©raphaëlle martin
 
 
 
 
 
 
 

Enquanto esperava a exata hora que haviam combinado, não pôde evitar recordar um poema de Wislawa Szymborska, com seu narrador oculto observando o terrorista e as vítimas nos minutos que antecediam a explosão de um artefato. Sentiu-se assim ao ver o casal que entrava de mãos dadas, a jovem que saía um tanto apressada, o carro bem polido guiado pelo manobrista. Para tentar driblar a ansiedade olhava a vida apressada, por vezes distraída, dos que entravam e saíam do restaurante. E carregava sentimentos tão contraditórios que chegou a temer que eles explodissem, como uma bomba, a qualquer instante.

Foi quando sentiu uma mão tocar seu ombro e, de súbito, voltou-se para trás. Há pouco mais de duas semanas tinha sido vítima de um assalto na rua, levaram sua bolsa e telefone depois de sair da escola onde ministrava aulas. Mas desta vez era Francisco: conservava o mesmo rosto, os mesmos olhos, talvez um pouco opacos, amaciados pelo tempo. O cabelo e o vigor da juventude haviam rareado.

Era um idoso, teve que admitir, quando percebeu que ele segurava uma bengala com a mão direita. Ela estava um pouco constrangida, tentando controlar as emoções, que não poderiam ser menos antagônicas por tudo que já havia vivido. Então, ele passou a bengala para mão esquerda, para poder erguer a direita convidando-a para entrar no recinto. Enquanto dirigiam-se à entrada a passos lentos, ele disse que ela mudou pouco, quase nada. Que conservava o rosto infantil e o semblante sério, agora contornados pelo corpo de mulher.

Por falta de assunto, ou por querer encontrá-lo, ela perguntou por Emília e Catarina. Perguntou por Dulce, a mulher forte que admirava, como se não soubesse que ela estava morta. Perguntou por toda a família, como se não tivesse se informado antes sobre as coisas essenciais, para não ter nenhuma surpresa. Para que o arrependimento não fosse maior ao encontrá-lo. Só aceitou o convite depois de saber que ele vivia só, as filhas moravam longe, e que o outono de sua vida parecia ser melancólico.

Não se envergonhou por falar de sua vida modesta; disse que era professora e morava num pequeno apartamento. Que casou e descasou, mas não contou que foi sem nenhuma paixão. Incomodava-a falar de si, as palavras quase não saíam, mas era necessário que ele soubesse dos seus sucessos e fracassos, que tivesse a medida aproximada de toda a vida que lhe havia sido negada.

E quando chegou o momento de pedir a sobremesa, ele perguntou se havia rabanada. Bom, não é Natal, ela pensou. Mas a memória era um terreno movediço e, de súbito, voltou-se não para trás, como havia feito ao sentir a mão do velho em seu ombro, mas para o que não poderia ser apagado.

 

~

 

Você é uma menina que cresceu pela cozinha e quintal da casa. Quase nunca atravessava a linha imaginária que sua mãe havia estabelecido entre os fundos e a sala de estar. Mas foi à espreita, no corredor, que viu nos primeiros anos de sua vida o grande pinheiro de plástico com chumaços de algodão a imitar a neve.

Passado tanto tempo, a palavra neve para você ainda significa algodão.

Quando era próxima a Emília e brincava subalterna aos seus caprichos, quando se sujeitava a perder a desejada boneca de cabelos loiros, foi que recebeu o convite para avançar até a árvore e ajudá-la a colocar a neve com suas próprias mãos. Ao redor de vocês, sob o inquieto zumbido das moscas, o calor do verão consumia a terra. Era assim, limpando o suor do rosto, do cabelo que grudava à pele no mormaço das tardes de dezembro, que riam, discordavam, e esgarçavam os chumaços de algodão para que cobrissem de forma generosa a parte superior dos galhos do pinheiro. Mas a estrela, sempre a estrela, o coração da árvore, seria erguida e colocada no topo do pinheiro por Emília ou Catarina. Você deveria conhecer o seu lugar, era o que sua mãe dizia enquanto empanava e fritava no tacho quente as fatias de rabanada.

As luzes se acenderam.

Francisco, o pai, ria com os homens da família enquanto embebedavam o peru que seria servido na ceia. Um animal condenado, como um criminoso, aguardando apenas o cumprimento de sua pena capital. Você olhava o peru a cambalear, cada vez mais trôpego, enquanto imaginava qual seria o momento exato do abate. Eles entornavam, um por vez, na goela da ave, copos de cachaça para amaciar-lhe a carne e aliviar-lhe a morte.

O peru foi abatido longe dos olhos de Emília e Catarina, mas esqueceram de proteger os seus. Como tudo numa casa, sua mãe, a empregada Juliana, dizia, o serviço sujo se faz nos fundos. Na época, você pensou que ela se referia aos restos de alimentos jogados no quintal ou à matança de porcos e aves para a ceia. Depois, quando descobriu sobre seu pai, entendeu o que a sentença de sua mãe queria dizer.

 

~

 

Agora, à sua frente, batia um velho coração que certamente não demoraria a parar. Viúvo, sem a atenção das filhas por quem havia zelado, restava-se, talvez, um corpo lento, um homem arrependido de sua vida passada. E se ele se engasgasse com a rabanada que comia avidamente? E se ao levantar tropeçasse e desse com a cara no chão? E se os funcionários do restaurante a olhassem e perguntassem se não era melhor ligar para a família para prestar socorro? E se "olhassem" para sua cor, descobrissem ser ela a filha da empregada, e lhe negassem a possibilidade dos laços de parentesco?

Não era só ela que guardava a bomba do poema revolvendo-se em seu peito. Aquele homem também deixava transparecer, nos seus pequenos gestos nervosos, as inquietações do seu remorso. Eles permaneceram impávidos, um diante do outro; ele talvez sem encontrar maneira de dizer algo que o redimisse do passado; ela sem coragem para falar da mágoa que a consumia desde a descoberta. Não adiantava esperar mais que ele expressasse "minha filha". Havia prometido a si que mesma que se ouvisse o que sempre esperou, não diria, em retorno, "meu pai".

Um bebê na mesa ao lado começou a chorar alto e não havia gesto da mãe que o consolasse. Era a senha de que ela precisava para encerrar o encontro. Então, ela fez questão de pagar a conta, num último gesto de orgulho, ao que ele resistiu. Mas seu corpo frágil não permitiu o desgaste do embate sobre quem deveria pagar. Aceitou com o coração aberto aquela gentileza. Quando começaram a descer a escada, o velho se desequilibrou um pouco e tentou se apoiar melhor com a bengala. Ela, num impulso, amparou-o com sua mão, apoiando-o em seu corpo. E sentiu um misterioso afeto brotar de seu ato.

Ao vê-lo se afastar, caminhando com o vagar próprio do seu tempo, ela sentiu um aperto no peito, como se pudesse sentir toda a vida que poderia ter tido ao seu lado.

Poderia telefonar dali a alguns dias para sugerir que se encontrassem de novo no Natal.

 

 

[Conto inédito no Brasil, publicado em Portugal]

 

 

março, 2019

 

 

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, Brasil. É autor da coletânea de contos A oração do carrasco (2017), finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tem contos traduzidos e publicados em revistas especializadas na França e EUA. Seu mais recente trabalho é o romance Torto Arado, vencedor do Prêmio LeYa 2018.

 

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