Há poucas personagens — o padre, Ana e Ariadne, a mãe — que vivem num espaço reduzido: o espaço discursivo do narrador. Neste pequeno romance, Geraldo Lima transfere um pouco — somente um pouco — do instrumento dramático com que está acostumado a trabalhar e instaura num espaço exíguo, a mente do personagem, a sua existência atormentada.

         Há algo de Bentinho nas relações religiosas e nos ciúmes, mas a lembrança de Bentinho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, não é para mostrar influências. É  que mostra Geraldo Lima ligado às grandes linhas do romance brasileiro. E acredito que isso não é pouca coisa.

         Vejamos: reconhecemos em Dostoiévski o atormentado e religioso mundo russo, nos escritores alemães a tendência a discutir grandes conflitos e o drama entre corpo e alma, nos norte-americanos as frases curtas, a ação vertiginosa e o mundo buliçoso do progresso, mesmo em romances passados no interior (um dos personagens de Faulkner, nos anos 20, roceiro, aplica na Bolsa de Nova York, logo não é a mesma roça do nosso Vidas Secas). Incluir-se no rol da aventura estilística e temática do romance brasileiro, um feito louvável.

         O longo monólogo do narrador não tem uma linha reta nem uma história também linear — talvez não tenha nem mesmo uma grande história, porque o narrador está preocupado é com a própria emoção e repercussões de seus atos. E nisso Geraldo Lima, com sua escrita elegante, mas não fora de época, investe na psique do personagem e na sua angústia existencial.

         A epifania do início não pode ser comparada com a epifania de Clarice Lispector. Em Clarice, a epifania vem de momentos ordinários e inesperados como ver, do bonde, um cego na rua. A epifania de Geraldo mistura duas epifanias: a de Clarice e a de James Joyce, mais ortodoxa e religiosa. Durante todo o texto perpassa a ideia de Deus e de manifestações espirituais. A busca do narrador alterna ora o corpo da amada, ora a experiência mística. Contudo, o mais importante é a maneira como ele a digere e transmite ao leitor e o que é dito em relação a essas experiências.

         Geraldo Lima domina todos os meios de seu ofício e mostra aqui em Um — título por deveras singular — sua concepção de mundo e sua permanência num mundo de volubilidade e mecanicismo crescente. Mostra que a literatura brasiliense já tem sua cara e que pode se apresentar no cenário nacional sem ter vergonha ou ser julgada como provinciana.

         Geraldo Lima, em Um, também brinca com o sagrado e o profano. Místico, epifânico, erótico e mundano, o personagem se agita entre consciências contraditórias e multifacetadas. Esse narrar desgarrado e confessional — todo narrar parece ser uma procura de uma resposta que o próprio narrador nem mesmo conhece — leva a uma literatura de cunho inquisitivo, cujo inquirido é o próprio narrador. Outro traço característico é o olhar. Um é a narrativa da contemplação: de Deus, dos corpos femininos, da lua, da vida. Uma literatura menos de ação e mais de contemplação. Poderia dizer também reflexão, mas o correto talvez seja uma literatura de inação, em que o narrador-personagem se inquieta, narra o passado e seus conflitos e observa a vida, como a grande epifania a ser-lhe revelada.

         Este livro mostra que a literatura de Geraldo Lima vem crescendo em qualidade e tom. Do conto ao romance, o autor aprimora sua arte narrativa, seu repertório estilístico e aponta para uma construção de um percurso que não devemos perder de vista com o risco de não alcançar a trajetória de um bom autor.

 

 

 

 

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O livro: Geraldo Lima. UM. Brasília: LGE Editora, 2009.

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dezembro, 2009

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes (Brasília/DF). Escritor. Publicou, entre outros, A máquina das mãos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2009).
 
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