©mafalda veiga
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Crítica ao Itinerário Proposto

 

 

Nenhum progresso se torna possível

no conhecimento objectivo

sem a ironia autocrítica de se troçar a si próprio

 

Gaston Bachelard,

A Psicanálise do Fogo

 

 

Nesta secção pretendemos criticar a nossa quase-ficção criada para analisar as canções de Mafalda Veiga escolhidas. Pretendemos interpretar o sentido construído a partir do postulado deste nosso tecido ficcional. Por esta última afirmativa, podemos extrair uma definição específica que ronda em torno da hermenêutica32. Ao criarmos um sistema de valores e significados e tentarmos criticá-lo, depositamos no mesmo as nossas expressões. Acreditamos, porém, que iremos aqui tornar razoavelmente objectivas, as descrições de sentido subjectivamente intencional porque, através da utilização das mesmas ferramentas bachelardianas fundamentadas numa psicologia objectiva, criticaremos o sentido adquirido pela história aqui escrita. Lembremos que, antes de começar esta história, pré fixámos pelo menos três elementos: uma sequência imposta de um determinado número de letras de músicas, uma personagem abstracta cujas idiossincrasias variam de acordo com o sentido de cada letra particular e uma cronologia pela qual tal personagem evoluirá no tempo.

Cada obra, cada poema, cada canção, possuem características particulares, um sentido amplo, um movimento expressivo, uma impressão pulsante característica e que mina de sua constituição. Obviamente existem as excepções. Cada interpretação porém, tem sempre a acrescentar algo ao universo subjectivo abarcado pela obra. Especificamente, da forma que propomos observar as canções de Mafalda Veiga, existiu uma personagem abstracta, invisível a caminhar de uma canção para a outra e por entre cada uma das secções. A cronologia interpretativa regeu essa personagem emocionalmente pelo tempo compositivo lhe imposto. A diversidade de temperamentos ao longo das secções, deu-lhe vida realizada através da união dos vários temperamentos distintos de cada segmento temporal contido em cada canção. A soma desses intervalos de tempo, pôde fazer surgir um todo incutido de um sentido totalitário. Confessamos que não buscamos notas biográficas da autora, a ponto de descobrirmos a ordem em que a mesma concebeu as referidas canções, para podermos comparar com a nossa ordem. Entretanto, talvez este exercício bastante prático não seja de interesse para o trabalho em questão, onde o motivo é, agora sim, tornar prática algumas das discussões teóricas apreendidas durante os seminários da referida disciplina. Sendo assim, precisamos fazer o esforço crítico de erguer uma vista panorâmica por sobre todas as secções aqui elaboradas e tentar apreender as impressões que cada uma pôde nos deixar. Além do mais, precisamos dissolver tais impressões entre si e observar a nuance gerada a partir daí, guiada com a seta do tempo que nos impomos.

         Linguisticamente falando, contribui para a transmissão do imaginário (do autor para o leitor), toda a estrutura conectiva da língua. Os processos de coesão vão construindo o alicerce do castelo da fantasia, ao qual o ouvinte ou o leitor se debruçará. Os elementos microscópicos33 dos enunciados e das frases, tais quais os referentes, os co-referentes, as cadeias anafóricas, as conjunções, os paralelismos e tantos outros, formam a sustentação de cada letra como um mini-universo. Essas conexões são estendidas e se derramam por sobre as canções, construindo uma amarração entre elas e cobrindo-as com um sentido universalizante. Como diria Italo Calvino, na alastrante vastidão da escrita, a atenção do leitor distingue segmentos mínimos, associações de palavras, metáforas, nexos sintácticos, passagens lógicas, particularidades lexicais que se revelam de uma densidade de significado extremamente concentrada34. Postularmos uma personagem e uma sequência entre as músicas, já amplifica e qualifica o significado de cada uma, perante o todo.

         Materialmente falando, não conseguimos nos libertar da sensação de mudança e de movimento. Em nossa cronologia há uma mudança nítida. Percebe-se que o ser começou querendo se conhecer melhor, apalpando seu espírito. Um ser introspectivo, a sonhar com uma utopia e começando a angustiar-se ao interagir com o mundo exterior. O sujeito começou a beber da líquida matéria da realidade do mundo e misturou-se a ela. Transformando-se nela, experimentou de suas faces obscuras e a angústia experimentada foi se adensando. Todo este movimento parece-nos uma alquimia. Podemos sugerir que, tendo como base a substância água, a presença das secções onde versam as outras substâncias, por vezes a aparição composta da substância água-ar é fruto da propriedade alquímica da água. O sujeito inicial líquido, sugere-nos pensar na água como o elemento mais favorável para lustrar os temas da combinação dos poderes35: assimila substâncias, essências, impregna-se de cores, sabores, cheiros. Mesmo quando a compositora realiza aquela parada nas margens do rio para explorar a terra, a água não deixa de estar presente através da simbologia que remete às sombras da ribeira e as águas de Planície e a chuva de Restolho. Certo estamos que, por vezes, a compositora concebe letras com impressões impregnadas da matéria terra e da matéria ar, mas a água sempre se mostra presente de alguma forma. A nossa personagem caminhou um pouco pela terra, mirando o movimento de asas; flutuou levemente pelo ar, porém, através de subtis combinações com o fluido mais denso hídrico. Pudemos testemunhar também uma presença líquida em Mafalda, mesmo quando a pujança do fogo foi explícita.

A nossa Mafalda, aqui projectada, flui num córrego donde às vezes é acometida por uma brisa leve; donde a terra pode-se acessar através das margens; donde um movimento pós-fronteiriço a lança para frente numa luta de libertação. Nossa Mafalda é alquimista por ter realizado algumas experiências com o imaginário da matéria. Como tentou demonstrar Bachelard36, toda a alquimia se encontra repassada de um imenso devaneio sexual, um devaneio de riqueza e de rejuvenescimento, um sonho de poder. Entretanto, por um lado, este devaneio sexual é um devaneio do fogo. Para Heráclito, a substancia que é o princípio do mundo é o fogo. O fogo, porém, na sua doutrina perde o seu carácter corpóreo: é um princípio activo, inteligente e criador. Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi criado por qualquer dos deuses ou dos homens, mas foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com ordem regular se acende e com ordem regular se extingue37. Mafalda circulou por entre as secções deste trabalho, em constante conflito com o meio exterior, com o tempo, consigo própria, ao que reafirmamos o pensamento de Heráclito de que a luta é a regra do mundo e a guerra é comum geradora e senhora de todas as coisas38.

Toda essa movimentação, em nossa visão panorâmica, parece-nos produto da união mais famosa entre os quatro elementos materiais; parece-nos fruto de uma mistura substancial que a nossa Mafalda Veiga realizou entre a água e o fogo. Quanto ao fogo, este dá ao homem que sonha, a lição de uma profundidade que possui um devir39. A mudança é uma saída do fogo ou um regresso ao fogo. Todas as coisas se trocam pelo fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas mercadorias e as mercadorias pelo ouro40. Quanto à água, quanto a sua característica reflexiva, narcisística, ela é o olhar da terra, seu aparelho de olhar o tempo41 passar. Reflecte a passagem do tempo, vertiginosa, e foi isso o que observamos quando impomos uma seta temporal regendo as canções escolhidas. A água é um tipo de destino essencial que metamorfoseia incessante a substância do ser. Compreende-se com a água, mais dolorosamente, uma das características do heraclitismo42. A manipulação dessas duas substâncias dá a força motriz à nossa Mafalda Veiga, impulsionada pelos desejos compostos, rompendo os horizontes a partir do horizonte de si própria: o importa se for uma gota só de loucura que faça oscilar o teu mundo e desfaça a fronteira entre a lua e o sol43. Sentimos a combinação da mobilidade dessas duas substâncias sendo no fogo, sua aparição mais robusta ao fim da ficção que criamos para Mafalda Veiga.

Podemos concluir esta nossa argumentação de forma ainda mais, reforçadamente, resumida. Pela verticalidade sofrida por nossa Mafalda Veiga, rompendo-se introspectiva a partir da água e soltando-se aérea nas asas do fogo; fazendo uma média do seu imaginário sugerido, apoiada na psicologia objectiva de Bachelard; e por todo o comentário tecido nesta secção, concluímos que a resolução da equação do imaginário de Mafalda Veiga aqui apresentada, dá um resultado material água-fogo, com o domínio masculino deste último elemento. O fogo é, entre os factores de imagens, o mais dialectizado; quando vai até ao fundo de um animismo encontramos sempre um calorismo44. Podemos achar o paraíso no seu repouso ou no seu movimento, na chama ou na cinza45. Enquanto que, logicamente, entre a água e o fogo, um evoca o outro, sexualmente um deseja o outro46. Diante da virilidade do fogo, a feminilidade da água é irremediável. O princípio feminino das coisas é regido pela superficialidade, pelo invólucro; o calor feminino acomete as coisas pelo exterior. O princípio masculino das coisas envolve um poder súbito; o calor masculino acomete as coisas pelo interior, por dentro47.

Se formos convidados a escolher uma palavra que defina Mafalda, já que estamos diante de dois elementos (água e fogo), resumiríamos, num primeiro impulso, o seu devaneio pela palavra movimento. Vem a calhar, numa sugestão mais reflexiva, substituir esta, por uma espécie de sinónimo mais adequado à temática, isto é: música. Porém, fique claro que se trata de uma música reflexiva, de busca, às vezes agonizante, às vezes perturbada, de sonoridade ontológica, de expressão esperançosa, de auto-compreensão e que finaliza no grito libertino da imponência.

Devido a essa denominação musical, feitas as ressalvas, quanto aos regimes do imaginário que enquadramos a nossa personagem, pudemos testemunhar, desde o início, uma presença mínima de movimento. Num trabalho do fogo sobre a água, parece que um líquido dentro do ser, se esquentava; criava bolhas agitadas na iminência da ebulição. O ser sofreu diversas mudanças. O ser evoluiu, mas repetiu, antifrasicamente, os seus dilemas originais. Mafalda, embebida na diversidade substancial que experimentou, dinamicamente confrontou-se com termos antitéticos, fazendo desse esquema a base da sua lógica cineticamente musicalizada. Na sua evolução histórica, presenciamos um progresso pujante, porém ainda sem ausentar-se de suas indagações existenciais, quando ela, em O Lume, mostra-se poderosa com a ressalva de que mesmo que seja só um momento, mesmo que traga alguma dor. Por toda esta evolução, retornando e não abandonando os mesmos questionamentos, inclinamo-nos para enquadrar a nossa personagem num progresso espiral, um progresso sintético.

Afim de concluir com as palavras da própria Mafalda Veiga, agora real, a auto biografia da nossa Mafalda Veiga imaginada pode ser descrita através da imagem feminina errante contida na Lenda de Uma Cigana:

 

A lenda de uma cigana

Adormecida ao relento

Que perdeu a caravana

Por seguir o pensamento

 

Tem dias que anda pairando

Nos rumos do mundo

Tem dias que anda rondando

Nas pressas do tempo

 

Diz a lenda que a cigana

Pelo caminho onde viera

O xaile tinha perdido

E um vagabundo o trouxera

 

Sacudindo o pó e as mágoas

Como se a cor acordasse

Num abraço dançou com ela

Antes que o vento a roubasse

 

Só o vento nos roda a saia

Só o vento nos faz dançar

Nos confunde os passos na areia

Muda o rumo às águas do mar

 

No silêncio mal se ouviam

Dançar descalços na areia

Numa noite quase fria

Estava a lua quase cheia

 

E pra rasgarem o escuro

Ou fugir à solidão

Ataram corpos cansados

Na sombra vaga do chão

 

Quando o sol entorna o dia

Ficara o xaile esquecido

E os passos da cigana

Já o vento tinha escondido

 

Ficou só o vagabundo

Resgatando uma ilusão

Com a alma amordaçada

Na palma da mão

 

Só o vento nos roda a saia

Só o vento nos faz dançar

Nos confunde os passos na areia


 

 

 

Conclusão

 

 

Agora, que a chuva cai, devagar

Lá fora, e a noite vem devorar

O Sol, e tudo fica em silêncio

Na rua, e ao fundo, ouve-se o mar

 

Mafalda Veiga,

Ouve-se o Mar

 

 

         De início tínhamos poemas com uma aparência cambiante, mais ou menos indefinida. Depois as imagens foram tomando forma e nexo, a poeira vaga parece que foi se condensando a ponto de começar a constelar e fazer surgir uma camada cada vez mais espessa e profunda de matéria, com volume e superfície. É óbvio que fomos nós os geradores da cronologia deste universo. O ser também foi materializando-se; ganhou a essência do movimento através de uma semente água-fogo; ganhou funcionalidade e mostrou atitude na função da compositora e da autora; depois foi baptizado; ganhou nome. Mafalda Veiga decerto não compôs essas letras de canções na exacta ordem que expomos aqui. Porém, podemos afirmar que existe uma unidade presente na sua poesia, uma coerência, um sentimento comum que nos possibilitou criar, em sobreposição, a nossa ficção itinerante, esta não sendo nada mais do que uma forma de testemunhar a referida universalidade. Correremos o risco de exagerar com a próxima expressão ao afirmar que tentamos propor com este trabalho, uma espécie de génese substancial. Pudemos presenciar aquela expressão, tão bem empregada durante os seminários da disciplina Literatura Portuguesa Contemporânea I, da topologia poética emergindo através da combinação material.

Pudemos assistir à realização das palavras de Bachelard, na prática deste trabalho, quando disse que a imaginação é uma planta que necessita de terra e de céu, de substância e de forma48. Testemunhamos desde uma quase completa ausência de espacialização nas primeiras canções, onde o ser igualmente disforme, buscava-se em seu espaço utópico até o afloramento de uma consciência de mundo mais próxima do real. Naquele momento inicial, apenas a matéria latejava. A espacialização aos poucos foi ganhando forma e, junto com isso, o universo poético de Mafalda Veiga foi sendo alargado. A fusão das matérias, pulsando dentro do ser, deu-lhe corporalidade; criou os rios, os mares; abriu os campos, os desertos; soprou os ventos e as caravelas; materializou os objectos; ergueu as cidades; deu vida a outros seres. Segundo Bachelard, a paisagem onírica não é um quadro que se povoa de impressões, é uma matéria que pulula49. O imaginário poético de Mafalda Veiga mostrou-se assim, sustentado por um lirismo de raiz substancialmente imaginante, conduzido por uma constante necessidade ontológica de auto-reconhecimento. Um constante movimento de busca seja, dantes, de um mundo sonhado, seja, depois da interacção com o mundo real, da projecção e representação deste, no imaginário do seu cancioneiro. Porém, na média, sua genética errante não deixou de ser activada e quando não, parece que estava sempre latente. Na sua activação, conduziu-a para a construção de uma sua espacialidade poética. O imaginário da matéria carregou, como numa bandeja, os diversos cenários paisagísticos de Mafalda Veiga nessa jornada bastante interessante.

 

 

 

Notas | Músicas consultadas | Bibliografia 

 

 

setembro, 2007

 

 

 
 
João Araújo nasceu em Recife, Pernambuco. É bacharel em Física (UFPE/1997), com Mestrado em Física da Matéria Condensada (UFPE/2000) e em 2004, especializou-se em Literatura Brasileira pela mesma Universidade, com a monografia A commedia dell'arte no lirismo do carnaval de Pernambuco, publicada em livro um ano depois. Paralelo à caminhada acadêmica, manteve sempre uma vida cultural ativa, participando de várias produções fonográficas, publicações de capítulos em livros e composições musicais. Atualmente, reside em Portugal onde finaliza o Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora. Mais informações em seu blogue: http://www.jpoeta.blogspot.com