A peripécia

 

Vamos, imagine, um padre de batina na fila de uma boate de striptease. Uma geladeira no meio da sala. Um fogão no banheiro. Vamos, imagine. A imaginação tem dois defeitos. A imaginação tem vários defeitos. Mas dois me incomodam, só dois. A imaginação, ora. Incendeia quando deve esfriar e não se conforma com um círculo na casa dos quadrados.

Era como me sentia ao dizer que era professor de grego. Grego. É muito difícil sobreviver hoje em dia com uma língua que não está nos currículos escolares. Só o alfabeto, alfa, gama, sigma, só o alfabeto já reprovaria metade da turma. Falam tanto em mundo virtual e essas coisas e tal. O barato hoje é ser virtual. O grego é virtual. Uma língua que não existe mais é virtual. Existe apenas nos livros e na mente das pessoas. Nada mais virtual que o grego.

Os colégios expulsaram o grego como quem afasta mau-olhado. Nas reuniões, festinhas, mesas de bar, quando você fala que é professor de grego, as pessoas o olham como se tivesse revelando uma tara. Minha tendência é beber mais um copo de cerveja, olhar o relógio, desculpar-me. Ora, desculpem, mas estou atrasado. E nunca mais voltar a ver quem me acha esquisito. Atrasado, desculpem. O relógio. Não vou conviver com quem me acha esquisito.

Tenho parte de culpa por não ter virado professor universitário. É, universitário. Mas minha experiência com a academia foi desastrosa. O erro é meu. O erro não é do grego. O grego não tem erro. O grego é uma língua e uma língua não é errada por existir. Ou por ter existido. Morrer é um equívoco. Mas acontece que não consigo conviver com intriga, vaidade, gente medíocre e, principalmente, com alunos desinteressados que perguntam a todo o momento a serventia do grego no mundo moderno. Oh, Deus, pra que serve o grego no mundo moderno? Sem resposta — é, sem resposta.

Passei a dar aula particular. Sou baixo, ando de terno sem gravata — um terno surrado que me faz suar, afasta as mulheres, dá asco nos homens. O terno. Ou o paletó. O paletó me torna mais civil. E me protege. Eu, que tenho bunda larga e gorda. O paletó me cobre a bunda larga e gorda. Há algo de couraça no algodão. Se ando de manga de camisa, tanto que estou desacostumado, que me sinto nu. É muito inconveniente você andar nu pelas ruas. Nu na casa dos outros. Entrar nu em fila de banco. Sei que cheiro mal. Mas gosto de mim desta maneira. Não, não, não falo do odor. Falo da maneira sem compromisso com a vida social. O paletó me cobre a bunda larga e gorda, cobre.

Gosto de pensar em mim como um ser em extinção. Um mico leão dourado, olhos pequenos espantados, gestos rápidos e ladinos.

- Você é um cara antigo — dizia um aluno. — Um cara que devia ter vivido antes de Cristo.

Quando nasci? 50 a.C. Antes de Cristo era uma hipótese de Deus sem carne. Eh, bem.

O sujeito tem que revolver a memória. Revolvendo minha memória, talvez eu já tenha nascido antigo. Morei em orfanato. Morar em orfanato é ser inquilino do diabo. O endereço, inferno. Lá, a gente aprende duas artes: a de sobreviver e a de viver desterrado.

         Fui o que sou hoje: criança triste e desconfiada. Nunca mudei. Por isso digo que já nasci velho. Criança não é projeto de adulto. Não é miniatura de gente. Criança é espécie de raça. A raça negra, amarela, branca caucasiana e, por fim, a criança. Um dia já fui da raça das crianças. Magrelo, feio, cheio de feridas, lendo pelos cantos O Cruzeiro, revista de contos policiais, nunca gostei de gibi. Quando deixei a raça criança, fui ser de outra raça mais mofina ainda. Mas aí, ora aí, aí eu já sabia outras línguas, tinha outro corpo, outras mãos, os pés me levavam aonde queria. Cresceu meu membro que, depois descobri, ao morar com uma viúva velha de um parente afastado, me transformou em homem.

         Sempre sobrevivi aos trancos e barrancos. Morei numa quitinete no Méier, cercado de livros, em sua maioria, é claro, em grego. Uma pequena fortuna. Houve mês que deixei de comer para comprar livro. Hoje não faço mais estas extravagâncias. Um mês comendo miojo, um mês.

Vivi assim até o dia em que um incêndio tirou meu ganha-pão. Todo incêndio faz desgraceira danada. Queima documento, queima móvel, queima coisas queridas, queima coisa cara. Nunca vi incêndio doméstico que não roubasse a paz de um cristão. No meu caso, tenho o nervo como a coisa mais inflamável dentro de mim. Este incêndio queimou principalmente meus nervos.

         O incêndio levou os livros e meus dois alunos. Não, não, claro que o incêndio não matou os dois alunos, os frades capuchos que tinha, não, o incêndio queimou minha vontade de ensinar.

         Fui então trabalhar como balconista — longe dos livros, longe de qualquer coisa que me lembrasse os livros. Era loja de bricabraque, numa rua sem saída, do centro da cidade, cercada por lojas de carcamanos que vendiam roupas baratas, utensílios de cozinha, cutelaria, chapelaria, todas ordinárias, as mercadorias cheias de pó, antiquadas como seus donos septuagenários, um gueto de libaneses com barba por fazer, cabelo ralo em pé, curvados, vidros embaçados das vitrines e as moscas visitando as lojas como nos velórios.

         Jantava às vezes no botequim que misturava ovos coloridos com esfirras. Andava calado e, quando falava, falava grego com os clientes. Nem grego era. Digo que falava grego porque dizia coisas sem nexo, resmungava, falava sozinho, discorria sobre as peças de Sófocles e o teatro grego pro rapazinho da lanchonete que, para outro cliente, girava o dedo à altura da orelha. O riso dos outros é uma comédia e a comédia, vocês sabem, Aristóteles não tinha em boa conta a comédia. Que riam, os cretinos.

Fui mandado embora. Já não tenho mais nada o que vender para sobreviver. Depois do incêndio sobrou pouca coisa: minha língua inútil, meu cansaço dos anos. Um homem deve orgulhar-se de sua diferença, língua estranha ou estrangeira — o que dá no mesmo — e sua enorme capacidade de ocupar um espaço na natureza. Por isso, renego a cremação. A cremação é um ato indigno, recolhe da natureza algo que ainda existe. Os ossos ainda são parte da natureza, embora sua existência seja tão sensível como uma pedra.

         Procurei os padres capuchos. Um estava no Rio Grande do Sul, outro voltara para a Itália. O certo é que estavam doentes, tomados por doença rara, falavam grego, sim, falavam grego, para espanto dos seus pares e do superior. Não creio que tenham enlouquecido. Queriam um mundo helênico para suas vidas, apenas. Que mal há de querer a convivência com Aristóteles, Sócrates e Ésquilo?

         De qualquer maneira não poderia mais ter um trabalho ordinário. Estava ficando cego. Fui ao médico. De nada adiantou. Como iria ganhar a vida? O destino, que tem buraco no muro de beco sem saída, outra vez me pôs em caminho sinuoso.

         Chego ao fim da minha peripécia, se posso chamar de peripécia. Fui até o subúrbio, busquei o número anotado no verso do cupom de loteria. A moça me abriu a porta, perguntei se era ali que tinham posto anúncio pedindo professor de grego. Ela me levou até o quarto escuro, onde jazia o homem. Seu último desejo: aprender grego e depois morrer. Foi o velho mesmo que propôs que eu fosse morar com eles. O senhor tem onde morar? Não? Aceite o meu convite, disse o velho. Mudei-me para a casa do subúrbio.

         A menina gostava de hip hop, reggae baile funk fumaça crack a pedra andava de moto estudava no noturno do supletivo, Quer saber, dizia, não estou nem aí. Acabou acordando num hospital público emergência o tênis sujo de sangue, a calça de cós baixo tinha virado bermuda e a escuridão tomava os olhos e tudo por causa do tiroteio e de uma bala encontrada (não perdida) uma bala alojada no cérebro que não afetou nada além do nervo ótico.

Os objetos são negros, a experiência é negra e, logo, o mundo é negro. Ensinei-lhe o elementar do grego. Os pássaros riscavam o cinza dos dias chuvosos que têm tom grave.

Um homem deve ser senhor do seu último desejo. Um professor de grego como eu só tem um único desejo: a mocinha cega. Tenho que aprender a viver com poucos recursos e meus últimos desejos. Por que, tardiamente, os testículos vêm me atormentar como se o pesadelo não estivesse na cabeça, mas entre as pernas?

Com o tempo, o velho morreu. O enterro foi uma tristeza. Só havia a neta, mais dois parentes (um dos quais bêbado), e eu. Cega, a mocinha pediu que eu ficasse na casa, ajudasse no supermercado. Aos poucos os objetos vão perdendo contorno, mesmo onde há luz existe penumbra. Não me importa ficar cego. O silêncio é escuro. O silêncio. O grego já não me serve para ver nada. Olho difusamente a mocinha trocar de roupa. Aquilo me enoja. Sinto-me covarde e canalha. Logo a escuridão vai ser minha nova língua. Sem ver a mocinha, perco os testículos e ganho a escuridão. A escuridão é silenciosa. A solidão é língua morta.

 

 

 
 
 

Uma câmara na cabeça

 

Esta é a história de Vladimir, o cineasta. (Sempre quis começar um conto com: Esta é a história de. Que prazer me dá escrever Esta é a história de. Um dia começarei um conto com Era uma vez. Mas o que tem Vladimir?) Vladimir era contratado por uma empresa pública para filmar os eventos oficiais do governo. O celulóide lá dele vinha com sigla estatal. Ele havia colocado num quadradinho Vargas e Juscelino. E não só Vargas e Juscelino, como também políticos, o chefe de polícia Felinto Muller, senadores, ministros (entre eles, Jango e Tancredo) e um bando de outros com terno e lenço no bolso do paletó. O olho de Vladimir, estatal ou privado, era olho inteligente. Algumas imagens que vemos até hoje do enterro de Getúlio traziam o dedo de Vladimir. Ou melhor, o olho estatal de Vladimir.

A mulher de Vladimir, D. Isaurinha, era desleixada. Eu visitava muito o quarto do casal.

- Bom dia, D. Isaurinha, seu Vladimir está?

- Acordou cedo, se banhou, fez a barba, nem tocou no café e foi trabalhar.

D. Isaurinha vivia de robe. Era proibido cozinhar no quarto. Mas D. Isaurinha sempre arrumava um jeito. Eu entrava no quarto de Vladimir e sentia logo o cheiro de fritura. Mas não era sempre que cozinhava, porque D. Isaurinha era preguiçosa pra caramba. Ela esquentava chá para o marido num fogareiro e, para ela, um leite encapotado. O gerente do hotel, de gravata borboleta, que vivia de olho para que ninguém cozinhasse nos quartos, fazia vista grossa (para quem fala de olho, de lente, a expressão vista grossa é no mínimo um desleixo de linguagem) para a mulher de Vladimir. Por Vladimir ter olho de governo, o gerente, de gravatinha de seda, era solícito. Quem sabe seu Vladimir, com sua influência no Catete, não arrumava a vida de um sobrinho que não queria nada com o batente?

D. Isaurinha já fora muito bonita. Chegou a trabalhar de aeromoça da Real.

- Você não conheceu essa mulher antes — dizia Vladimir. — Era um broto. Um corpaço.

O que Vladimir não contou é que, quando se conheceram, Isaurinha era amante de um comandante casado. Eles faziam o vôo para Miami, que levava vinte e quatro horas para chegar, e depois iam namorar no hotel de South Beach. O comandante ainda chegou a andar atrás de Isaurinha, mesmo depois que ela andava já de cacho com Vladimir. O maior trunfo do comandante era ser comandante não apenas de vôo internacional, mas comandante nada mais nada menos que do Constellation.

- Ele é comandante lá pras máquinas dele do Constellation, mas não aqui no Hotel Flórida. Aqui, o comandante sou eu.

Vladimir chegou a flagrar Isaurinha no vestíbulo do hotel, conversando em voz baixa com o comandante. Ah, foi uma confusão aeronáutica: voou alto o quepe, os gritos subiram a alturas, dois ou três sopapos aterrissaram no rosto do comandante.

O rádio Telefunken de Vladimir era feito de um só ouvido: a emissão em português da rádio de Moscou. Eu ia para o quarto de Vladimir escutar em clandestino a vida lá fora. Dziga Vertov era o nome que Vladimir queria ter na sua certidão de nascimento. O pai de Vladimir também fora comunista. Por isso Vladimir se chamava Vladimir. Em homenagem a Vladimir Ilich Ulianov (dito Lênin).

Mas um dia, tudo começou a degringolar. E não foi por causa do comandante, não. Começou no café da manhã.

- Por que você não come?

- Não está vendo?

- O quê? Era pra ver alguma coisa?

- Meu Deus, por que tinha que casar com uma mulher burra?

Isaurinha já conhecia o gênio irascível. Resolveu não dar continuidade à conversa. Comeu sozinha, mas desconfiada. De que o marido estaria falando?

A revolta de Vladimir não era culinária, a revolta de Vladimir era cinematográfica. Vladimir não podia comer o bolo, porque um visor não é boca, um visor é um visor. Não se abre, não mastiga — sim, um visor não deglute porque não tem entrada nem ducto que leve o alimento —, não podia comer, tragar, comer o bolo.

         A insensibilidade de Isaurinha também era dura como o visor. Mas a culpa era dele. Casara com uma mulher que fora modelo de O Cruzeiro, andara pelo mundo afora pela Real, agora queria que a cabeça comissária de Isaurinha tivesse pensamentos cinematográficos. Era demais.

No espelho do banheiro, Vladimir confirmou a monstruosidade plástica.

- Toque aqui — disse Vladimir.

Toquei. O contato com o lábio mole me deu asco. Limpei os dedos, com disfarce, na perna da calça.

 - Só penso em cinema, Aurélio — me confessou. — Só penso em cinema. Antes pensava em cinema e em Isaurinha, mas agora só penso em cinema. Casei com o cinema, os padres não casam com a igreja, as freiras com Jesus Cristo? Eu casei com o cinema.

E Vladimir espichou o lábio — desculpe, espichou o visor.

         - Me vi no espelho, Aurélio, e não é só a boca que virou visor. A cabeça.

         - O que tem a cabeça?

         - Não vê?

         Eu não via coisa alguma.

         - Desculpe, estou sem óculos.

         - A cabeça toda é uma máquina de filmar.

         Antes que eu ou Isaurinha disséssemos alguma coisa, Vladimir saiu do quarto como se fosse chupado pela porta.

         Vladimir levou o visor-boca ou boca-visor para o trabalho. O olho de Vladimir sempre fora uma lente. Engana-se quem via os óculos de Vladimir como óculos. Mas, literalmente considerar o olho lente, a boca visor, era exagero. Vladimir não falava comigo, grunhia. Claro, máquina não fala, máquina roda sua engrenagem. Grunhia como um filme passado muito rápido.

         A cabeça-câmara ou a cabeça de câmara não afetava os relacionamentos comerciais.

         Araújo era empresário do ramo têxtil. Encomendara a Vladimir um curta sobre a família e a indústria que herdara do pai. Queria ver a fábrica em celulóide — um celulóide centenário, chaminés misturadas com bigodes, engrenagens junto com quadros nobiliárquicos na parede, operários saindo da fábrica e discurso do patriarca.

         Uma boca de visor não toma líquido, por que o garçom lhe oferecia bebida? Vladimir olhou com raiva o garçom com o único olho da máquina em que se transformara a cabeça. Trouxe as estimativas de custo? perguntou Araújo. Boca de visor, as orelhas de cravelha.

         - O senhor vai me falir, seu Vladimir — brincou Araújo.

         Por fim não agüentou: O senhor me desculpe, seu Araújo, mas estou com a pulga atrás da orelha (e pensou consigo mesmo, talvez fosse melhor dizer, com a pulga atrás da cravelha). O senhor não nota nada estranho em mim, seu Araújo?

         - Está mais magro — disse Araújo que aperta os olhos e deita a cabeça como quem avalia. — Deixa eu ver mais. Pintou o cabelo. Por que o senhor pintou o cabelo, seu Vladimir?

         - Eu lá pintei cabelo algum, seu Araújo.

         E inflamado e ofendido:

         - Eu tenho é uma máquina na cabeça. Está olhando aqui, e apontou para os olhos. Isso aqui é uma lente.

         Araújo interpretou aquilo de forma simbólica. Os artistas usam símbolos. Ou não usam?

         - Ah, disse Araújo. Uma lente, é claro, uma lente.

         Um mês depois o cineasta Vladimir — apaixonado por Lênin, discípulo de Dziga Vertov —, um mês depois do encontro com o industrial Araújo, o cineasta Vladimir morreu.

         Os últimos dias de Vladimir foram melancólicos. Fechou-se no quarto, não se alimentava, não queria visitas. O que poderia alimentá-lo era película. Mas película não engorda, não dá tutano, não faz o camarada levantar da cama. Boca de visor, orelha de cravelha, os olhos-lente. O pensamento era o mesmo filme, desconexo, mal montado, imagens aleatórias, algumas fora de foco. O foco da infância. O foco da infância tem medo de quarto escuro. O foco tem castigos.

         Fui ao enterro, no Caju. Poucas pessoas. Fumei lá fora, não pude ver Vladimir no caixão. Aliás, nem podia ver Vladimir. Isaurinha pediu para lacrar o caixão. Teve medo. Um ruído estranho, de máquina rodando, saída da cabeça do defunto. Melhor lacrar.

 

 

 
 
 
morte de tio Lúcio
 

Fiquei desempregado mais de um ano. Casado, com contas para pagar, minha mulher trabalhando feito maluca, eu visitando as empresas, recebendo não na cara, a primeira coisa que pegava no jornal eram os classificados. Nem lia o resto do jornal. Já minha mulher trabalhava oito horas em pé no balcão do Othon Palace Hotel, na Avenida Atlântica. Aquilo acabava com meus nervos. Meus nervos estavam em pandareco. Meus nervos. O apartamento em Botafogo, na Marquês de Olinda, era minúsculo. O apartamento se apertava ainda mais. Diminui diminui diminui. Via as janelas diminuírem, o ar pendurado no teto. Um médico me receitou colchão para os nervos, um comprimido que fazia o ar denso baixar do teto.

Como não deu resultado, busquei homeopata. Olha minhas mãos, doutor, como tremem. Indicou-me uma farmácia na Rua da Carioca. Farmácia bonita, toda de madeira e vidro. Escadas rolavam de um lado para o outro a fim de que os funcionários alcançassem os medicamentos no alto da estante. Ô, João, pega o pote de magnésio aí em cima. Os móveis, pesados e escuros, de jacarandá, maciços. Os potes, com pó colorido, davam a impressão agradável de balas pra crianças.

Paguei no caixa. Vim caminhando para a saída da farmácia, quando vi, contra a luz, o vulto de tio Lúcio. Não parou nem me reconheceu. Os anos brincam de esconde-esconde. Há anos que você passa num canto escuro — a brincadeira acaba e você continua no canto escuro. Só podia ser engano, alguém muito parecido. Um sósia. E além do mais, disse com o coração disparado, eu o havia visto contra a luz. É, contra a luz. Esperei do lado de fora da farmácia e mais um pouco saía tio Lúcio. Não havia dúvida, era ele. Segui-o. Mas o homem andava rápido e se perdeu na multidão. Tio Lúcio, na multidão.

         A imagem de tio Lúcio se colou na parede da minha insônia. Olhava para a parede, para a televisão, olhava para o quadro e o quadro era a foto de tio Lúcio. Era preciso arrancar tio Lúcio dos meus olhos.

         O mesmo tipo de roupa, o cabelo glostorado, o jeito magro de gentleman. Não era o tio Lúcio dos últimos tempos: bêbado, desastrado, apaixonado. O tio Lúcio que eu vi tinha pelo menos dez anos menos do que quando tio Lúcio morreu. Que diabo seria aquilo? Resolvi voltar à farmácia para ver se o encontrava. Mas, se era tio Lúcio, por que não me reconheceu? Talvez não tenha me reconhecido porque estava morto. Um morto não deve reconhecer as pessoas, nem mesmo ter memória. 

         Minha mulher disse que eu sofria o pânico de tio Lúcio, a síndrome de tio Lúcio, embora não me explicasse o que vinha a ser o pânico e a síndrome de tal doença. Minha doença era o passado. O sintoma, o desemprego que me colava imagens na parede da cabeça.

         O desempregado tem o vício de empregar-se em pequenezes. O miúdo passa a ser expediente. O detalhe, o relógio de ponto. Vestia-me como quem se emprega. Agora as hipóteses. As hipóteses são boas para quem é obsessivo ou está desempregado, o que dá na mesma. Primeiro, tio Lúcio não tinha morrido e aquele enterro foi uma farsa. O caixão lacrado. A família chorou o rosto deformado do defunto. Mas por que razão tio Lúcio iria enterrar outro corpo e se manter anônimo vida afora? Os mortos têm a imaginação transbordante.

         Voltei, voltei, voltei. A obsessão do desempregado. Atravessei a rua. Aproximei-me dele. Tio Lúcio, chamei. O homem não se virou. Tornei a chamá-lo. Ele deu meia-volta e se perdeu outra vez na multidão. O gerente confirmou que o homem de terno, cabelo glostorado, moreno, trabalhava para a farmácia. O nome de tio Lúcio era Alfredo. O gerente me perguntou se eu era da polícia ou coisa parecida, por que o interesse em seu Alfredo, homem pacato, que trabalhava há anos para a farmácia?

         O revólver não faz volume apenas no coldre, faz volume na cabeça. Mas de que me protegia? Eu devia, em vez de botar o revólver no coldre, era botar as idéias no lugar. Mas eu não sabia onde estavam as idéias, soltas, erráticas, do outro mundo. A fantasmagoria degrada: tivera cargos altos, prestígio, agora, escondido da família e, principalmente, do tempo, era um empregado subalterno.

         Minha cabeça não pode rodar. Um homem que tenha a cabeça que roda não pode dormir, não pode andar, não pode estar no mundo. Eu primeiro tinha que fazer minha cabeça deixar de ser pião. Um pião lento, mas persistente, um pião obsessivo. Depois um homem não pode viver com a presença de um morto. E mais ainda: um homem não pode desconfiar dos seus sentidos. Ter matreirice em relação aos olhos, desconfiar do olfato, olhar de banda para o tato.

         Só havia um remédio: matar tio Lúcio.

         Não sou violento, desconheço como se usa um revólver, aliás, nunca peguei num revólver. Mas tinha que me familiarizar com a arma. Perguntei ao porteiro se conhecia alguém que vendesse arma.

- Conheço, não, doutor. Mas para que o senhor quer uma arma?

- Tenho um sítio, Severino — disse eu. — Acho que tem raposa comendo galinha.

Uma semana depois, Severino me trazia o revólver.      

         Fiz de uma lata vazia o corpo sem entranhas, diminuto, sem membros ou cabeça, fiz da lata corpo humano. Ainda pior: imaginei a cabeça de lata de tio Lúcio. A bala entraria pela lata adentro e não faria mal algum, porque uma lata vazia e a cabeça de um morto os dois não têm vísceras, entranhas, miolos ou coisa que o valha.

         Cheguei perto de tio Lúcio, surpreendi-o por trás e atirei na cabeça dele. Na cabeça de lata dele. Na cabeça vazia de lata dele. Mas a lata começou a sangrar e espirrar sangue que lata não tem. A lata respingou sangue na minha camisa e na minha mão.

Merda. Eh.

Um ano depois, continuava desempregado. Logo, por conseqüência, minha mulher não podia deixar o emprego e não engravidara. Eu continuava a tomar os remédios homeopáticos para os nervos. Certa tarde, estava na fila do cinema, quando avistei tio Lúcio. Quem então eu matara em frente da farmácia homeopática, quem?

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes ganhou o Prêmio Casas de las Américas com o romance O morto solidário, traduzido e publicado em Havana, Cuba, pela mesma Casa de las Américas e, no Brasil, pela editora Revan. Ganhou, entre outros, os prêmios de Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Na área do ensaio, publicou em 1996, pela editora Sette Letras, o livro O narrador do romance, prêmio Austreségilo de Athayde, da UBE-RJ. No final de 97, ainda publica o romance Concerto para flauta e martelo, pela editora Revan, finalista do prêmio Jabuti-98. No ano de 1998, edita Terratreme, poesia, livro que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura, pela Fundação Cultural do DF. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. De volta ao Brasil, em 1995, foi Coordenador da Funarte de Brasília até o início de 2003. É Doutor em Literatura pela UnB. É também co-organizador do livro O imaginário da cidade, editado pela Editora da UnB, em 2000. Nesse ano também publica o livro de poemas Andarilho, da ed. 7Letras.  Em 2004, publica outro livro de poesias intitulado Eterno passageiro (Ed. Varanda). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo, que o crítico Adelto Gonçalves chamou "de uma das primeiras obras primas da literatura brasileira do séc. XXI". Seus mais recentes livros são Manual de tortura (Esquina da Palavra, contos, 2007) e A ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, ensaio, 2007).