COLATERAL

 

O filho era hiperativo.

 

Para terem um pouco de paz em casa, dopavam-no todos os dias.

 

O menino cresceu. Hoje vive à base de estimulantes.

 

 

 

 

 

 

MARGINAL

 

Sem grana para publicar seus livros, o escritor apelou para um recurso tão eficaz quanto delinquente.

 

Até ser apanhado em flagrante, fez dos muros da cidade as suas melhores páginas.

 

 

 

 

 

 

MICROCONTISTA

 

Com seus pequeninos contos, quisera tornar-se um grande escritor.

 

Mas grande mesmo foi a sua desilusão. Pouco lido, pouco conhecido. Morreu frustrado.

 

Seu obituário no jornal lembrava um microconto.

 

 

 

 

 

 

FALSOS

 

Do Paraguai trouxe um uísque, um relógio e uma loira. 

 

O uísque revelou-se intragável. O relógio, quando não adiantava, atrasava. E os cabelos da loira, aos poucos, escureceram.

 

Um dia, ela prestou exame na USP.  Passou em primeiro lugar.

 

 

 

 

 

 

PAPADO

 

Chegou à chefia do Seminário. Mesmo assim, ainda não se contentava. Seu desejo era alcançar o posto máximo da Igreja. Imaginava-se no Vaticano, acenando para as nações.

 

Caminhava na rua, absorto nesta visão, quando um caminhão desordenado encurtou-lhe os planos.

 

Virou papa.

 

 

 

 

 

 

ANESTESIA

 

I.

 

Por muitos anos, viveram como se nadassem num mar de rosas.

 

Anestesiados pelo amor, não sentiam os espinhos.

 

 

II.

 

Esgotado o romantismo, sentiram as primeiras espetadas. As quais, pouco a pouco, tornaram-se recorrentes, corriqueiras.

 

Apesar disso, permaneceram juntos até o fim.

 

Na verdade, não é só o amor. O tempo também anestesia.

 

 

 

 

 

 

O COMANDANTE

 

Era mestre em fazer aviãozinhos de papel. Muitos deles voavam alto e, arrancando suspiros, aterrissavam do outro lado do muro.

 

Um belo dia deram pela falta do Comandante.

 

Os guardas não souberam explicar como ele fugiu.

 

Seus colegas de hospício juram que foi num aviãozinho de papel.

 

 

 

 

 

 

VAMPIRISMO

 

A balada estava rendendo. Ficara já com quatro caras, incluindo aquele sujeito estranho; rapaz meio esquisito, todo vestido de preto, o qual tivera a audácia de lhe dar um chupão doido no pescoço.

 

Tantos beijos. Hora de recompor o batom.

 

No banheiro, não conseguiu se encontrar.

 

O espelho devolvia a imagem de uma pessoa vazia.

 

 

 

 

 

 

PROFISSIONAL

 

Dos assassinos de aluguel era o mais profissional e experiente. Em sua longa carreira facínora ostentava um rosário de mortes. 

 

O excesso de profissionalismo foi a sua perdição.

 

Devido a tanta competência, não pode declinar da contratação de seus serviços por parte do seu maior concorrente.

 

Recebeu adiantado e, profissionalmente, realizou seu último assassínio.

 

Matou-se.

 

 

 

 

 

 

COMUNISTA FEITA

 

Em seu salão de beleza, não se contentava em fazer os pés e as mãos de suas clientes. Empenhava-se, também, em fazer-lhes a cabeça.

 

Naqueles tempos de ditadura, fazer isso era um grande perigo. Logo, trataram de fazer-lhe uma visita.

 

Ninguém nunca soube o que foi feito dela.

 

 

 

 

 

 

ESTRELA

 

Sob a noite estrelada, deitados no quintal, estavam pai e filho, ambos a fitarem o céu. "A vovó me contou que a mamãe foi morar lá em cima", disse o menino. Seus olhos pareciam vasculhar o infinito. "Tantas estrelas", ele continuou, "em qual delas ela deve estar?".

 

O pai, cujo olhar perdia-se no espaço, permaneceu calado. Seu único gesto foi buscar a mão do filho e apertá-la com carinho. E este, olhando ao seu lado, pôde ver exatamente onde a mãe se encontrava.

 

Naquele momento, ela estava ali, brilhando em uma lágrima.

 

 

 

 

 

 

VISÃO MILAGROSA

 

Graça alcançada, o romeiro veio pagar a promessa em Aparecida (SP), onde deveria cruzar, de joelhos, a famosa passarela.

 

Incumbência difícil e, sobretudo, dolorosa. De modo que não aguentou cumpri-la até o fim. Joelhos em sangue, parou na metade do percurso. Levantou-se e, mancando, terminou o trajeto com a triste sensação do dever não cumprido.

 

De regresso, já meando a viagem, sentiu uma fisgada no olho esquerdo.       

 

A vista direita, ao menos, manteve-se curada.

 

 

 

(imagem @sidney polak)

 

 

 

Wilson Gorj (Aparecida/SP, 1977). Em 2007, publicou o livro Sem contos longos e participou da antologia Contos de algibeira, ambos constituídos de micronarrativas. Ainda neste gênero, está para vir o livro Prometo ser breve, que será publicado pela editora Multifoco (por enquanto, sem data marcada). Na internet, pode ser lido em vários endereços, destacadamente no blogue O Muro & Outras Páginas. É colunista dos jornais O Lince e Comunicação Regional.