Lau Siqueira se arriscou. Saiu da situação cômoda de um estilo já definido e decidiu ousar. O resultado é o bom Texto Sentido (Edições Bagaço, 65 págs.). O livro é aberto e encerrado por poemas visuais. Mas não é esse tipo de experimentação a que se dedica o poeta. Mesmo que mantenha sua relação com a estética herdeira da poesia concreta, Lau Siqueira escapa da prisão dos versos cursos e se arrisca em poemas longos.

 

A diversidade marca o terceiro livro de poemas de Lau Siqueira. O poeta chega perto do lugar-comum — às vezes o ultrapassa, mas mantém com a palavra uma luta equilibrada. Não teme os poemas de amor, os poemas sobre a própria poesia. Sabe que os temas, na verdade, são poucos e que escrever é um contínuo arriscar-se. Dessa aventura, temos belos exemplos como "debandada": nada do meu amor restou/ nem as águas do mar morto/ nem o vinho em qualquer/ porto// nada do meu amor restou/ além dos cacos de espelho/ e um eu que é outro.

 

Mesmo com bons momentos no poema de verso longo, Lau Siqueira é, realmente, o mestre da expressão econômica, do poema conciso. É o que podemos ver na pequena obra-prima "refrão": os ventos são algazarras/ do infinito/ em nossos cabelos gris...// (bis). O humor também comparece aqui, com inteligência, sagacidade e argúcia.

 

Nem o mais tradicional dos gêneros escapou da experimentação de Lau. No poema "quatro paredes", o poeta escreve um soneto, mas sem se preocupar com os rigores de formatações clássicas. E se eu te amo ainda como/ em eterna e cálida despedida/ cozendo os em trapos a vida/ sem ânimo para colher o pomo/ deste olhar lacerado e inútil/ de onde sopro tua ausência (...).

 

Um livro de leitura agradável e fluida. [Astier Basílio, Jornal da Paraíba, 16 de novembro de 2007]

 

 

 

 

 

Ricardo Anísio — Já se vão quase dez anos do lançamento de O Guardador de Sorrisos. Algo o liga a este Texto Sentido?

 

Lau Siqueira Em O Guardador de Sorrisos, radicalizei bastante na experimentação. Foi uma experiência editorial, também de experimentação e ousadia, com o selo Trema dos meus amigos poetas e editores, Antônio Mariano, José Caetano e André Ricardo Aguiar. Naquele momento eu estava com uma necessidade enorme de expelir exatamente aquelas experiências acumuladas e que circulavam impressas em aerogramas, no circuito da chamada arte-correio. Naquela época, as minhas ligações com a Poesia Concreta, Poesia Visual e Poesia Marginal traçaram quase que uma dívida para comigo mesmo, em termos de publicação. Então, penso que me libertei disso. Texto Sentido traduz essas e outras experiências. Aliás, acho que escrever poemas é uma arte de experimentação e de permanente transgressão. Penso até que Texto Sentido não tem nada a ver com O Guardador de Sorrisos. Mesmo assim, traz duas experiências visuais, uma abrindo e uma fechando o livro. Ou seja: permanece o veio libertário.

 

 

RA — A sua ligação com a chamada Poesia Marginal ainda é muito efetiva?

 

LS Não! Eu diria que é afetiva e não efetiva. A Poesia Marginal nunca foi uma grande referência pra mim, exceto pelo carinho enorme que tenho pela poesia e pela poeta e amiga Leila Míccolis.  E também porque a Poesia Marginal era mais uma negação de todas as estéticas. Isso entrava como uma luva na minha rebeldia. Quando descobri a chamada "geração mimeógrafo", percebi que, isoladamente, instintivamente, fazia a mesma coisa no final dos anos 70. A minha ligação, naquele momento, se deu muito mais pelo formato de publicação em folhetos. Acho que o que permanece é a tentativa do texto espontâneo. Na verdade, nunca estive e nem quero estar ligado a movimento algum. Acho que o artista que se preocupar com isso, está perdido.

 

 

RA — Qual a importância que você vê na obra dos irmãos Campos?

 

LS Veja bem: eu creio profundamente na importância da Poesia Concreta, onde os irmãos Campos eram e são dois dos principais ícones. Impossível dissociar a obra deles da Poesia Concreta. Eles serão sempre duas grandes referências, principalmente, enquanto pensadores da Literatura — de vanguarda ou não. Dois grandes poetas inventores, poundianamente falando. Há quem ainda tente negar a importância do que a intervenção deles impulsionou até mesmo e principalmente nos rumos da teoria e da história da literatura mundial. Somente o fato de estarmos ainda falando disso 50 anos depois, já revela a inequívoca importância da obra dos irmãos Campos e mais: a de Pedro Xisto, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e todos os outros concretistas. É tolice negar a história! Não se trata de gostar ou não. Eles influenciaram e influenciam até mesmo quem costuma negá-los. E se incomodaram e ainda incomodam tanto pelas rupturas que causaram, então são ainda muito mais importantes do que imaginamos.

 

 

RA — Percebe-se uma certa banalização do fazer poético, na atualidade. A que atribuir esse estado atual de coisas?

 

LS As facilidades de publicação, hoje em dia, levam algumas pessoas ao equívoco de publicar expressão de sentimentos e vaidades, apenas, como se fossem poemas. Isso, realmente, banaliza. Caso esses arroubos da vaidade humana não fossem publicados com muito mais requinte (muitas vezes) que a boa poesia, não estaríamos nem falando disso. A questão é que hoje, se você tiver dinheiro, você publica uma edição de primeiro mundo, com um projeto gráfico magnífico.  O que alguns livros de poemas nos dão a impressão é que o autor pensou em tudo, menos da sua própria poesia. Poesia não é expressão de sentimentos. É muito pior que isso! A Poesia é uma dúvida e uma dívida cruel na relação turbulenta e inevitável entre a linguagem e a vida.

 

 

RA — O poema "A Revolução das Sílabas" é uma declaração de amor aos concretistas?

 

LS Sim! Meu amor ao concretismo é declarado em cada verso, em cada poema. E é diretamente proporcional ao meu amor pela poesia francesa do século XIX, principalmente, com Baudelaire e Mallarmé. Ou mesmo à poesia chinesa de Li Po e Tu Fu, à Quintana, Leminski, Cacaso, Virgílio, Lorca, Camões, Pessoa, Drummond, Bandeira, Cabral, Rubén Dario, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Mário Faustino, Antônio Risério, à poesia contemporânea brasileira e latina, etc.. Escrever poemas é sempre um ato de amor. Mesmo e, especialmente,  quando selvagem.

 

 

RA — Que acha do livro Teoria da Poesia Concreta, de Décio Pignatari?

 

LS Uma obra fundamental e que tem um lugar especialíssimo na minha estante. Um livro obrigatório para o estudo das teorias da literatura neste século XXI e nos tempos vindouros.  A Poesia concreta foi o primeiro movimento literário brasileiro que nasceu na dianteira da experiência artística mundial e que ainda hoje influencia poetas na Alemanha, Suíça, Argentina e outros países. Agora, deveremos ter muito cuidado para não interpretá-lo com uma mentalidade de fundamentalismo estéril, como se houvesse espaço no mundo da criação, para qualquer Taleban Literário.

 

 

RA — "Figos Maduros" é um poema que escapa do concretismo; isso quer dizer que você flerta com a poesia independente de rótulos?

 

LS A minha poesia procura escapar de todos os rótulos. Sobre o concretismo, até mesmo Haroldo de Campos, antes de morrer, afirmou que não fazia mais Poesia Concreta, mas sim uma poesia da concretude. Acho que "Figos Maduros" é um poema da liriconcretude, para ter aí uma leitura muito pessoal da sua pergunta. A verdadeira poesia independe dos rótulos. Mais do que flertar, eu tenho um caso de amor com a Poesia. E se não me caso jamais é porque se trata de um amor profundamente libertário. Eu amo Poesia em todas as suas formas e conteúdos. Aliás, "forma é conteúdo", não é mesmo?

 

 

RA — Qual a sua visão, hoje, sobre a Geração de 45?

 

LS — Eles reagiram àquela coisa hegemônica do modernismo. E toda reação ao hegemonismo nas artes e na vida, é saudável. E muito natural, aliás. Acho que a necessidade de compartimentalização literária pode até ser dos estudiosos, dos teóricos, mas jamais dos poetas. Na verdade, o modernismo foi abrindo um leque para chegarmos ao que temos hoje. Como contraponto histórico e estético, a Geração de 45 teve uma importância vital até mesmo para a sobrevivência do próprio modernismo como referência. Nesse ponto a Geração de 45 foi tão importante quanto a dos modernistas para uma compreensão mais honesta da Poesia Brasileira.

 

 

RA — Faça uma avaliação da produção poética recente na Paraíba.

 

LS — Eu conheço razoavelmente a produção poética brasileira e não tenho dúvidas em afirmar que a Paraíba está na linha de frente. O que se produz aqui não perde, em qualidade e inventividade, para nenhuma outra região do País. E desafio qualquer afirmação contrária! A cada ano a Paraíba vem revelando nomes no cenário nacional e conquistando respeito no "Eixo" Rio/São Paulo e até mesmo fora do país. Temos por aqui, também, um dos poetas mais significativos da poesia brasileira em todos os tempos: Sérgio de Castro Pinto. Isso precisa ser reconhecido também por aqui, para que a Paraíba possa usufruir o que outras regiões já estão usufruindo.

 

 

RA — Em nível nacional quais os autores e livros que têm lhe chamado à atenção?

 

LS — Tem um cara, na Bahia, chamado João Filho que chamou a atenção da mídia literária com seu primeiro livro de ficção, Encarniçado. Esse cara, no entanto, é um dos melhores poetas que já li. Infelizmente, ainda inédito em versos. Gosto muito de Antonio Cícero, Antônio Risério, Glauco Mattoso, Manuel de Barros, Frederico Barbosa, Alice Ruiz... Gosto da prosa leve, alegre e deliciosa de Andréa Del Fuego. Valéria Resende, Ronaldo Monte, que são daqui, mas despontam no melhor da prosa brasileira. E mais:  Moacir Scliar, Antônio Brasileiro, Ubaldo, João Gilberto Noll, Marcelino Freire e, ultimamente, fiquei muito impressionado com o jovem ficcionista potiguar, Carlos Fialho. Enfim, há uma infinidade de nomes que até se torna injusto citar apenas alguns. Existem muitos outros que não caberiam numa página inteira. Eu sou um leitor assíduo, especialmente da produção literária contemporânea.

 

 

RA — Qual o poeta que mais o inspirou no início de sua produção?

 

LS — Eu aprendi a gostar de poesia, com Castro Alves quando eu tinha, uns 11 ou 12 anos e morava ainda em Jaguarão, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Naquela época, a poesia romântica brasileira me agradava muito. Lá pelos 20/21 anos, descobri Maiakovski, Cummings, Mallarmé, Augusto e Haroldo de Campos, Rilke  e Fernando Pessoa de uma vez só. Como não poderia deixar de ser, pirei. Provavelmente estas são minhas mais profundas influências, até hoje. Acho que toda boa poesia me inspira e me faz respirar melhor.

 

 

RA — Como você definiria esse Texto Sentido no contexto estético?

 

LS — Texto Sentido é uma coletânea de poemas que escrevi de 2002 para cá. Por questão de coerência financeira, publiquei apenas 50 poemas. Não sei te dizer como poderia classificá-lo. E juro que prefiro não defini-lo! Mas, entendo que o minimalismo presente nos livros anteriores, também está ali, como um fio condutor da minha poética. Também acho que se alargam as fronteiras para uma das novas tendências que vem sendo estudadas na poesia contemporânea, o neobarroco. Enfim, estou aguardando outras leituras para ter uma idéia mais acabada sobre o que é, exatamente, esse Texto Sentido do ponto de vista estético. Depois do livro lançado, a gente sente uma certa depressão pós-parto. Prefiro ouvir o que as pessoas dirão a respeito desta criança, de bom ou de ruim.

 

 

RA — Você mantém o blog Poesia Sim. Através dele dá para sentir como anda o interesse pela poética nesses tempos tão duros?

 

LS — O Poesia Sim é uma espécie de carpintaria literária interativa. Não coloco ali nada que seja definitivo, com raríssimas exceções. Mesmo assim, o Blogger já apontou o Poesia Sim como um espaço para os jovens que querem conhecer a boa poesia contemporânea, sem os embaraços da liturgia acadêmica. Também foi através do blog que cheguei aos livros didáticos da Rede Pitágoras, em Minas, ao projeto Dulcinéia Catadora, em São Paulo e outros tantos espaços importantes para a minha história na literatura. A maioria das pessoas que comentam por lá são jovens escritores com os quais costumo trocar impressões sobre a literatura e sobre a vida. Banalidades profundas, ou profundidades banais. E assim funciona o meu blog.

 

 

RA — Se tivesse de ir a uma ilha deserta, qual livro levaria consigo?

 

LS — Um livro fundamental para ler numa ilha ou numa rede, no quintal de casa, enfim... é Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Mas, certamente que para uma ilha deserta eu preferiria, também, uma companhia cálida e carinhosa para uma leitura conjunta e amorosa das sombras dos coqueiros.

 

 

 

dezembro, 2007
 
 
 

[Publicada, originalmente, no Jornal O Norte, João Pessoa-PB, em 08/11/07]

 

 

 

 
 

Lau Siqueira (Jaguarão/RS). Poeta, publicou O comício das veias (João Pessoa: Editora Idéia, 1993), O guardador de sorrisos (João Pessoa: Editora Trema, 1998), Sem meias palavras (João Pessoa: Editora Idéia, 2002), Texto sentido (Recife: Editora Bagaço, 2007) e Aos predadores da utopia (São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007). Consta de algumas antologias, como Na virada do século — poesia de invenção no Brasil, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa (São Paulo: Editora Landy, 2002). Participa das coletâneas anuais do Livro da Tribo (São Paulo: Editora da Tribo). Vive em João Pessoa. É autor do blogue Poesia Sim.
 
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Ricardo Anísio. Poeta, jornalista, escreve no Jornal O Norte, da Paraíba. É autor, entre outros, de Canção de Fogo (Recife: Editora Bagaço, 2007) e MPB de A a Z (João Pessoa: Editora Idéia, 2005).
 
 
 
 
 

Astier Basílio. Poeta, repórter do caderno "Vida e Arte" e editor do suplemento "Augusto" do Jornal da Paraíba. Entre suas publicações destaca-se o livro Searas do sol (João Pessoa: Editora Idéia, 2001).
 
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