©anne mondro
 
 
 
 
 
 
 
 

CINCO PEQUENOS POEMAS PARA

EMOLDURAR PAISAGENS

 

 

1. FERTILIZAÇÃO

 

Aproxima-se o temporal.

O odor das árvores no cio.

 

 

2. CORO

 

Eucaliptos são árvores canoras.

Só precisam que o vento lhes dê o tom.

 

 

3. VERMELHO-SANGUE

 

Com os pulsos cortados,

a tarde se deita no horizonte. Faz-se noite.

 

 

4. UM BRINDE AO SOL

A noite derrama seu licor

 sobre a toalha de mais um entardecer.

 

 

5. GARÇAS

Anoitece.

As árvores recolhem

suas asas.

 

 

 

 

 

 

TIJOLOS

 

 

Meu pai: pedreiro;

eu, escritor.

 

Ele lida com tijolos, cimento;

eu, com palavras, pensamento.

 

Muros ele ergueu,

Muitas casas reformou,

Tantas outras construiu.

 

E eu

o que ergui,

o que reformei,

o que já construí

com esses tijolos de vento?

 

 

 

 

 

 

PONTO FINAL

 

 

A morte é um bonde

que não tem hora para passar.

 

A vida,

todos já sabem,

é passageira.

 

 

 

 

 

 

FORMIGUEIRO

 

 

Queria parar de escrever,

construir minha obra

em torno do silêncio,

 

mas as palavras

são formigas insaciáveis:

 

de migalha em migalha

carregam meu silêncio

para fora de mim —

 

e fazem dele matéria-prima e alimento

para o que escrevo.

 

 

 

 

 

 

XADREZ

 

 

Enquanto os grandes mexem suas peças

 

derrubando torres

manipulando bispos

enforcando reis

 

entre cavalos e peões

os pequenos movem suas vidas

 

cada um no seu quadrado.

 

 

 

 

 

 

SILÊNCIO DE PEDRA

 

 

Soltei uma palavra

e o vento levou.

 

Outras palavras

foram soltas

e levadas pelo vento.

 

Calei-me, então.

 

Meu silêncio o vento não leva.

 

 

 

 

 

 

LER: VOAR

 

 

o pássaro

agarrado ao galho

o sol

empoleirado no horizonte

o livro

pousado na mão

 

DE REPENTE O VOO

 

e o pássaro

permanece no galho

e o sol

desaparece no horizonte

enquanto tombam sobre a terra

as pálpebras da noite

 

SOBRE AS PÁGINAS

PLANAM OS OLHOS

O VOO DA LEITURA

 

 

 

 

 

 

1964

 

 

Em terra de cego

quem descobre a cura da

cegueira

misteriosamente

fica mudo.

 

Em terra de cego

não adianta clamar por justiça.

O rei tem um olho,

realmente,

mas é surdo.

 

 

 

 

 

 

CHAGA

 

 

O Homem

é a chaga de Deus.

 

"Veja, Tomé!

Se ainda não crê, toque-a".

 

A chaga sangra.

Deus nos lambe como um cão.

 

 

 

 

 

 

"MÃE, ONDE ESTÁ A MINHA MEIA?"

 

 

De tanto dobrar as semanas

e guardá-las desatentamente

nas gavetas da memória

nunca sei onde encontro

as lembranças mais felizes...

 

e me visto assim de trapos apertados

ou me mantenho nu

sobre a pilha dos dias

que amontoo ao largo de mim.

 

 

 

 

 

 

_O VÁCUO______Pensamos o tempo

______________como se fosse uma escada:

____________a certeza do amanhã

__________como um degrau

________à nossa espera.

______Ilusão. A vida é um arame

____estendido no vazio.

__Um passo em falso

_e despencamos para

o NADA.

 

 

 

 

 

 

NÃO ESCRITO

 

 

Compus um poema com todos os meus silêncios.

Ainda não o escrevi. Temo que soe como um grito.

 

 

 

 

 

 

POESIA AFIADA

 

 

Nada contra os poemas-adereço

em oferta nas vitrines do agora:

eles enfeitam a vida por um instante

como um par de brincos num baile.

 

Raro é o poema que nos despe

ante a nudez do mundo:

espelho ou tatuagem

que nos marca profundamente.

 

 

 

 

 

 

A FELICIDADE É UMA LIBÉLULA

 

 

e a compaixão, um anzol

mergulhado num rio

caudaloso e profundo.

 

Se me descuido,

qualquer dor alheia

me arrasta para o fundo.

 

 

março, 2019

 

 

Wilson Gorj lançou-se como escritor em 2007, com o livro Sem contos longos. Em 2009, deu os primeiros passos para tornar-se editor de livros e, à frente do "Selo 3x4: microficções", publicou em 2010 a obra Prometo ser breve, também de cunho minimalista. O terceiro, pelo mesmo selo, veio em 2012: Histórias para ninar dragões (minicontos). Foi nesse o ano que nasceu a Penalux, editora que fundou em sociedade com o poeta e editor Tonho França. Desde então tem se dedicado quase que integralmente às atividades editoriais. Nesses dez anos como editor, participou da edição e publicação de mais de 700 títulos. Orgulha-se muito disso, mas seu orgulho maior é ser pai da Marina (inegavelmente, sua melhor obra).

 

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