©thomas leuthard
 
 
 
 
 
 
 
 

TRÊS PENSATOS

 

 

1.

penso naquela única gota

gelada do chuveiro quente.

Nas ilíadas clandestinas

que a febre percorre

até virar suor. Penso nas caretas

que os músicos fazem

quando estão solando.

No meu pai me dizendo

que tudo isso aqui era mato.

Penso na imagem exata

de uma aurora indecisa.

Penso em calços de papelão

para pianos mancos.

 

 

2.

penso em alguém que, na manhã

do dia de sua morte, desiste

de usar a camisa que mais gosta,

preferindo guardá-la para uma festa

que terá na noite seguinte.

 

 

3.

penso em você, por exemplo,

largando o controle

remoto e dizendo —

do jeito mais lindo

do mundo — que adora

quando consegue pegar

um filme do começo.

 

 

 

 

 

 

SPOILER

 

 

Lembro que você me contou

uma história incrível.

Embora não lembre a história,

sou capaz de soletrar,

inclusive, a brisa que,

por um microssegundo,

inflou a cortina da sala.

(Um pedacinho de uma tarde

dentre as trilhões de tardes

que existiram naquela tarde.)

Lembro as pausas,

a música dos seus braços,

o cabelo tirado do rosto

no momento exato.

(Um bombom de ternura

com licor de naufrágio.)

 

 

 

 

 

 

O QUE SEGUE é um silêncio

habitado pela tentativa

de caçar uma brecha que seja

entre o matagal

que virou o terreno

onde antes havia

a grama aparada

desta simplicidade

 

 

 

 

 

 

BRUXISMO

 

 

Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por

exemplo. não, não uma bebedeira, mas o começo

encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer

motivo, a vida irrigando o corpo como nicotina.

Podia ser uma baleia encalhada na praia

do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.

Podia ser uma antena em estado de coma.

Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo

desolado por não estar com sua câmera

naquele momento. Ou um menino, sentado

na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.

Podia ser uma seleção de crônicas publicadas

em lugar nenhum. Um Deus discotecando

instantes. Um hidrante aberto no agora.

Podia ser uma mulher suspendendo a barra

da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos

que morrem após a picada. Uma adega de

ausências que o tempo elabora. Podia ser

um exame que, buscando uma coisa, diagnostica

outra. sim, podia ser isso tudo. Uma solidão

acesa no abajur da melodia. Um macaco

se olhando na água no primeiro dia do mundo.

 

 

 

 

 

 

FILME

 

 

Você pede para eu apertar o pause

e vai ao banheiro

deixando ao meu lado

seu cheiro quente

no travesseiro amassado.

Penso por um segundo

no texto que fiquei de escrever

para uma revista de literatura.

"Se é possível conciliar experimentalismo formal

e lirismo na poesia".

Ouço sua bunda

desgrudar-se da tampa

que bate seca

e levemente na privada.

A descarga, a torneira ligada,

imagino uma grande sequência.

A preguiça tem algo de comovente nos dias úteis.

Você volta ao quarto dizendo

— Está me dando uma fome!

enquanto rimos da pose engraçada

em que o ator parou.

Antes de apertar o play

chego a esboçar que algumas pessoas

são incapazes

de tirar a poesia do sério.

 

 

 

 

 

 

SINOPSE

 

 

Canetas que falham ao lado do telefone.

O baque das havaianas na escadaria.

O labor sigiloso de um poema.

Um gemido de geladeira

nalgum ponto perdido do dia.

 

Um copo que nosso brusco

e cômico malabarismo

evitou que se quebrasse.

 

 

 

 

 

LITERATURA COMPARADA

 

 

Quando o mundo é um cruzamento

movimentado cujo semáforo pifou.

futuro é um cartaz de filme antigo

num cinema que já fechou.

angústia é esse instante

durando meses. afeto

é uma conversa entre velhos amigos

no bar mais próximo ao velório de um deles.

marcos rey

foi meu Chuck Berry da literatura.

carne moída é o leite

condensado das misturas.

paz é sorrir por dentro. postais

são imagens pingando

das goteiras do tempo.

entrar é o começo

de sair. "ser original

é tentar ser como os outros

e não conseguir".

academia é a repartição pública

do corpo. simplicidade

é a superfície do topo.

fracasso é o abajur da sorte.

cantar é roubar

uns minutos da morte.

 

 

 

 

 

 

BREVE

 

 

Lembro uma crônica

em que perguntavam ao Mario Quintana

se ele queria uma carona

Ele disse não, obrigado

Estou indo para outro lado

 

 

 

 

 

CONTRAPLANO

 

 

Algo ganiu no peito das formas;

 

vareta quebrada

de um guarda-chuva,

 

um cachorro

mancando na aurora.

 

Chave brigando

com a fechadura;

 

traduzindo, em

volta, o que só existe

 

de ir embora

 

 

 

 

 

 

RESTOS DE ESTÚDIO

 

 

Cada cigarro fumado na madrugada fria do posto

de uma cidadezinha absurda qualquer

durante a parada do ônibus.

Quantas imagens apodrecidas

na garganta seca das descrições,

canções que não chegaram a tempo.

 

Quantos dentes pintados de preto

nos retratos sérios dos livros de história,

tanto amor que virou desespero.

Cada silêncio perdido no grito,

tantos cacos de vidro em cima dos muros,

como se eu mesmo os tivesse escrito.

 

Quantos versos criados a bordo e não anotados,

tanto rancor latejando

na mudez de socos não redigidos,

tanta fita cassete e as gargalhadas

de todos os loucos

espanando o sublime do mundo.

Quantas giletes cuspidas de um pulso,

 

tanto caderno novo começado,

quantas falas roubadas de amigos,

tantos pântanos não soletrados.

Quanta inocência colhida em varandas de abismos

que eu carrego comigo

como um tesouro afundado.

 

 

 

 

 

 

FORTE APACHE

 

 

Noel Rosa dizia que era universal sem sair de

seu quarto. Elvis Costello disse que o rock 'n' roll

não morrerá porque sempre vai ter um garoto

trancado em seu quarto fazendo algo que ninguém

nunca viu. Laura Riding, por seu turno, falava

da pretensão de "escrever sobre um assunto/

que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão

compacta do quarto/ Lotando o mundo entre meus

cotovelos". Já François Truffaut considerava-se

pertencente a uma família de cineastas que

praticava uma espécie de "cinema do quartinho

dos fundos, que recusa a vida como ela é" —

como "nas brincadeiras de crianças, quando

refazíamos o mundo com nossos brinquedos".

Como escreveu Ferreira Gullar no Poema sujo,

"que me ensinavam essas aulas de solidão"?

Aliás, é Pascal quem avisa: todos os males

derivam do fato de que não somos capazes

de permanecer tranquilos em nossos quartos.

 

 

 

 

 

 

JOSEPH MITCHELL

 

 

Falo de dias frios. De movimentar

a torneira do chuveiro

como quem ausculta

o segredo de um cofre.

Como diria Herberto Helder,

do "nosso dardo atirado

ao bicho que atravessa o mundo".

Falo de um músico

cuja maior virtude

está nas notas que não toca.

Dos filmes que não se privam

dos tempos mortos.

Sim: falo de entregar o ouro.

De alguma espécie

de alvenaria efêmera.

Das narrativas que iluminam

o que deixaram de fora.

 

 

março, 2019

 

 

Marcelo Montenegro (São Caetano do Sul/SP, 1971) é um dos principais nomes da nova poesia brasileira. Os poemas aqui publicados estão em Forte Apache (Companhia das Letras, 2018), que além do inédito, reúne os seus dois primeiros livros na íntegra — Orfanato Portátil (2003) e Garagem Lírica (2012). Além de poeta, é roteirista e criador de séries de ficção — já escreveu para HBO, Netflix, Globo, MTV e GNT, dentre outros. Em parceria com o guitarrista Fabio Brum, lançou o CD Tranqueiras Líricas (2017), registro em estúdio do espetáculo homônimo com o qual se apresenta há mais de 10 anos dizendo seus poemas ao som de rock 'n' roll, blues e jazz.

 

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