Vinda do fundo, luzindo

Ou atadura, escondendo

Vindo escura

Ou pegajosa lambendo

Vinda do alto

Ou das ferraduras

Memoriosa se dizendo

Calada ou nova

Vinda da coitadez

Ou régia numas escadas

Subindo

 

Amada

Torpe

Esquiva

 

Bem-vinda.

 

(H.H., Da Morte. Odes Mínimas)

 

 

A Unicamp tem se mostrado disposta a bancar a realização de um congresso internacional a respeito da obra de Hilda Hilst, universidade a que esteve sempre ligada, no final deste ano ou mais provavelmente no que vem, 2006. Coube-me apresentar um mapeamento preliminar de questões pertinentes ao conjunto da obra de Hilda, que possa eventualmente ser interessante para balizar o amplo call for papers do futuro congresso. Inicialmente, convêm ter em mente que falamos de uma obra bastante extensa, composta de 41 livros éditos, em pelo menos 4 gêneros, isto é, poesia, prosa de ficção, teatro e crônica, afora toda a documentação relevante que a Unicamp possui da autora, a maior parte depositada no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), graças a duas grandes compras efetuadas pela Universidade. Como é sabido, enquanto organizador das obras completas de Hilda, redistribuí esses 41 livros éditos em 19 títulos, os quais estão sendo publicados com capricho pela Editora Globo — nos dois sentidos da palavra "capricho", isto é, com muito cuidado e ao mesmo tempo com uma disposição de espírito inexplicável em termos apenas das razões de mercado, que usualmente sobram para explicar as ações das editoras. Ótimo: o estereótipo foi implodido neste caso. E outros de tipo semelhante terão mesmo de ser implodidos, para fazer o serviço esperado aqui que é falar bem de Hilda. Falar bem, isto é, não falar a favor, que em geral é o gênero menos sofisticado e convincente de falar bem, mas falar de modo a levar a sua obra a sério, criticá-la em seus vários aspectos pertinentes, levantar as mais consistentes e incômodas questões admitidas por sua obra incomum.

Para me desempenhar da tarefa do mapeamento de questões pertinentes à sua obra, parti de um texto ainda um tanto perturbado, que escrevi para a Revista da Fapesp, nos dias imediatamente seguintes à morte de Hilda. Parti, sim, e fui me afastando dele, segundo as questões se encadeavam nem sempre de modo organizado em minha cabeça. Não é um bom augúrio: um mapa produzido ainda sob impacto afetivo e à mercê de derivações circunstanciais. Espero, entretanto, que minimamente sirva ao propósito de evidenciar algumas direções menos óbvias dos estudos hilstianos. Eis então o que pude fazer.

 

 

Persona personalis vs. persona ficta

 

A morte de Hilda Hilst (1930-2004) encontra ainda engatinhando a questão da literatura de Hilda Hilst. Embora a autora tenha alcançado grande notoriedade pessoal, por conta de uma inteligência incomum, de um temperamento verdadeiramente exuberante, e de uma prontidão de espírito capaz de sempre surpreender as pautas banais das entrevistas, parece-me relevante enunciar aqui que a sua obra, de rara extensão e variedade, ainda é largamente desconhecida. A rigor, a meu ver, ela jamais obteve uma única crítica suficientemente abrangente e esclarecedora, a despeito de ter havido uma ou outra leitura bem feita de textos particulares. O mais foi atribuir-lhe aquele mesmo tipo de encômio clichê que se confirmou amplamente no noticiário de sua morte: mulher ousada, original, avançada para a sua época, louca refinada e explosiva etc.

Não é difícil imaginar hipóteses para a fixação desse quadro em que a imagem pública da artista como tipo excêntrico predominou largamente sobre o conhecimento da obra. Contudo, tantas quantas sejam, nenhuma delas há que desculpe um simulacro de crítica face a uma obra que realmente demanda crítica de verdade. E para não deixar de levantar algumas dessas hipóteses, relaciono as seguintes, que trago na ponta da língua: o comportamento liberal de Hilda face aos padrões morais ou moralistas de sempre; a célebre beleza da autora; a distância que a sua obra mantém dos valores modernistas predominantes no Brasil, e ainda mais em S. Paulo, sobretudo no que toca à questão do conteúdo especificamente "nacional" da literatura, que simplesmente não se põe para ela; a dificuldade de leitura básica de seus textos, especialmente os de prosa, dada a sua exigência de erudição literária, filosófica e até científica, que acaba gerando o emprego de um "vocabulário final", para dizê-lo à maneira de Richard Rorty, altamente idiossincrático; o seu afastamento radical dos centros de convívio intelectual predominantes no país, vivendo desde o final dos anos 60 praticamente reclusa num sítio próximo a Campinas (SP); a estratégia escandalosa de chamar atenção para a sua obra por meio da suposta adesão ao registro pornográfico, que evidentemente contraria a pudicícia acadêmica e a hierarquização corriqueira dos gêneros literários; a produção prolífica e errática entre gêneros literários muito diversos; a mistura sem precedentes deles todos no interior de cada texto; a publicação de praticamente toda a obra em edições artesanais, em geral muito bonitas, produzidas por artistas amigos, mas sem qualquer alcance de distribuição; o desinteresse ou a falta de habilidade da autora pelo que dissesse respeito a aspectos contratuais das edições; a sua pitoresca forma de loucura etc.

Quando se chega ao termo "pitoresco", que poderia perfeitamente ser traduzido por "anedotário", não é preciso imaginar mais. Está bem claro que muitas são as supostas explicações para a pouca crítica e o parco conhecimento público de Hilda Hilst enquanto questão literária. Nada disso, porém, pode justificar a esplêndida ignorância que daí resulta, explicada ou não. E não importa que se tenha a impressão de que a pessoa pessoal de Hilda seja conhecida, a ponto de ela ganhar foros de "celebridade". Pois isto é mesmo apenas uma impressão: a celebridade Hilda Hilst não passa de ficção barata, como todas as do gênero, e nada diz da pessoa Hilda Hilst, além de descaradamente mentir ou desconversar sobre as questões mais incômodas de sua obra invulgar.

Isto posto, mais relevante do que relacionar hipóteses a respeito dos motivos pelos quais a leitura da obra hilstiana acabou não sendo feita, ou menos feita do que caberia, parece-me ser a indicação de aspectos a ser explorados por hipóteses de trabalho dirigidas doravante à obra, deixando a artista estrategicamente mais ao fundo da cena. Isto significa, em outros termos, que o principal esforço da crítica interessada no trabalho de Hilda Hilst, hoje, é justamente esquecer, ainda que em termos estratégicos, como disse, a extraordinária pessoa (e amiga adorável, se me é permitido uma nota pessoal) que ela foi, durante toda a vida. A extraordinária pessoa que foi ainda mais ao longo de seu difícil final que é quando mais se afere o valor de um caráter, segundo a velha tópica do último combate, no qual, dependendo de como se perde, e necessariamente se perde, então se vence.

Com base nesta disposição de esquecer a "celebridade", não pretendo dizer que devam ser afastados da competência crítica os aspectos biográficos que porventura se levantar a respeito de Hilda. De modo algum: testemunhos pessoais de amigos, diletos companheiros de anos, devem certamente ocupar parte de um futuro congresso dedicado a Hilda Hilst. Tais aspectos e testemunhos, tratados com as devidas mediações (basicamente aquelas que impedem que o texto literário seja dissolvido como reflexo de qualquer outra coisa: essência, psicologia, sociedade do seu tempo, ideologia, sensibilidade do artista etc.) podem eventualmente ser muito úteis no conhecimento do legado literário que nos interessa destacar aqui. Trata-se tão somente de não permitir que o trabalho da vida inteira de Hilda Hilst, que se deposita privilegiadamente nos seus textos, seja estupidamente derrotado pela fantasia mais ou menos mesquinha a respeito de sua vida.

Garantida então a prevalência das articulações textuais sobre as pseudobiográficas, ou, a não diluição dos esforços críticos pela narrativa biográfica mais ou menos vulgar, pode-se levantar, enfim, uma pauta nada pequena de aspectos de sua obra a ser considerada em trabalhos de fôlego analítico.

 

 

Anarquia de gêneros

 

Um desses aspectos mais intrigantes diz respeito à anarquia dos gêneros sistematicamente produzida nos textos de Hilda Hilst de qualquer gênero. Em primeiro lugar, cabe considerar que os textos de Hilda se efetuam, em larga medida, como exercícios de estilo, isto é, eles fazem o que lhes é próprio com base no emprego de matrizes canônicas dos diferentes gêneros da tradição, como, por exemplo, os cantares bíblicos, a cantiga galaico-portuguesa, a canção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idílio árcade, a novela epistolar libertina etc. Em segundo lugar, é fácil perceber que essa imitação à antiga jamais se pratica com purismo arqueológico, mas, bem ao contrário, submetida à mediação de autores decisivos do século XX: a imagética sublime de Rilke; o fluxo de consciência de Joyce, a cena minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pessoa, apenas para referir a quadra de escritores internacionais mais fácil de reconhecer em seus escritos.

Além disso, verdadeiramente notável na literatura de Hilda Hilst é a sua tendência a fundir num só texto todos os gêneros que pratica, como faz exemplarmente n'A Obscena Senhora D, texto no qual se encontram trechos de poesia lírica (seja pela inclusão de versos na narrativa, seja imprimindo ritmo à prosa, o que adquire dicção particularíssima nela), de teatro (fazendo com que, por exemplo, o chamado fluxo de consciência tome forma dialógica) e mesmo de crônica (ao comentar acontecimentos ou personagens históricos conhecidos). Não é gratuito, portanto, o fato de que o texto tenha recebido várias adaptações teatrais, nem é despropositado pensar em "prosa poética" ou talvez mais propriamente em "prosa rítmica", quando se trata de referir obras como, por exemplo, Fluxo-Floema ou Kadósh. A predominância do ritmo elocutivo sobre a narração é, aliás, outras das questões literárias decisivas e pouco exploradas nas análises da obra hilstiana.

 

 

Cenário do fluxo

 

Aproveito a menção à noção de fluxo de consciência para me deter um pouco neste que é o seu principal recurso discursivo nos textos em prosa. Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do narrador. O fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração.

Daí a impressão viva de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando. E atuando em cena aberta: atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e predominantemente estúpida. Mais do que a subjetividade ou a psicologia, o que a sua prosa encena como flagrante de interioridade é o drama da posição do narrador face ao que escreve: aquilo que se passa com alguém quando se vê determinado a falar, mais, digamos, por efeito de possessão ou por determinação irresistível de certa forma vicária de ser e de viver do que por vontade própria.

Poder-se-ia ser tentado, neste ponto, a fazer alguma analogia entre a questão desse narrador prolífico, sempre desdobrável em seqüências dialogadas de falas, e aquela que usualmente se põe em relação a Fernando Pessoa, com sua abundância de heterônimos, cada um a se propor como ponto de vista e estilo diversos, senão inconciliáveis. As diferenças, contudo, são enormes, e a analogia talvez mais atrapalhe que ajude.

O drama da consciência apresentado na prosa de Hilda absolutamente não é ordenado, a cada vez, por uma personalidade discursiva e estilística reconhecível como distinta da de todos as outras em questão. Os vários narradores-personagens que emergem no fluxo hilstiano são mais proliferações inadvertidamente incapazes de se conter numa unidade do que propriamente essências ou estilos irredutíveis entre si. Isto é, todas as personagens mal ajambradas que se apossam da suposta consciência em fluxo são muito semelhantes, mas ainda assim são incontidamente várias. Elas se apropriam sucessivamente do discurso como entes muito parecidos entre si, sempre a ocupar precariamente o lugar da narração. E se esses entes vários são suficientemente fortes para ocupá-lo, não o são, entretanto, para refrear a sua própria geração de semelhanças instáveis.

Ainda diferentemente do caso dos heterônimos pessoanos, os narradores articulados ao que se poderia chamar bem propriamente de "cena" ou, talvez melhor, de "cenário do fluxo" variam, alternam-se ou metamorfoseiam-se com muita rapidez, de modo que, se já não os diferenciava o estilo, menos ainda os assinala um caráter distintivo. E mais: eles mal alcançam a estabilidade de um nome próprio. Tão logo surja um nome, já é prontamente derivado, declinado em vários outros de mesma raiz. Por isso, no limite, apenas podem dramatizar aspectos de uma experiência turva e deceptivamente contingente.

Deste ponto de vista, o fluxo hilstiano não se pode dizer "de consciência", e nem mesmo se entender rigorosamente como "drama de consciência", como aproximativamente empreguei a expressão. De maneira mais particular, talvez se pudesse argumentar que o fluxo encena uma possessão, na qual o narrador, fazendo as vezes de cavalo, é sucessivamente montado por entes pouco definidos, imediatamente aparentados entre si, incapazes de conhecer a causa ou o sentido de sua coexistência múltipla e dolorosa no ofício de escrita.

 

 

Personagens incompletas & anti-narradores

 

Mesmo fora deste emprego específico da técnica do fluxo de consciência, é possível levar adiante a questão da incompletude, senão inconsistência das personagens hilstianas, que se vão proliferando indefinidamente, tomando nomes esquisitos e inverossímeis, a maioria iniciada com H (como por exemplo, os Hamat, Hiram, Hakan, Herot, Hemin, de O Projeto, no Pequenos Discursos, e um Grande). São evidentemente flexões de Hilda (como Hilde ou Hillé), que, entretanto, não adquirem, nelas mesmas, qualquer tipo de profundidade psicológica. É possível ainda articular a incompletude das personagens à questão do tipo favorito de narrador hilstiano, que sistematicamente se recusa a narrar. Considere-se, por exemplo, um livro admirável como Contos d'Escárnio, Textos Grotescos. Se fosse necessário resumir o seu enredo, não haveria muito a dizer, pois, como está patente em todo o livro, Crasso, o narrador, não tem nenhum gosto por seqüências arrumadas de fatos. Pretende escrever à maneira dos verbos chineses, sem marcação temporal, opondo-se programaticamente a qualquer expectativa de retomada da grande tradição do romance romântico-realista, com começo, meio e fim.

Ademais, Contos d'Escárnio é um desses típicos livros hilstianos, nos quais, como referi de passagem, há uma impressionante mistura de gêneros. Certa disposição discursiva anárquica desordena a narrativa, que se compõe sucessivamente como romance memorialístico; diálogos soltos intercalados abruptamente à história; imitação de certames poéticos à antiga; apóstrofes aos leitores, maltratados o tempo todo como ignorantões e picaretas; apóstrofes mesmo aos órgãos sexuais, que são também apropriações bizarras de lugares comuns do discurso pornográfico; contos e minicontos com autoria atribuída às diferentes personagens do livro; alusões políticas; comentários etimológicos e eruditos; crítica literária etc. A ressaltar-se, aliás, o ataque hilariante a João Cabral de Melo Neto, cuja poética do "rigor" é traduzida como obsessão e seqüela de machismo nordestino. Para não dizerem que invento, leio um trechinho especialmente divertido:

 

"Lembrou-se de um poeta que adora facas. Que cara chato, pô. Inventaram o cara. Nada de emoções, ele vive repetindo, sou um intelectual, só rigor, ele vive repetindo. Deve esporrar dentro de uma tábua de logaritmo. Ou dentro de um dodecaedro. Ou no quadrado da hipotenusa. Na elipse. Na tangente. Deve dormir num colchão de facas. Deve ter o pau quadrado. Êta cabra macho rigoroso!"

 

Mas o que estou chamando de anarquia genérica não pára aí. Ela se dá também como mistura babélica de línguas; coletâneas de instruções inúteis para performances estúpidas, como, por exemplo, nas "Pequenas sugestões e receitas de Espanto Anti-Tédio para senhores e donas de casa":

 

"Pegue uma cenoura. Dê uns tapinhas para que ela fique mais rosadinha".

 

Há ainda, no mesmo livro, paródias de textos didáticos; textos dramáticos politicamente incorretíssimos, que fazem complemente jus ao título de teatro repulsivo; fábulas e piadas obscenas; partes de novela epistolar; excertos filosóficos, textos psicografados etc. — tudo isto em sucessão acelerada, despenhando precipícios e vertigens.

Em termos gerais, tal disposição manifesta de se fazer "antinarrador" pode ser interpretada como uma resposta irônica à literatura banal de mercado, construída sob o predomínio da seqüência ordenada e previsível das ações. Crasso, narrador chulo, empresta seu nome sintomático ("crasso", isto é, tosco, grosseiro, rudimentar) a uma operação que faz um verdadeiro inventário da mercadoria literária mais estereotipada, sórdida mesmo, e a aplica em favor da produção de metáforas descontroladas. A "narração crassa" recebe assim uma segunda articulação, que, a manter o nome, teria que referir uma segunda acepção: a de "densa", "espessa", sem deixar de ser quase sempre bem-humorada.

Nesses termos, o lixo cultural do best seller é, por assim dizer, a condição de sua literatura parasitária e obscena. Ou em outras palavras: o mesmo lixo mercadológico que denuncia, constitui também a circunstância ou ocasião da conquista de sua vontade própria. Isto está perfeitamente dito no livro:

 

"...ao longo de minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu".

 

Ou:

 

"É tanta bestagem em letra de forma que pensei, porque não posso escrever a minha?".

 

Tal é a sua "liberdade negativa", para empregar o conceito de Isaiah Berlin, a qual não é apenas a de fazer o que é permitido, mas a de criar as suas próprias escolhas, impensadas por outrem ou independentes das alternativas comuns admitidas socialmente.

 

 

Esquematismo narrativo & caracteres caricatos

 

Há outras questões imediatamente relevantes a estudar, como a questão do esquematismo das narrativas, que partem de situações polarizadas, quase maniqueístas, e evoluem na direção de implodir as duas pontas da oposição. Um aspecto ou outro deixa evidente sempre que nem o romance, nem o conto são os gêneros relevantes em sua prosa de ficção, ao menos enquanto concebidos em sua disposição consagrada, a qual articula profundidade psicológica, tensão narrativa, desenvolvimento unitário e progressivo de ações complexas.

Um bom exemplo de esquematismo narrativo hilstiano pode ser localizado em Tu não te moves de ti. Na primeira parte da história, Tadeu (da razão), a narrativa opõe de maneira brutal, estereotipada, de um lado, o executivo de mesmo nome, que de repente já não vê sentido em sua atividade empresarial e passa a sofrer anseios poético-metafísicos descabidos nela, e, de outro lado, Rute, sua mulher, cujo desejo se ajusta perfeitamente aos objetos compráveis do mundo dos negócios.

O andamento do capítulo amplifica os dois lados, ambos excessivos, mas apenas o de Tadeu ganha complexidade, com suas visões deambúlicas de certa mulher num bar, rindo, sensual e descuidada, mostrando-se em tudo distinta da compostura afetada e superficial de Rute. Tadeu também passa a sonhar com uma estranha casa de velhos ou de mortos, que visita em delírios cada vez mais constantes e reais, enquanto Rute permanece caricata, ridícula, mesquinha, e assim naturalmente os negócios, o capitalismo, as frivolidades femininas, blá-blá-blá.

Em Matamoros, a história que dá continuação a Tadeu, já não há sinal do mundo de Rute. As ações se passam num cenário análogo ao locus amoenus bucólico, cuja atmosfera parece penetrada de poesia antiga, desde aquela dos cantares bíblicos até a dos amores pastoris vagamente clássicos, e abertamente sensuais. Neste lugar de delícias, Maria Matamoros vive com Meu, um homem perfeito que lá aparece, vindo não se sabe de onde, e que logo a desposa, fazendo-a experimentar uma existência de êxtase. Entretanto, os prazeres só duram até o momento fatídico no qual ela passa a desconfiar de que possa estar sendo traída por ninguém menos do que a sua própria mãe, a qual sempre demonstra enorme prazer na companhia de Meu. Instala-se então um inferno afetivo, de matriz trágica, no território que até então parecia inteiramente gozozo.

O lugar da poesia, ao contrário do que fazia parecer a primeira novela, já não é a alegria ou o transporte amoroso, mas o terror e a piedade trágicos, combinados ou submetidos à idéia cristã dolorosa da expiação, pois, no clima de suspeitas e acusações que se cria, alguém deve ser culpado pelo paraíso perdido. Meu, espécie de emanação poética ou pura idéia do ex-empresário Tadeu, é incapaz de sustentar o sublime a que aspira, ao menos enquanto felicidade ou êxtase: a simples aspiração, suposta na poesia ou no desejo, basta para a instauração do terror e da miséria no cerne da existência.

Axelrod, título da última parte do livro, surpreende um professor de história política, até então socialista ortodoxo, numa viagem de volta à casa dos pais, na mesma região em que vivia Maria Matamoros e os estranhos velhos entrevistos por Tadeu em seus delírios, na primeira história. Enquanto se move o trem, para frente ou para trás — isto é, para o futuro ou para a infância, a depender da referência que se tome —, Axelrod, o professor, aperta-se no corredor estreito do trem para tentar chegar ao pequeno banheiro ao fim dele, esbarrando em outros usuários, até conseguir finalmente urinar. Apenas então percebe que a dimensão irremediavelmente privada da existência (com perdão do equívoco de mau-gosto) permanece inteiramente irresolvida na utopia revolucionária.

Assim, quanto mais Axelrod se aproxima de sua terra e gente, mais se descola das lições ortodoxas de história política e — entende-se agora o título do livro — menos se move de si mesmo. Do conjunto narrativo, portanto, cujo início trataria aparentemente de resolver os dilemas da esterilidade do capitalismo pelo gozo transcendente da poesia, não se tem ao final senão uma aporia dolorosa. Não há descanso possível na poesia, a não ser como expectativa ingênua de neófitos, nem o trem da história chega a descobrir qualquer fundamento seguro para a esperança e a utopia. Ao fim e ao cabo, predomina a pressão da urina no compartimento estreito, como a da poesia, aguda, dolorosa, no núcleo do desejo agônico e irredutivelmente pessoal.

 

 

Usos do obsceno

 

Itens como estes que relacionei até agora são todos recorrentes na produção de Hilda Hilst e precisam ser investigados a fundo. Infelizmente não o foram. E ainda há muitos outros, relevantes, que permanecem intocados, enquanto cresce o anedotário sobre a personalidade e a vida pessoal da autora. A título de exemplo privilegiado, gostaria de apresentar ainda, mesmo que resumidamente, a questão dos vários usos do obsceno em sua obra, aspecto tão anunciado, senão celebrado um tanto frivolamente, mas pouquíssimo conhecido nas formas particulares em que se dá.

Em primeiro lugar, cabe perceber que a noção de obscenidade se aplica com justeza ao conjunto da obra de Hilda Hilst, e não apenas à trilogia em prosa dita pornográfica, acrescentada da poesia impagável de Bufólicas. Foi o que me fez, na edição das Obras Completas de Hilda Hilst, evitar cuidadosamente qualquer publicação conjunta desses 4 textos, assim como evitei dar partida à coleção com um deles para não provocar o mesmo tipo de apelo escandaloso que acabou diluindo a compreensão de seu interesse para a leitura da totalidade da produção hilstiana.

O ponto principal a deixar claro é que a noção de obsceno que conta, aqui, pouco tem em comum com a idéia de literatura erótica, ao contrário do que tantas vezes se tem publicado. A tetralogia obscena, aliás, é seguramente a parte menos erótica de toda a sua escrita. A idéia de erotismo não ficaria mal, por exemplo, aplicada a livros como Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão; Cantares; Amavisse; Poemas Malditos, Gozosos e Devotos desde que se ajustasse a uma concepção de erotismo construída por matrizes místicas tradicionais, como a poesia de Sor Juana Inés, São Juan de La Cruz ou Santa Teresa. Mas essa mesma idéia é francamente estapafúrdia se aplicada a Bufólicas, O Caderno Rosa de Lori Lamby, Cartas de um Sedutor, ou Contos d'Escárnio.

Quero dizer, há certamente erotismo na produção poética de registro mais elevado, na qual Hilda faz imitação deliberada da maneira antiga. O seu movimento estilístico, que tende geralmente ao sublime, ainda que contraposto a traços de rebaixamento, estabelece as balizas de um desejo de aspiração metafísica, que emula modelos poéticos de erotismo a lo divino, como os cantares bíblicos e a poesia mística seiscentista da península ibérica, nas quais o amante é tomado como análogo de um desejo de transcendência. Mas não há como propor seriamente erotismo na trilogia (ou tetralogia) obscena, depois que se a lê realmente, e não se fique na platitude dos comentários a respeito da "loucuras" ou da "devassidão" de Hilda.

A sugestão de literatura pornográfica aplicada ao conjunto dos 4 textos, a rigor, também deve ser afastada como imprópria, a menos que os seus termos sejam redefinidos. Isto porque a crueza desses escritos não tem jamais como efeito ou propósito a excitação do leitor, a não ser que o leitor se trate (como me esforcei para imaginar certa vez) de um tarado lexical, de um onanista literário — tipo de excentricidade que, não duvido, deva existir no mundo. Acontece que os textos de Hilda Hilst ditos pornográficos simplesmente contrariam a regra de ouro da pornografia banal, isto é, eles revertem todo o tempo para si mesmos e chamam a atenção do leitor para a sua composição literária ao invés de seu conteúdo sexual, destruindo todo efeito de simulação de realidade.

Não faz o menor sentido alguém achar que tais textos possam estar mais interessados em explorar os efeitos dos hormônios do que os do vernáculo, quando se detêm longamente, por exemplo, em compor coleções de palavras bizarras para designar três sítios sexuais determinados. Basta conferir a seguinte relação de pérolas da língua, que Hilda aplica ao órgão sexual feminino em Cartas de um Sedutor: cona, biriba, rosa, xiruba, xerea, tabaca, mata, perseguida, xereca, pomba, cabeluda, prexeca, gaveta, garanhona, vulva, choca, xirica, pataca, caverna, gruta, fornalha, urinol, chambica, poça, xiriba, maldita, brecheca, camélia, bonina, nhaca, petúnia, babaca, "os meios", crica.

Para o órgão masculino, não há menor copiosidade de registros ou menos curiosidade lexical: bagre, mastruço, bastão, quiabo, rombudo, gaita, taco, ponteiro, sabiá, malho, verga, mangará, "um não sei quê", cipa, farfalho, chourição, picaço, cipó, estrovenga, toreba, besugo, porongo, envernizado, mondrongo, trabuco, bimbinha, fuso, mango, manjuba, pau-barbado, chonga, vara, ganso.

Para a terceira região fisiológica relevante, comum aos dois sexos, o vocabulário de Hilda é, também, prolífico: anel, rosquinha, buraco, rebembela, rodela, "o meu", pretinho, of, oiti, prega, rosquete, aro, regueira, cifra, mucumbuco, ó, mosqueiro, roxinho, pregueado, botão, borboleta, cibazol, jiló, cabo, bozó, besouro, chibiu, furo, porvarino, figo, babau. Há de ser um tremendo fetichista das letras, algum tipo originalíssimo de serial (word)killer para se excitar sexualmente com esse tipo de vocabulário.

E não é só a profusão divertida dos substantivos estrambóticos que requisita a leitura literária destes belos e horríveis livros obscenos, pois procedimentos do repertório ostensivamente erudito não faltam neles. Todos são compostos por narrativas penetradas de um forte viés ensaístico e metalíngüístico, a escarafunchar perversamente os intervalos e as contradições entre a invenção radical do autor e os interesses outros, ou dos outros.

Os outros, digo, cujo signo é o leitor comum ou o não-leitor, tipos que, na literatura exigente de Hilda Hilst, dão exatamente no mesmo. A noção de obsceno pertinente nesse quadro se aplica, pois, primeiro, à perplexidade dolorosa diante da identificação vulgar entre criação e usufruto mercadológico, ou, de outro modo, diante da percepção inconseqüente da invenção. Por isso mesmo, a questão do obsceno se aplica também ao contrário disso, isto é, a uma experiência radical de destruição e catástrofe que os textos parecem pressupor na criação genuína.

Apenas como exemplo, posso tentar desenvolver esta questão da construção literária do obsceno hilstiano examinando rapidamente o que se passa nesta pequena obra-prima da prosa brasileira contemporânea intitulada O Caderno Rosa de Lori Lamby. A esse respeito, a orelha da sua edição original (Massao Ohno, 90) trazia uma afirmação de Eliane Robert Moraes, que me parece irretocável. Dizia ela:

 

"Não tenhamos dúvidas: O Caderno Rosa de Lori Lamby é, sim, um livro obsceno e, como tal, passível de ser catalogado ao lado de textos afins".

 

Os textos afins são fáceis de detectar; são tanto as obras de autores modernos explicitamente referidos dentro do próprio Caderno, como D.H. Lawrence, Henry Miller, Pierre Löuys ou Georges Bataille, quanto a grande tradição das novelas francesas do século XVIII, na forma de diários ou epístolas, que tiveram imitações em todo o mundo. Em Portugal, por exemplo, adota essa forma o extraordinário poema Cartas de Alzira e Olinda, atribuído a Manuel Maria Barbosa du Bocage.

Com base nesse conjunto de obras da tradição literária ocidental pode-se perguntar pelo sentido do "livro obsceno" aqui reconfigurado. O primeiro aspecto a considerar, então, é justamente que o "obsceno" em pauta não se dissocia da questão do "livro", o qual, no caso deste romance, surge na sua versão infantil e ironicamente edulcorada de "Caderno Rosa". Neste âmbito, a obscenidade evidenciada é que o "livro" se apresenta como objeto que, de modo paradoxal, ou desconcertado, pertence não ao talento do seu autor, ou ao ato de invenção investido nele, mas ao editor, entendido explicitamente como negociante que vale ou fala pela maioria dos leitores que estão dispostos a comprar o livro, e que, portanto, lhe dá uma medida de valor em dinheiro.

Nenhuma grande novidade nestes termos: a transformação da arte em mercadoria é a aporia mais óbvia do obsceno. Quer dizer, por artes do editor, agente de um mundo reduzido ordinariamente a comércio, o livro tem deslocada a questão do seu valor da qualidade da criação para a quantidade da venda. Diante do fait accompli de tal deslocamento, o autor se vê num dilema: ou desistir do livro, ou fazer do obsceno a condição de sua criação. Não há outra possibilidade aqui: ignorar o obsceno é apenas se entregar cinicamente a ele. 

Hilda Hilst opta pela segunda via: fazer do obsceno a metáfora de base de sua criação. Para tanto, trata de emular a mais requintada tradição da literatura obscena, sabendo, entretanto, que a sua possibilidade de existir como livro não se deve ao requinte literário, mas à baixeza operada como mercadoria. Como então trilhar essa via de aporia, de perplexidade existencial e artística definida pelo obsceno? Anoto aqui, à guisa de esboço de resposta, três procedimentos de composição que fazem de O Caderno Rosa de Lori Lamby uma obra hilstiana tout court, isto é, uma obra que nada deve a nenhum de seus outros livros ditos sérios, e que mesmo revela com muita eficácia o núcleo duro e sem saída, comum a todos eles.

O primeiro desses procedimentos se refere à composição da personagem infantil, protagonista e narradora do livro. Na tradição libertina, como é sabido, a narrativa usualmente adota o ponto de vista da personagem inocente que, aos poucos, vai sendo iniciada nos prazeres do espírito e da carne. No caso d'O Caderno Rosa, Hilda Hilst faz isso mesmo, sem dar qualquer margem à eufemização de suas decorrências obscenas, uma vez que a sua Lori Lamby tem apenas 8 anos de idade. Logo, não é apenas uma jovem inocente, mas uma criança ainda. A obscenidade em questão é postulada em relação ao mais reprovável e socialmente hediondo dos crimes sexuais, tais como concebidos hoje numa perspectiva ocidental: a pedofilia.

Da mesma forma, à maneira dos escritos libertinos, Lori é iniciada pelos pais, o que agrava o crime anterior com as alusões verossímeis de proxenetismo e de incesto. E cabe lembrar ainda outro aspecto importante n'O Caderno Rosa, presente em várias novelas libertinas: se Lori é ingênua, ela é também naturalmente disposta para a bandalheira. Menina, nada vê de mal ou reprovável na venda de favores sexuais aos adultos. Ao contrário, na sua perspectiva hedonista, lúdica e amoral, que é a mesma que enquadra a narrativa, ganhar dinheiro a troco de lamber e ser lambida é apenas um desdobramento divertido das delícias dos doces, sorvetes, desenhos animados, e programas infantis ao estilo "Xoxa", amplamente conhecidos e admitidos pelos pais em geral. Claro que, neste ponto, a menção hilária à "Xoxa" abre a categoria do obsceno também para a crítica moral dos costumes, os quais, por um lado, sexualizam precocemente a criança, e, por outro, identificam "bananeira", isto é, o tipicamente nacional, com "bandalheira". Juntadas as duas pontas, a obscenidade d'O Caderno Rosa se efetua então como uma espécie de demonstração ostensiva do lixo nacional, que, ao fim e ao cabo, é apenas particularidade (nunca exceção) do sórdido humano.

O segundo procedimento de composição d'O Caderno Rosa, que me interessa destacar, diz respeito, ainda uma vez à anarquia de gêneros, aspecto que já mencionei antes. Como em outros livros de Hilda Hilst, a sua invenção se baseia na imitação de gêneros da tradição, combinando-os de maneira improvável ou inusitada numa mesma narrativa. Assim, no caso d'O Caderno, cujo eixo narrativo se apresenta como um diário de menina, são conectados a ele um extenso conjunto de cartas, contos e relatos variados; discussões a respeito de livros (na qual, por exemplo, os modelos de erotismo contemporâneo, como Lawrence ou Miller, são debatidos e recusados); traduções de poesia antiga, debates de questões estilísticas e lexicológicas, para não mencionar a admirável proliferação que faz com que, além do "Caderno Rosa", haja um "Caderno Negro", mais o conjunto de fábulas reunidas num certo "Caderno do Cu do Sapo Liu-Liu".

Um terceiro procedimento de composição do obsceno hilstiano n'O Caderno Rosa diz respeito às várias máscaras do narrador, traço nada desprezível no conjunto da prosa de Hilda. Vou tentar demonstrá-lo com uma observação simples: a de que não é tão fácil quanto parece responder à questão elementar sobre quem seja o narrador d'O Caderno Rosa de Lori Lamby. A resposta mais imediata é, claro, "Lori Lamby", incluindo-se como prova em favor dessa hipótese a revelação importante, feita ao fim do livro, de que o que ali estava escrito referia não o vivido por ela, mas o que ela lia nos papéis rascunhados pelo pai, escritor devidamente torturado pelo editor malvado.

Ora, tal revelação acaba por produzir no livro uma verdadeira peripécia: a transformação do gênero que lhe é próprio de "diário" em "romance", pois já não se trata de relato do real, mas de imaginação ficcional. Outras possibilidades, contudo, podem ser levantadas, de modo a embaralhar ou desdobrar a peripécia em várias outras. Por exemplo, nada barra definitivamente a suposição de que Lori seja apenas o nome do narrador-personagem criado pelo narrador-personagem do pai de Lori, gênio incompreendido, miseravelmente rendido à venalidade de Lalau, o editor. E isto pode seguir em várias direções, sacando-se narrador de dentro de narrador, caderno de dentro de caderno, sem que ao cabo dessa espécie de incontinência da imaginação uma instância se afirme como a única possível, ou o plano do real seja definitivamente distinto do de suas versões hipotéticas.

Neste ponto, cabe observar que tal característica desdobrável e fecundante da obra é possível justamente pela forma rascunhada e imperfeita do "caderno", que permanece ainda aquém do "livro". Isto é, o "caderno" evolui como forma de vida imperfeita nalgum limbo ou soleira em que o criador ainda se move sem ter de fazer a entrega de sua obra ao editor. Depois, ele apenas rasteja. O Caderno Rosa é tão extraordinário porque se escreve na antecâmara ou no corredor que inexoravelmente apenas pode conduzir ao Livro Vermelho, isto é, ao livro milares de vezes já escrito do comércio pornográfico. Toda a potência corrosiva do gênero se demora ali, naquele corredor de luz intermitente; deposita-se ali, naquele estágio larvar, no qual um destino ordinário se suspende por um bravíssimo instante, mas breve. Dar mais um passo significará terminar o livro. Já não restará então nenhum traço da resistência do caderno incompleto ao livro feito, que inclusive pode-se dar ao luxo de tomar o seu nome e estampá-lo na capa. Nesta linha interpretativa o fato de a autora do caderno apresentar-se como uma criança é fundamental, pois evidencia o estado de permanência aquém da Lei, da natureza hipostasiada, da Letra, inclusive a de câmbio,  para a qual, no entanto, está fadada. Um belo ensaio de Giorgio Agamben sobre a idéia de infância, no livro Idea della Prosa, revela a potência corrosiva desse tipo de estado intermediário, que desvia ou atrasa o seu destino, reproduzindo-se a si mesmo, como o "axolotl", espécie de lagarto das águas doces do México, que é capaz de reproduzir-se num estágio muito precoce de sua evolução, produzindo um fenômeno que os cientistas chamam de "regressão evolutiva".  Diz Agamben:

 

Proviamo a immaginare un infante che non si limiti semplicemente, come l'axolotl a fissarsi nel proprio ambiente larvale e nelle proprie forme acerbe, ma che sia, per così dire, tanto abbandonato alla propria infanzia, tanto poco specializzato e cosi totipotente, da declinare qualsiasi destino specifico e qualunque ambiente determinato, per attenersi unicamente alla propria immaturità e alla propria sprovvedutezza.1

 

É este tipo de imaginação que me parece adequado aplicar-se à autoria de Lori, ou mais precisamente, à função autoral Lori, pois é apenas certo que a função autoral possua atributo infantil no livro, e não necessariamente a personagem que o escreve, como se verá adiante. 

Está claro que, na sua forma geral, os textos obscenos de Hilda encenam o instante de confronto entre a arte mais radical da palavra e a sua normalização habitual, a qual pode ocorrer seja pelas expectativas rasteiras dos leitores, seja pelas contas dos editores desinteressados de tudo que o não são contas dos editores, seja ainda pelos ridículos próprios do autor, macaco vaidoso de si mesmo. Tendo isto em mente, torna-se forçoso reconhecer, mais uma vez, que esse cenário básico não é exclusivo dos livros obscenos, o que torna inútil ou irrelevante o esforço de críticos apologéticos de Hilda Hilst, que julgam possível isolar a parte de sua obra que arrisca ser acusada de pornografia daquela outra julgada séria. A intenção é singela: salvar Hilda séria de sua produção chula, como certa vez Bilac intentou fazer com o Bocage sonetista que admirava, livrando-o da carga pesada do satírico boquirroto.

Nada mais improvável, contudo. Os escritos ostensivamente obscenos de Hilda Hilst apenas manifestam, com a crueza do calão, do sarcasmo, do nonsense ou do bestialógico, um núcleo forte que percorre todos os textos hilstianos como uma marca cega ou, para referir Bataille, como um interdito de significação. E este interdito carrega um traço ostensivo de crueldade, cujo efeito imediato é o riso com dor, o riso satírico que busca ofender e ferir, não o riso polido e pedagógico da comédia aristotélica. Pica-se agressivamente tudo o que se entende como agressivamente estúpido, mesquinho e estreito, compondo-se então o que poderíamos descrever como um decoro de desproporções proporcionadas. Ri-se maldosamente, por exemplo, da moral carola e autoritária, amplificada até o nonsense, de um mundo irremediavelmente grosseiro e idiotizado. Claro que, pensado dialeticamente, este ataque brutal à idiotia galopante e generalizada também proclama uma espécie de resistência bem-humorada da invenção e da autocriação no pior dos mundos possíveis.

E o pior dos mundos seguramente não pode deixar de lado o Brasil. Há uma analogia evidente entre, de um lado, a negatividade produtiva do narrador de Hilda Hilst face à indústria cultural e, de outro, a adoção de um registro obsceno face às circunstâncias do Brasil, que ela trata como país bandalho por antonomásia. O Brasil, segundo Hilda Hilst, é terra devastada onde o poder injusto e ilegítimo pactua com a venalidade mais mesquinha por meio da celebração da malandragem e do triunfalismo nacional-popular-carnavalizante:

 

"Temos tudo nas mãos

Bolas cricas gingas e tretas!

Temos a pica mais dura do planeta!

Viva o Brasil!".

 

Ou:

 

"É um país do futuro!

O oráculo acaba de dizer!

(...) Que vai ser um gigante!

(...) Esse país só vai ter picas bolas cachaças e cricas

(...) Que hão de escorraçar os letrados e o monstro das letras!

Graças a Zeus!

Não podemos avançar nesse futuro?"

 

Ou seja, na costumeira louvação da esperteza inata do brasileiro, Hilda Hilst não parece reconhecer senão o selo da cumplicidade geral da bandidagem contra a esperança do conhecimento, da lucidez da qual a liberdade da literatura poderia ser a principal caução. Por isso, a moral de sua anti-história é que onde triunfa a idiotia, o abestalhamento, não resta ao narrador honesto senão o desengano, o espírito de porco e, enfim, o suicídio. É esta a articulação básica desses textos que se formulam como síntese amplificada, vale dizer, obscena e cruel, de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana.

Para Hilda Hilst, em terra de pornógrafos, o que cabe ao escritor sério é produzir a evidência de uma pornocracia, isto é, da violência hegemônica da identidade bandalha. Pode-se pensar, pois, nesses textos obscenos como exercícios de prosa satírica nos quais a construção de tipos mistos e heterogêneos, que definem o vicioso, o execrável e o repugnante, está fortemente vinculada a uma moralística, desde que se dê ao termo o seu sentido rochefoucauldiano de exercício bem-humorado de destruição sistemática das afetações ou auto-indulgências desonestas compartilhadas civilmente. 

Isto também quer dizer que, ainda que o tom desses escritos obscenos seja, por vezes, de uma hilaridade destrambelhada, de uma imaginação frenética a alimentar-se do mau-gosto e da bizarria, ele nunca chega a tomar ares verdadeiramente triunfais. Em Bufólicas, por exemplo, onde se encontra o registro baixo mais delicadamente engraçado já produzido nos livros de Hilda Hilst, a moral das fábulas reinventadas termina sempre na formulação de uma outra: a de que a liberdade de alguém é a certeza da vingança odiosa dos outros.

Nas descrições agônicas do mundo elaboradas pelos seus textos, o emprego mais recorrente da obscenidade está bem aí: nesse desajuste de raiz entre os desejos mais sinceros, criativos e generosos, de um lado, e as práticas cruéis adotadas voluntariamente pelos homens, de outro. Os homens, portanto, simplesmente não combinam consigo mesmo, nem em termos pessoais, nem coletivos. Quando são pensados em comum, nada parece mais comum neles do que a baixeza que emulam: a vizinhança é sempre horrenda; a autoridade é arbitrária e burra, quando não assassina; o revolucionário está estupidamente enganado sobre sua vontade, sobre a ideologia que defende e sobre o efeito de sua ação.

No extremo, pode-se levantar a derradeira hipótese, que se formula na esperança incompreensível e desprevenida de Deus. Mas esta é a menor e a pior das seguranças. Em geral, nos escritos de Hilda Hilst, ela não se realiza senão como estigma, dor e vazio. A maldade crua e a vileza são, de longe, os atributos divinos mais palpáveis, o que sintoniza seus textos com uma teologia negativa, na qual as essências, mesmo as virtuosas (enquanto essências e, portanto, atributos particulares), nada podem dizer do ser de Deus, que refuga todos os seus nomes e crucifica quem os enuncia. Mas se se quiser deixar de lado a aporia dolorosa de Deus e fincar a esperança no solo das Letras, da Literatura que circula nos livros, o quadro é igualmente ordinário, apenas mais farsesco: o editor é rematado ladrão; o artista em geral é picareta, vaidoso e venal, e, por isso mesmo, vive no âmbito da dependência.

Há, pois, nos textos mais duramente obscenos, um existencialismo niilista contundente. Entretanto, eis aí, tampouco esse niilismo se cristaliza de maneira hegemônica ou exclusiva, pois é temperado por um humor político anárquico e uma inquietude metafísica e mística de rara intensidade na literatura brasileira do último quarto do século XX. O mesmo que violentamente ofende, por assim dizer, reza, suplica, medita e não aceita perdão ou comutação de suas penas.

Enfim, acho que o esboço de mapa a que me propus já se alonga mais do que o devido. Quero apenas concluir dizendo que a morte de Hilda Hilst deve ser apenas o início da longa vida de Hilda Hilst como questão literária. Trata-se de um wishful thinking e de um convite ao trabalho.

 

 

 

Nota 

 

agosto, 2005

 
 
 
 
 
Alcir Pécora. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. É crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da Sibila — Revista de Poesia e Cultura.
 
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