Dois hemisférios

 

 

Daniel Maillet. Formado pela Academia de Belas Artes de Brera, Itália, Daniel Maillet (Zurique, 1956) mantém um diálogo com a tradição, ou seja, vai buscar nas fontes matriciais de um Michelangelo, por exemplo, a poética do "sublime", caracterizada pelas imagens visionárias de traços densos, fantasmagóricas, que transcendem o próprio objeto criado, como podemos observar nesta sua série de esquálidos grupos de figuras agonizantes, marcados por linhas pastosas e vigorosas. Estes desenhos (pastel sobre papel) correspondem ao seu período europeu. Encontramos neles indícios da gravura e do expressionismo alemão, herdados do pai Leopold Mayer (1902-1990), que foi pintor, gravurista e aluno do expressionista Max Beckman.

 

Como descendente de hebreus, sob o ponto de vista temático, Daniel Maillet deixa transparecer nestes desenhos as projeções mentais evocadas pelas histórias de guerra e perseguições nazistas, contadas pelo pai. No entanto, reconhecemos nestas imagens expressões do nosso cotidiano contemporâneo.

 

Em outra categoria, que dialeticamente contrapõe-se e complementa a fase européia de Daniel Maillet, estão estas pinturas de cores intensas e luminosas, produzidas recentemente no Brasil (daí o título escolhido por ele para esta exposição: Entre dois hemisférios). Neste caso, os pressupostos históricos remetem não ao "belo clássico", mas ao "belo romântico", remanescente da corrente "pitoresca" holandesa do século XIX.

 

Embora o "pitoresco" esteja ligado à paisagem, encontramos nestes retratos (tinta acrílica sobre papel) elementos que identificam essa corrente, tais como a variegação das cores, o movimento das manchas quase matéricas, que, mesmo opondo-se à anatomia clássica de natureza objetiva e imutável, não deixam de revelar, nessa oscilação gestual, o particular e o característico de cada modelo retratado.

 

O que torna a pintura de Daniel presente é o foco que ele dá à figura humana, desnuda na sua singularidade. Há nestes retratos uma potencialidade psicológica que se acentua pela ausência de qualquer cenário ou acessório de fundo, diferentemente da arte moderna. São imagens desprovidas de apêndices, que se justificam por si, no que elas podem emanar: personalidade, estados de espírito, indagações, medos, certezas, identidades...

 

Por fim, as últimas experiências com esculturas em argila, feitas no Ceará, parecem convergir, ao mesmo tempo, para as categorias do "pitoresco" e do "sublime". Nelas observamos um estado de suspensão entre o que está próximo e distante, mediado pela contemplação e pensamento. Trata-se, portanto, de um olhar sobre a dignidade do ser humano, pelo qual também nos vemos refletido. [Herbert Rolim, exposição Entre dois hemisférios — Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, Brasil, 2005]

 

 
 

 

A arte do homem comum


 

Ao lado de operários e crianças carentes, o artista plástico Daniel Maillet prova despojamento e humildade ao retratá-los em quadros e esculturas

O rosto é reflexo do ambiente.
A máxima é a tradução do trabalho do artista plástico Daniel Maillet. Oriundo da Suíça, país-modelo nas questões sociais, Maillet trocou a pátria pelo Brasil, conhecido lá fora pelas desigualdades econômicas, há dois anos. A mudança partiu da necessidade do artista em explorar novos campos da atividade que mais gosta de desenvolver: o estudo do indivíduo e a representação fisionômica.

No entorno do Centro Dragão do Mar, Daniel Maillet instalou seu atelier. Lá, o artista pinça do cotidiano os subsídios que necessita para suas experiências com o indivíduo. Moradores e trabalhadores do local são os modelos da inventiva. ''Trabalho com a terceira dimensão e levo ela para a segunda'', explicou. O retrato pode vir tanto na técnica em grafite ''finíssimo'' em papel couchê, tamanho natural, ou em pintura à óleo.

Na primeira, o desenhista alterna a precisão fisionômica com detalhes subjetivos. Abusa das sombras, ressalta em lápis colorido pequenas porções do corpo humano, distorce gestos. Na pintura a óleo, realizada em tamanho natural, fica claro a influência expressionista, sobretudo de Van Gogh. A técnica deforma e exagera a realidade sem perder de vista a essência humana.
Na manifestação artística de Maillet, as pinceladas que colorem a obra são movidas pela bagagem emocional que capta em quem se dispõe a posar.


Esse é o caso do operador Cícero Pereira dos Santos, que trabalha em uma gráfica situada no Dragão do Mar. Basta inferir um olhar mais atento para perceber a sutileza com que a alma operária foi retratada por Maillet. ''Nessa pintura, são os olhos que revelam'', explicou. A premissa é verdadeira.


Cícero evita fitar o interlocutor e, nos raros momentos em que isso ocorre, demonstra desconcerto. Mas, de soslaio, Cícero sorri, conta causos e até arrisca um breve ensaio poético sobre a essência imutável da arte. ''Essa arte é muito bonita porque é uma lembrança que fica depois da morte'', sensibilizou-se. Ver-se retratado em um suporte diferente da fotografia tornou-o apreciador da pintura. ''Gosto muito de vir aqui e ver as coisas que ele faz, já trouxe muitos amigos meus para verem meu retrato e todos querem um também'', admitiu.


Ex-professor de arte visual, a mistura racial e cultural brasileira aguçou ainda mais o interesse sensorial. Foi somente em Fortaleza que Daniel Maillet conseguiu dar vazão ao seu interesse pela escultura de argila. ''Aí posso falar de uma influência grega, mas digo que sou um expressionista da nova observidade por manter a forma concreta'', esclareceu. Amante também dos corpos, o artista não se intimida em imprimir na argila genitálias femininas. Encontrar pessoas dispostas ao trabalho não é tarefa difícil. ''Existe a sensualidade, mas o nu pode ter outra intencionalidade e outro contexto'', explicou.

Casado com uma brasileira, Daniel conta que a paixão pelo país foi iniciada quando das primeiras visitas ao Brasil, ainda na década de 90. De lá até o ano de 2001, quando mudou-se para a tórrida região tropical, Maillet tratou de escolher pacientemente a cidade onde iria fixar-se. ''Escolhi Fortaleza por achar que aqui existe uma força especial, que utilizo em meu trabalho'', disse.


Além dos retratos, Daniel dedica-se no momento à contemplação do mar. A recém-descoberta artística já resultou em trabalhos abstratos acerca da agitação das ondas. '"O grande problema é que o desenho ficou na mão da arte aplicada, mas o fundamento de todas as linguagens é o desenho e, se você sabe desenhar a forma correta, aí fica fácil saber distorcer e incorporar outros elementos. É como aprender uma língua'', defendeu.


Além dos alunos informais, que residem nas imediações do Dragão do Mar, Daniel Maillet dá aulas de desenho em seu atelier. Amante da xilogravura, o artista desenvolveu técnica semelhante em matrizes de bronze. Com o material, Daniel Maillet também faz busto sob encomenda, que igualmente atende a retratos à óleo ou esculturas em argila. [Carolina Dumaresq, da Redação — Jornal O Povo, "Vida & Arte", 28/01/2004]

 

 

Rabiscos de um olhar
 

Daniel Maillet, artista plástico suíço radicado em Fortaleza, registra moradores do Poço da Draga através de seus rabiscos coloridos. Este trabalho será exposto no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC CE) em junho, no projeto Artista Invasor.

 A arte como instrumento de comunicação. Assim pensou o artista plástico suíço Daniel Maillet ao observar de longe uma conversa entre duas moradoras do Poço da Draga, comunidade localizada no entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC). Elas falavam de suas vidas na comunidade e da conexão que existe entre os moradores e o centro cultural. Bastaram algumas palavras para que o artista logo pensasse em desenvolver seu próximo trabalho, ali pertinho. O resultado deste processo será exibido no Artista Invasor de junho, projeto bimensal organizado pelo Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC CE).

Antes de ocupar o museu, o suíço resolveu "invadir" o Poço. E aos poucos foi conquistando os moradores. A interação foi tão boa que a adesão da comunidade foi instantânea. "Eu não entrei na vida social deles. Eu só fui passeando, perguntando e fazendo alguns desenhos junto a eles. Fui mais um viajante, de passagem e observando. Algumas pessoas ficaram minhas amigas. São extraordinárias e com uma grande sabedoria", diz.

Os desenhos foram saindo aos poucos. Cada um com seu estilo próprio. Crianças, jovens, adultos e até idosos se entregaram às mãos do artista plástico. Em cada rabisco, um olhar de felicidade. O olhar de pessoas que são discriminadas pela sociedade. Maillet afirma que essa é uma chance para que eles, os personagens da vida real, utilizem a arte como instrumento de expressão. "É um momento de expressar para o mundo suas condições sociais, que não são boas, assim como as coisas maravilhosas que existem na comunidade que não devem ser abandonas", revela Maillet.

Na construção de seus trabalhos, em sua maioria composta por desenhos de pessoas, Maillet carrega um pouco de sua cultura originária. Observando com ênfase cada detalhe, o artista acaba gerando diversas vezes mudanças radicais antes do término de suas obras. "Eu tenho um hábito de tentar terminar 'muito' os trabalhos. O que acaba tirando, muitas vezes, a espontaneidade. Tem momentos durante o processo de trabalho que eu gostaria de parar. Só que não está concluído, porém está bonito. É aquela coisa de italiano 'non finito'. Essa é uma forma de explicar uma obra que não foi terminada. Tem todo aquele desenho que revela o que artista estava pensando. Sou ligado a detalhes. Isso faz parte da minha cultura. Eu sou muito realista", afirma.

Sua intenção não é reproduzir o cotidiano e sim retratar as pessoas, traduzindo o exato momento em que são abordadas. "Na verdade quando eu desenho não quero nada. Só desenhar. Às vezes, eu nem me dou conta do que está acontecendo, através do lápis e o que minhas mãos está passando para a folha de papel", explica.

Vindo de uma família simples de camponeses da Bavária, na Itália, o suíço Daniel Maillet, há quatro anos em Fortaleza, trouxe a arte no sangue desde pequeno. Neto de um diretor de teatro e cinema e filho de um artista plástico, ele resolveu seguir a carreira paterna. Foi viver com seu pai aos vintes anos e logo entrou na profissão. "Agüentei ficar com ele uns quatro, cinco anos. Ele era uma pessoa muito hiperativa, mandona, boêmio e liberal", diz o artista. Antes de vivenciar com seu pai, passou por uma escola de comunicação visual, a qual considera muito importante para a construção de seus trabalhos no decorrer de sua carreira. "Não me dava bem em matemática e nas letras. Em compensação, na escola de comunicação eu consegui me desenvolver mais. O mundo das imagens me atraía bastante". Também passou pela Academia de Belas Artes de Milão, na Itália. De lá para frente, só trabalho.

Daniel está ansioso para ver os trabalhos expostos no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC CE), no mês de junho, quando finalmente "invadirá" as quatros paredes do equipamento. A mostra traz além de desenhos, trabalhos em argila e um vídeo. Tudo com a presença das pessoas da comunidade do Poço da Draga. Aliás, esse trabalho é apenas um fragmento de um projeto maior que o artista está desenvolvendo. Mas por enquanto é segredo. Ou melhor, é um

esboço. [Aislan Nogueira, no Dragão do Mar]

 

 

 

Projeto artista invasor | Daniel Maillet

 

 

O artista suíço, radicado em Fortaleza há mais de quatro anos, dedica-se a retratar as pessoas do seu entorno em desenhos e esculturas que beiram ao academicismo de maneira bastante positiva. O resultado final de sua obra é original, o que o torna contundente e atual.

 

As expressões dos retratados são exploradas em gestos vigorosos e realistas ora sobre papel com pastel oleoso ora em terracota em  tamanho natural. Estes desenhos e esculturas que compõem a mostra, vão além do gesto puramente artístico de retratar pessoas ao trazerem questões antropológicas e sociais para se refletir dentro do museu, eles também impressionam por carregar a verdade. Em um processo inverso, o artista nesta versão do projeto Artista Invasor, invade a comunidade do Poço da Draga e capta a imagem de moradores do lugar. Em um segundo momento desse processo artístico, já com os trabalhos fixados nas paredes da instituição e as esculturas colocadas no espaço expositivo, espera-se que os moradores invadam o museu e confiram o resultado da exposição não só como retratados, mas também como nosso público. Como pessoas que fazem parte da instituição museológica.

 

Maillet foi convidado pela direção do museu a registrar pessoas da Comunidade do Poço da Draga, vizinha ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Acreditamos que com ações desta natureza, o museu cumpra o seu papel de levar a arte contemporânea, sem hierarquias de entendimento e conhecimento, para as comunidades do seu entorno, possibilitando que esta população não só se enchergue, mas também se identifique com o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. [Equipe técnica do MAC — Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortlaeza, junho, 2006]