o ready-made, a escultura ou as instalações. São utilitárias e cumprem funções. Surpreendem, por exemplo, como a bem humorada poltrona de Pelúcia, uma costura seriada de bichinhos de pelúcia. Outras usam fibras sintéticas, como a internacional e famosa cadeira Vermelha, feita de cordas náuticas vermelhas pendendo para o vinho e apoiada sobre um tripé prateado. Ou seja, uma cadeira com três pés. Também têm as naturais, como as realizadas com fibras de coco ou bambus. Toda esta arte expansiva demonstra uma certa anarquia tropical, um mergulho, a anarquia como campo de liberdade de criação e expressão, cujas regras e limites não interpõem empecilhos à visibilidade do design. Último detalhe: as cadeiras são fabricadas pela Edra, na Itália, e estão à venda desde o Canadá até a Austrália. Também no Brasil, Japão, Turquia, Inglaterra, México, etc. E algumas cidades africanas.

 

 

dezembro, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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