©chris devour
 
 
 
 
 
 
 
 

§

 

 

dizendo muchacha

eu rumaria sem espera

para o túmido aroma de nêsperas

do seu corpo

se eu afivelasse a máscara de paz,

octavio

 

mas não devo ser

o mimo menor do mexicano

sequer um continuador amaneirado

do seu insurrecto póssurrelismo descolonial

 

(deixemo-lo em paz e sob a terra leve

apartado da tutela do continuísmo devocional)

 

restaria um poeta para nada

se eu não fosse o poeta, o cantor tão somente de

sierva sirena maria, abissínia, sagitária, dionísia

aliás, nenhuma outra ambição

enruga o velho lago do meu peito

menos sereno do que sonoroso

 

dante o poeta de beatrice

marília de dirceu

paramurilo mendes o moinho do mundo

se desembainhara de jandira

 

não quero ser polifônico

quero ficar como o poeta de denixe

denixe que é de ronald

(ela me chama: meu poeta)

 

minha menina com meneios de água

verte-me ministra-me mocidades de água

então senesco sed amo

 

três vezes murmuro seu nome

três vezes enlaço seu corpo cabeça-tronco-membros

e três vezes cheiro seu pescoço que exala mirto

e beijo sua boca

(fade out/in, quem sabe nesse intervalo?)

melhores que todas as cervejas escuras

são seus beijos

 

 

 

§

 

 

tremelica teso o capim

arrepiado pela brisa cuja densidade

me faz evocar

a preguiça compacta (a nossa)

por quem dissipamos um no outro

os corpos

 

 

 

§

 

 

todas as palavras e nenhuma depois

entornadas retornadas em imagens

os pensamentos curvos

 

porque se deixam embrulhar

em meu coração

 

e o sombreado fonema à beira

do mar manso de santo antonio

de ulisboa

nesga de vináceo maroceano

 

enquanto pouso

minha fronte de cabelos encaracolados

no colo nas coxas

de minha neguinha dionísia

 

e o cheiro da árvore

a copa que se inclina a nos lamber

e o vento arruivado

memória de hálito e pregas

 

 

 

 

 

Mnemetrônomo

 

 

[escrito entre os dias 12 e 18 de junho de 2011]

 

"Soy amigo

de saber, y lo soy tanto

 que siendo ignorante libre

 quise saber siendo esclavo".

 Mira de Amescua

 

 

ao peso se dobra

 

por seu modo insurrecto e sem molhar palavra

ria menos viril que ônfalo e às pregas

alheio a mais desditas derribando regras

que lhe custaram escaras tanta choça brava

 

quando não anedotas de secar escrúpulos

aos que lhe eram caros e ruins dependendo

outra vez seu acinte prestava a medo

quem lhe dera o molesto jurara sem cuspo

 

pelo sol sem cachaço que surte com o inverno

não havia outro trato a dar à circunstância

foi sempre assim consigo e a um golpe de lança

fende-se essa página engolindo-o inteiro

 

sócios no transe

 

nem bem em si nem fora

de si uma perna

além do quadro bate

seu acento átono

figura de compasso

ao rés da luzerna

de todos os celícolas

que lhe dão o lado

com desdém ao seu dano

sem fixar arrocho

nem quitar sua chance

de vir sem reparo

ao sólio das deidades

o vulcano coxo

que alça a gâmbia seca

e sai num pisar raro

 

 

em que pé vai ossanha

ninguém sabe ao certo

bebum de muitas ervas

pisa-as com o talão

rastro ímpar no bosque

em folhas diserto

ao pé dessa muleta

argumenta ou não

sua vária medicina —

a encontra no atalho —

cura pelo caroço

o saldo dos queixumes

não rói a própria dor

o osso de que é falho

é livre de ordem unida

graças ao aleijume

 

 

o que mal se explica

 

não se faz emprestar ou separar do senso

fujo ao cimento branco da copulativa

é  cinjo-me ao calor dessa imagem que penso

flexível ao silêncio à nudez dormitiva

cadência parafrástica puro não ser

que lezama babuja leixa quando traga

e escuma a fumaça do escuso afazer

com que se justifica além da sua plaga

não precisava ser lezama a sinédoque

do meu vil trobar clus saquei-o à minha estante

por amor ao acaso para ser mais breve

chegando até aqui sem dizer o bastante

 

 

a estrela invernal

 

dizer em sáficos esses dez lustros

com que deslustrei minha juventude

não é de amargar mas me sai a custo

o tempo inda é metro ou senectude

 

curioso fado dos cinquenta anos

não me admira a lira estar banida

do horizonte de poetas gusanos

em trâmites de cláusulas extintas

 

a eles falta o que em mim viceja:

os livros que ela aqui do meu lado

palpa progênie de crespa nereida

amor de ipásia que me há mudado

 

não é que torne refeito ao arquivo

(o vampiro exsurge ao cetim do esquife

súplice morto no visgo do vivo)

tão-só me move outra vez esse filme

 

 

a mais baixa atividade mental

 

das naves do inferno trampa residual

à província admoesta sem lograr cuidado

sequer de quem lhe deve atenção mais venal

o mundo é uma máquina rolê italiano

moinho sem mais trava que se lhe ofereça

nesse samba de escol (nem loreno nem branco)

de preto feito rosselini e seu cinema

a musa maldizente opalesce porquanto

 

não há mais nula estrada gaiata pantera

a obstar-lhe o talhe efêmero histrio

do passo com que dança como se viera

de canseira em canseira aqui esbarrar triste o

córneo bibelô onde sopra o seu horror

branco marfim por sobre a porta que faculta

ar repentino rama em aceno ao décor

inça na sóbria rixa o caos que a sós discursa

 

mas se nutrira um só fascículo irritante

uma forma precária suspeita inumana

incisa a duras senhas à toa ao restante

sejam hastas ou sejam alas rente à chama

restaria pagado além do tolerável

assim um céu escuro escovado nenhuma

insinuação dos astros quando muito a idade

fria e intransigente de onde nada resulta

 

e o amor que trove letras defuntas debêntures

seus beiços cobiçosos em tarde de usura

nodosa realidade que dobra à imêmore

senhora o dispêndio a taxa da fodedura

dama de putifar guarda do faraó

protegê-la daquilo que lhe falta por ser

miúra hesitante entre o menor e o maior

tom arrasta o eunuco a dizê-la no fazer

 

 

que cansa, estafa

 

tramonta o artifício da eternidade

no plágio lacustre o eriçar dos juncos

o pai rendeu loas a iago o abade

a mãe resiste coberta de fungos

 

o crocitar do bosque turva o vento

em árdua razão a palma se alonga

quase lanha o friúme do sereno

enquanto a azenha a pilar toda ôntica

 

à beira da várzea múrmuro anuro

arredado da própria circunstância

ele se excede no que é sem augúrio

e assoma ao extremo da sua lâmina

 

 

versos de circunstância e acervo

 

tanto se dá como se perde ardor

respondi-lhe com rosto temperado

seu seio carmesim em meu honor

pendia dolente sem criar caso

então andava perdido e mal pago

escapavam-me os nervos muita vez

e com a razão não lograva diálogo

mas lhe servia mais um sirventês

só que sempre soava ser de outrora

a música com que dizia abissínia

tanto se dá como se perde a forma

respondeu-me com a face de menina

sua nuca outra volta já me entrega

o prazer do legado se renova

vinho mais barato em ânfora grega

não fora do tempo a última prova

 

 

 

 

 

 

supor-se poeta ao invés de bebum

 

 

corajoso apenas o bebum solitário

não basta ter colhão para

bebendo em grupo sindicalizado

proferir asneiras na esperança intimorata

de que no momento

seguinte nossas necedades rebrilhem

à maneira de árduos achados

 

sem ninguém com quem dividir o próprio ridículo:

esse o bebum de verdade opulento no opróbrio

nem mesmo os heróis homéreos (remeiros subalternos

quando postos em relação com o solerte e laércio odisseu)

libando além do dionisiacamente tolerável

nem mesmo tal progênie sabia beber

 

em equipe bebuns se ombreiam

até o ponto em que um

graças ao virtuosismo

se destaca do restante

espécie de mártir que absolve

os que ficaram mais atrás

 

bebum de verdade bebe sozinho

se é para beber em grupo

que se beba junto com o vinho 

ou a cerveja escura, que se beba junto

o riso de si mesmo de pacto com o vizinho

beber em grupo e dar-se em espetáculo (misto

de imolação e amolação)

é mais de envergonhado do que de sem-vergonha

 

bebum de respeito bebe consigo mesmo

não obriga o cristão

a suportar misericordioso

sua cólica narcísica

 

o bebum sabe que não é poeta

bebuns supõem-se grandes poetas

 

 

 

 

 

 

oriki para iansã

 

 

oiá empurra-nuvem

verte sangue cor de pitanga

na esteira onde se deita guerreia com xangô

 

a taça com que xangô se empapuça

 

oiá dona do rebojo do paiol

pomba e senhora priapeia dos raios

que chamejam ao charme

de sua cara de cabra preta

 

galinha vermelha que risca o chão vermelho

 

oiá empurra-vento

oiá no olho vermelho da tempestade

 

 

 

 

 

 

 

oriki de ogum

 

 

o ogum a quem devoto

um ou outro oriki

não empunha espada, não

nem é espadaúdo

tal qual os semideuses

da marvel entretenimento

nem tem a musculatura

de estopa dos grandalhões

do cinema mudo

 

rabo-de-lagarto, pontuda

planta de mosqueado verde

quando é dita de ogum

grossa, com borda de ouro

quando é dita de iansã

é o análogo com que ogum

se deixa conceber a quem

exige que pose com espada

premida na palma em brasa

 

ogum não se paramenta

de soldado medieval

o vermelho e o verde

sabem sempre a ogum

elmo, guante de dragão

são saliências de cristão

com que ogum não se arruma

 

bananeira de pendão rubro

um galo e seu esporão de ferro

uma folhagem escarlata

chamejante que estala

uma figueira e seus galhos

de tenazes o ferrão da bigorna

onde ogum faísca

onde ogum limalha

 

 

junho, 2019

 

 

Ronald Augusto. Poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016) e Entre uma praia e outra (Artes&Ecos, 2018). Dá expediente no blogue Poesia-Pau e é colunista do portal de notícias Sul21. Editor do blogue A Voz Pública da Poesia.

 

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