buquê de presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.
TRoGloDit LíRiCs

chega em casa estouvada madrugada/ num
só prego/ bode/ as pernas entornam
pela sala/ o fígado/ passional/ despedaça
na latrina/ o estômago suporta a última
besteira/ sem cerimônia/ por lá mesmo
fica/ neblina na geladeira/ guiado por
anjos/ asnos barrocos/ com desastre
adentra ao quarto/ restam ainda as
mãos/ só o que precisa/ pra janela
escancarar/ e levemente o que resta
arremessar/ no parapeito de alguma estrela
grutas

................ para Denise


À paisagem gravitam
Nas grutas do invisível
Pequenas ou grandes coisas
Que não se explicam

E aparecem
E passam
Evaporam
E chovem no meio do mar

A gente nunca sabe a hora
E é sempre a hora exata

De se olhar
carro bomba na terra do nunca

A noite colhe suas rosas como um monólogo
Veste as meias com a parte do calcanhar pra cima
Uma vendedora de correio elegante na quermesse
De óculos escuros dublando esse frio na barriga
Algum louco internado na minha garganta
A linha do horizonte espalhada pelo labirinto
Pilotando um Carro Bomba na Terra do Nunca
O medo é um rascunho passado a limpo

(Poemas do livro Orfanato Portátil)

Existem aqueles dias em que raros delírios
resolvem fugir de milhões de cabeças
que ainda não se ergueram totalmente
do travesseiro papelão
banco de praça ou algo similar.
Como gritos inauditos
lançados em trechos
de desertos barbudos.

Existem aqueles dias em que os próprios dias
se escondem atrás de viadutos incógnitos
só pra tirar um barato da gente.

Existem aqueles lampejos
em que tempo não há nem de suor.
Nem de vida nem de morte.
Nem de sorte nem de azar.
Quem sobrevive sente a faísca.
É somente respirar.
Dar porrada. E levar.
um cisco seda
pergaminho
especiaria
leve pluma pousa
em câmera lenta
na superfície
da sua face

e brisa lhe beija
beijo de ar

veterano do vento
infinito desejo
beijo beijo

não vem do alto do avião
nem dos fogos de artifício

não veio do Japão
nem das promissórias
do compromisso

teria ele
ofício de paixão
saltado de um edifício
de dentro
da minha imaginação?

(Poemas do livro De Soslaio)

Acabar com toda gentileza
E concluir minha própria temporada de caça
Parar de me arriscar
Dar o fora da minha natureza
Esganar essa ternura metida a besta
Sabotar a causa
Mutilar a festa
Desistir do que penso
Psicografar meu riso
Sancionar meu egoísmo
Panfletar este silêncio
Cultivar uma plantação de morcegos
E no meu alfabeto maluco de medos
Apagar de uma vez por todas
Todos os aposentos da delicadeza
Estuprar essa leveza
Destituir-me dessa maldita mania
De sempre esquecer
Uma luz acesa


(Inédito)
Marcelo Montenegro (São Caetano do Sul, São Paulo, 1971) adora pastel de queijo, literatura, cerveja e antigas músicas bregas revigoradas em filmes. É santista, odeia campari, bife de fígado e de vez em quando escreve uns poemas tristes. Alguns deles já foram publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, no fanzine Toxina e nas revistas Cult, Medusa, A Cigarra e Coyote. Em 2000 criou, juntamente com Walter Figueiredo, Robson Timóteo e Jorge de Oliveira, a Bedrock Vídeo. Publicou De Soslaio (Alpharrabio Edições, 1997) e Orfanato Portátil (Atrito Art Editorial, 2003). Seu blogue: www.carrobombanaterradon.blogger.com.br

 

 

espantalho descarado
.
..........................................
para Fábio Henriques


ando assim
tipo um erro flácido ambulante
sem êxito, hesitante
disco riscado
fora de catálogo
no pó do instante
ando assim oco, uma crosta
vodu cansado que com a sorte
nem mais dialoga — diamante
ando assim sem linguagem
sem faro, espantalho fora de foco
ando assim
mais opaco que olímpico
esquivo, íntimo, insípido
um mastodonte pensando
desamparado
aspirando a paralelepípedo
ando assim meio buster keaton
um tanto de lágrima hasteando o riso
ando assim raso
indiferente
me divertindo um bocado
eu ando mijando no poste
porque o banheiro
está sempre lotado