©mafalda veiga
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

No Leito Variado das Águas

 

 

Sobre um mar de rosas que arde (...)

asas no azul, melodias,

e as horas são fluidas da nau

 

Pedro Kilkerry,

Sobre um mar de rosas que arde

 

 

         Nesta secção tentamos mostrar como a água continua a correr na poesia quotidiana de Mafalda Veiga. Dizemos quotidiana com a intenção livre de quaisquer entonações pejorativas mas, sim, por estar presente no correr dos dias e da vida da cidade. Pela cidade, a viagem prossegue após o processo de maturação da personagem, presenciado no seguimento das secções anteriores. Nesta ficção, parece que a personagem declama a doutrina de Heráclito de que estudei-me a mim mesmo18, fazendo-se necessário uma intensificação cada vez maior da interacção com os objectos reais do mundo, para novamente vê-se neles. Estamos cada vez mais convencidos que, pelo menos na maior parte do presente cancioneiro por nós escolhido, a água corre no imaginário venoso de Mafalda, apesar de já podermos ter observado algumas excepções. E não é apenas um tipo de água; são várias águas que se disfarçam. Um caso destes, pode ser verificado no uso da máscara do rio em Cidade, por onde as correntes correm. Só que, mais uma vez, a fluidez parece não ser apenas líquida... Em primeiro lugar, neste cenário civilizado, identificamos figuras representativas da volubilidade (cigano) e a conjugação verbal do movimento (passavam, andámos, cruzamos):

 

À noite
No silêncio da rua
Passavam ciganos cantando
E a cidade chamava
Nas luzes perdidas do rio

 

         Em segundo lugar, o sujeito poético em sua passagem pelas ruas (leito) da cidade (rio) de carro (barco), contempla as edificações (resquícios existenciais do enfado da imobilidade) mortas, representadas em prédios calados, homens cansados e se reconhece em movimento. O sujeito observa tudo e bebe. Parece confundir sua identidade. Algo nele sobrevive desesperadamente ao longo de toda poesia (jornada). Porém agora sua perspectiva é diferente, pois faz parte do movimento do rio e sente uma vertigem, subtilmente presente, influenciada pelos objectos ilusoriamente estáticos. Sente uma vertigem, não causada pelo movimento sobre si, mas sim pela ausência de movimento sobre o que há fora de si. Será que a vertigem sentida ao ver os elementos estáticos, é causada por uma tentação da personagem, ao recordar-se do seu sentimento inicial e desejo de fixação? Por outro lado, em movimento, o ser está em inércia e enxergar o repouso, confere-lhe a sensação de quebra de sua inércia; passagem do seu estado para outro; só uma desaceleração o transporta do seu movimento para o repouso. E toda a desaceleração (ou aceleração) causa uma certa vertigem, tal qual os movimentos acelerados e bruscos numa montanha russa, causadores de emoções:


No teu carro
Andámos por aí
Bebemos cerveja e falámos
Entre sombras de prédios calados
E sonhos de homens cansados
E algo em mim sobrevive
Desesperadamente


Há escuro
Na inquietação do vento
Nas luzes esquecidas do rio

E tentam roubar-nos os dias
Tentam calar-nos as forças
Mas algo em mim sobrevive
Desesperadamente

 

         O sujeito segue rompendo os horizontes, clama pelo sol para iluminar as águas do rio, ainda entranhadas daquele difuso enegrecimento presente em Charco. Finaliza, revelando sua admiração e vontade de pertencer ao grupo de ciganos, estes, sábios andarilhos e conhecedores do segredo das coisas passageiras, pelo qual tecem sua filosofia nómada de vida e cuja consciência de mutação corre nas veias. De outra forma, Heráclito diria que quem quiser falar com inteligência deve fortalecer-se com o que é comum a todos; como a cidade se fortalece com a lei, e muito mais. Porque todas as leis humanas se alimentam da única lei divina e esta doutrina tudo o que quer, basta a tudo e tudo supera19. E no universo de Mafalda, a lei divina é a do devir. Podemos observar também em Cidade que a luta contra a instabilidade geral é traduzida através da dinamogenia do caminhante (nadador) contra o vento (a corrente) que acalma o desespero e a fúria incómoda:


Quero que por fim nos traga o sol
Andando pelo rio, perdidos na claridade
Hoje só quero deixar viver este momento
Hoje só quero caminhar pela cidade


No teu carro
Cruzámos as fronteiras
Bebemos cerveja e sonhámos
De tudo o que há sem regresso
Quem guardará o passado?

Entrego-me

Em passos sem destino
Até onde a fúria se acalma
Vou procurando a gente
Que à noite na rua cantava
E algo em mim sobrevive
Desesperadamente

Tudo indica que a personagem parece ter presenciado levemente a experiência composta da mistura substancial ar e água, no imaginário da matéria. O encontro da fria brisa alisando o dorso do rio é cenário melancólico a se derramar sobre a cidade. Seguindo esta sequência e tomando como mote a vida cigana, Mafalda agarra-se no espírito de liberdade dos vagabundos (ou serão marujos?) e aconselha um desancoramento não apenas físico, mas principalmente espiritual. Novamente, ruas e leitos de mares ou rios se confundem. Assim começa A Fantasia:

 

Vais pela rua
E finges que navegas
Desancorado até à alma
Percorres os mares do mundo
Hoje és um rei e finges que te entregas
Ao vento e à tempestade
Como se fosses um vagabundo

         Nessa investida, os elementos se misturam mais intensa e claramente. O sujeito poético sente a maresia, incenso natural que existe, simultaneamente, por causa do mar (água) e da brisa (ar). Porém, desta vez nada perturba e o que impera é uma sensação desbravadora, contemplativa e ascensional:


A aventura sente a maresia e madrugada
Corre deixa-te levar pelo vento quente
Que se cola ao teu corpo e te embala sempre
Até quereres voltar

Por fim, depois dessa aparição sensual tépida no vento, indica-se o caminho descritivo da fantasia, pulverizado de elementos com potenciais sinestésicos:

 

A fantasia tem brilhos como as estrelas
É morna e doce e apetece
Solta-la a voar no mundo
Hoje és um rei na tua caravela
A navegar num sopro de magia

 

 

 

Quando a Fonte Cessa... O Fogo!

 

 

O fogo é ultravivo; [...] sobe das profundezas

da substância e oferece-se como o amor.

 

Gaston Bachelard,

A Psicanálise do Fogo

 

 

Segundo Bachelard, o problema do fogo torna-se [...] directamente psicológico20, mais que em qualquer outra substância. Este elemento é íntimo e pode ser tomado como um dos princípios de explicação universal, por poder contradizer-se21; é o que veremos logo no início da próxima canção, onde o mesmo fogo inimigo, torna-se a força que irá impulsionar o ser. O fogo aceita o bem e o mal, e o primeiro contacto do ser com ele, mostra-se mais como um ser social do que natural. O lado negativo do fogo surge como proibições durante a infância, quando a sociedade alerta e repreende a criança sobre os perigos em lidar com este elemento. Bachelard cita este acontecimento como o responsável pela criação do complexo de Prometeu22, onde a criança, secretamente, se arvora para lidar com as chamas, longe da vista dos seus pais. Outros complexos são o de Novalis23e de Empédocles24e parece que encontramos exemplos subtis destes, em canções de Mafalda Veiga.

Contra o fogo, se a água surge como inimiga tempestade, não importa, é vencida. Se o inimigo ameaça com seu fogo ardente, o sujeito contamina-se deste ardor e deixa crescer uma chama ainda maior. O amor e a busca da felicidade fazem uso das armas imponentes do fogo, que nasce queimando através da separação. Em Toda a Parte começa afirmando a substancialização do espaço inimigo. E como já foi dito, infectar-se deste fogo pode ser o segredo para se vencer o inimigo:

 

A distância é um fogo
Onde vou chegar
Num abraço fechado
Para te levar

 

Bachelard conta-nos que o fogo é para o homem que o contempla, um exemplo de devir urgente e um exemplo de devir circunstanciado25. Parece que podemos averiguar um exemplo disso na letra da canção em questão. O fogo é mais rápido do que a água que corre; seu impulso se agiganta; ele força, empurra, impulsiona a fluidez do tempo a correr, actuando em favor do seu desejo de mudança e o fazendo chegar de imediato à outra vida.

O sujeito aos poucos vai chegando e incorporando as propriedades daquela distância hostil e transfigurando-se com as qualidades da sua substância. Quaisquer adversários prenunciados não ardem mais que o fogo inicial, antigo inimigo transformado em substância conivente, por alimentar e contagiar o seu espírito com sua pujança, sua verticalidade, sua personalidade ascensional, sua virilidade, permitindo-o superar tudo pela frente:

 

Por campos abertos
Por onde puder
Levar-te por dentro
Pra não te perder

Nem com mil tormentas
Que arrasem o mundo

Em qualquer lado
Onde quer que eu vá
Levo no corpo o desejo
De te abraçar

 

         Movido pela força e levado pelas pernas dos sonhos, o corpo é reservatório para uma canção apreendida; uma sonora prenda a ser oferecida ao seu amante, no instante tão sonhado, em que o encontro deixará de alimentar a busca para amplificar, ainda mais, a chama. Identificamos nesta canção, segundo Bachelard26, o sentido do impulso que a matéria tem; uma força inexaurível, acima de todos os perigos. Cantar uma canção é uma forma de festejo, e este relacionou-se à produção do fogo por fricção; a sexualização primitiva do fogo27. Subtilmente sentimos essa relação presente na canção. O indicativo é o desejo de abraçar, evento este relacionado ao tacto, ao contacto físico e por isso, ao atrito; a festa de cantar uma canção ocorreria depois da consagração do contacto corporal, ao que remete-nos uma indicação do complexo de Novalis. Como o abraço tem a sua gesticulação desenhada no formato de um invólucro, o princípio feminino das coisas indica ser, este, um fogo feminino que investe as coisas pelo exterior28. Entretanto, a pesar disso tudo acontecer no espaço da mente, na lembrança, onde quer que o sonho leve o ser, o fogo sexualizado é por excelência um traço de união29: une matéria e espírito, vício e virtude, idealiza os conceitos materialistas e materializa os conceitos idealistas:

 

Em toda a parte
Onde quer que o sonho me leve
Hei-de lembrar-me de ti

Por outros caminhos
Hei-de vaguear
Num abraço fechado
Para te levar

E há uma canção
Que um dia prendi
Eu hei-de cantá-la
A pensar em ti

 

Outra labareda irradia o seu calor e a sua claridade. Em O Lume há uma consciencialização de que a sensação exterior de liberdade é dependente da consagração da sensação interior. Simbolicamente, coabitam os quatro elementos, porém o domínio é do fogo. Parece-nos que esta quádrupla coexistência, reserva-se ao âmbito apenas vocabular alegórico pois, do contrário, uma racionalização imperaria no imaginário da matéria. O casamento substancial, do qual Bachelard nos falou, é dado entre duas substâncias; a partir da inclusão de uma terceira há um rompimento do tecido elástico da fantasia. Quanto a composição à dois, esta é regida pelo domínio apenas de uma; uma masculinização profere o destaque da substância dominadora. Parece-nos que o conúbio substancial, neste caso, prevalece entre a água e o fogo. O domínio sugere ser deste último, pela coragem, pela força, pelo conselho de libertação, apesar de muitas imagens envolverem a água:

 

Vai caminhando desamarrado
Dos nós e laços que o mundo faz
Vai abraçando desenleado
De outros abraços que a vida dá

 

Vai-te encontrando na água e no lume
Na terra quente até perder
O medo, o medo levanta muros
E ergue bandeiras pra nos deter

 

Na química substancial, a terra se aquece, é quente; os ventos são evocados para darem propulsão ao veleiro no alto mar; as imagens materiais se embaçam; o sujeito parece recorrer às quatro forças em seu favor. Por essa recorrência em desejo manifesto de completude, parece-nos que toda a energia positiva é simbolizada e regida pelo fogo:

 

Não percas tempo, o tempo corre
Só quando dói é devagar
E dá-te ao vento como um veleiro
Solto no mais alto mar

 

Liberta o grito que trazes dentro
E a coragem e o amor
Mesmo que seja só um momento
Mesmo que traga alguma dor

 

Por fim, essa energia grandiosamente manifesta e louvada, tem uma origem mínima no fundo do ser. Como diria Bachelard o objecto nos designa mais que nós o designamos a ele30. O sujeito afirma seu brilho eterno:

 

Só isso faz brilhar o lume
Que hás-de levar até ao fim
E esse lume já ninguém pode
Nunca apagar dentro de ti

 

Iremos sugerir, observando esta canção, que o sujeito parece-nos transmitir um complexo de Empédocles não concretizado. Pode parecer forçar a interpretação, porém, o sujeito caminha numa única direcção; aconselha soltar a voz, sugere tomar um rumo, mesmo que este rumo traga a dor. Este complexo une o amor e o respeito pelo fogo31. Ao fim do poema, as atitudes viris fazem brilhar o lume que hás-de levar até ao fim. O sujeito só faltou consagrar o complexo, só faltou declarar, explicitamente, entregar-se à morte gloriosa pelas chamas, onde perde-se tudo para tudo ganhar. 

 

 

 

Notas