Amado

 

 

Hoje, pela manhã, separei três ovos, retirei o leite e a manteiga da geladeira. Olhei também a validade da farinha de trigo com fermento. Coloquei tudo em cima da mesa e sentei. Fitei o sol, uma luz branca e silenciosa pedindo licença, chegando copiosamente pela janela de vidro da cozinha. A cortina amarela brilhava seca. A luz se estendendo mais e mais, alcançando meus pés, aquele calor repentino acompanhado de um arrepio que surpreendia. Calor estendendo-se pelos pés como línguas de fogo. Algo entre o sereno e o cálido, uma mensagem tranquila para um começo de dia.

Há pouco, havia retirado a mesa do café da manhã. Um café silencioso como fora nas últimas duas décadas. Nós dois sentados à mesa. Uma mesa como muitas mesas. Uma toalha xadrez, de que gosto muito, e que oscila entre o laranja, o amarelo e o vermelho. Torradas, mamões cortados e sem sementes, por vezes um melão espanhol. O bolo dominical. O aroma do café fresco e a nata flutuando no leite depois da fervura.

Meu marido sentou-se e tomou café. Quebrava o silêncio persistente com uma frase que não entendia, perdido entre seus livros. Às vezes falava de um sonho. Tomava um café rápido, em quinze minutos ou menos. Ao sair da mesa, beijava-me a testa, passava a mão carinhosamente em minha cabeça. Hoje, particularmente, falei sobre a aposentadoria, a festinha que prepararam no cartório de registros, onde subscrevi nascimentos durante quase trinta anos. Ele sorriu dos balões de festas, eu também. Levantei-me para buscar o álbum que havia recebido como presente, com momentos daqueles anos: a partida de um colega, festas de fim de ano, aniversários. Um bonito gesto, mas que me deixou com uma particular melancolia, porque observava entristecida meu corpo declinando, meu desmonte físico, meu semblante endurecendo. As linhas do rosto em evidência. Havia ausências. O corpo ganhava peso, existia, nas primeiras fotos, uma luz, uma insistente alegria. Em uma das fotos, estava com um vestido de grávida feito por minha mãe. O braço forte repousado sobre a mesa. Gostava da foto e não me lembrava mais de sua existência. Chorei com a surpresa, tão delicada, de companheiros novos e velhos. Companheiros de uma vida.

Ele demorou-se mais à mesa que os outros dias. Olhou, atenciosamente, o álbum. Retirei o farelo de pão que caiu sobre o plástico que a revestia com dois movimentos de dedos. Ele sorriu, conteve também a emoção quando me viu mais nova, nos primeiros anos de nosso casamento. Havia uma saudade pelos tempos mortos, a contemplação do nosso natural declínio. Melancólico. Mas não havia tristeza naquele contemplar... Havia uma emoção particular por nossas histórias e trajetórias, em parte, vitoriosas.

Quando fechou o volume, olhou-me com ternura, vi seus olhos levemente úmidos e percebi um pouco do amor que me destinara em seu sorriso. Senti regozijo e acariciamos nossos rostos. Seu beijo hoje foi mais profundo, reservado aos nossos momentos especiais, dosado como um poderoso remédio.

Saiu pela cozinha com o jornal. Vi ele se afastar em direção ao sol, os braços brancos, os cabelos cinza-grisalhos, os óculos pendurados no pescoço e o tronco levemente curvado. Sentou-se na mesma cadeira branca ao lado da palmeira. O mesmo sol sereno, que me chegava aos pés, era o que lambia suas frontes.

Os ingredientes do bolo estavam dispostos aleatoriamente na mesa. Fitei, mais uma vez, a fração de céu, o tempo silencioso, a luz que levantava e alcançava o começo de meu joelho. Respirei profundamente, sentada e tentando fazer com que a coluna permanecesse ereta.

Mais cedo, quando lavei o rosto, ao acordar, escovei o cabelo grisalho, quase todo branco. Sequei a face, como todos os dias, com uma das toalhas secas que ficava embaixo da pia. Às vezes, como nessa manhã, tinha tempo de olhar ao redor de meus olhos. Percorria as imperfeições de minha pele, os vincos profundos, os mais leves. Incomodavam-me, mais que todos, os que ficavam ao redor da boca. Achava que me deixavam com um aspecto de mulher má. Tinha pavor de ser comparada a uma mulher má. A culpa recortou o meu caminho, fez-se presente nas últimas duas décadas. Ecoava, diariamente, como um pio de coruja cortando a noite, a cada vez que me movimentava pela casa, que saía até a porta, que via crianças brincando de bicicletas ou encontrava em meu caminho uma família aparentemente feliz. As rugas, ao redor da boca, não eram a marca da maldade, mas, na construção do meu inconsciente secular, ressoavam fazendo com que parecesse as velhas bruxas dos livros infantis.

Tudo tinha sido tão perfeito, até o sorriso se extinguir pela porta, se dissipando num dia de sol e sem ventos. Abri os olhos para não recordar apenas esse estrito momento. Levantei a mão à frente do espelho, gostava de fitá-la um pouco retorcida como um galho velho e seco. A pele recheada de manchas. As mãos que carregaram, que amaram, que se despediram. Era como uma bandeira erguida num eterno adeus. Levei a mão até meu rosto, acarinhei delicadamente as minhas pálpebras, toquei, num reencontro, a pele e meus olhos. Caminhei para a cozinha, quando escutei a cama se mexendo.

Um bolo se faz com ovos, farinha de trigo, leite fresco e boa manteiga. Um bolo se faz para dias especiais também, como um aniversário. O bolo era para um aniversário. Não falei nada, pela manhã, sobre isso. Não costumava falar. Era uma obrigação anual, diferente, um resgate de minha história, das histórias dos meus. Havia mais um ingrediente que, por vezes, me esquecia de relacionar: lágrimas. Gotas de líquido salgado, descendo de minha face, temperando a massa leve e cremosa com minhas memórias, dúvidas, tristeza pelo tempo e um frágil cristal de esperança. Era o único ingrediente que não precisava ser lembrado, que brotava espontaneamente, todos os anos, como as chuvas das monções ou a Fonte das Pedras.

Peneirava a farinha, uma mistura de poeira fina e fragmentos da mente, dedos e nuvens tocando o branco do sol. Segurava, já sem o mesmo vigor dos anos, exausta pelo esforço, pela presumível inutilidade do gesto. Era como se, quando a massa crescesse no calor do forno, fizesse junto aos bons presságios. É como se as lágrimas e as mãos comungassem num experimento de alquimia e encontrassem a minha panaceia particular.

Aquecia o forno a cento e oitenta graus, riscava o fósforo, apagava-o com um sopro. Quisera apagar, no sopro, as coisas que me fizeram e me fazem sofrer e que não gostaria mais de lembrar. Como guardar os bons momentos, as boas lembranças se, inevitavelmente, uma coisa remete a outra, e a memória amalgama tudo de forma cruel?

Há vinte e seis anos, nascia meu primeiro e único filho. Tão amado havia sido, tão esperada foi a sua chegada. Lembro-me adentrando a casa, com ele em meus braços com a manta amarela, os cabelos negros, os olhos saltitantes, o filho tão amado e esperado.

Fechava os olhos e sentia-o sugando meu seio, mamando, forte e vivo, tão faminto — a sensação é a mesma na pele e no movimento, na minha pele insensível de seios velhos e murchos. Fechava os olhos, e tudo era agora.

Nas manhãs verdes e radiosas, saía com o pai para dar as primeiras pedaladas de bicicleta. Espantava-se com os bichos, emocionava-se com a natureza. Ensinamos a amar a tudo da forma mais generosa possível. Só não lhe ensinamos sobre a brevidade das coisas, a efemeridade do mundo e dos sentimentos. Dizia para ele acreditar que o amor era eterno, indestrutível. Repeti insistentemente que o amava. E até hoje digo, em minhas orações, numa esperança eterna.

Ajudava nas tarefas da escola, sorria dos desconexos brinquedos do seu comércio. Negociava as coisas da casa, as coisas construídas por suas mãos: aviões tortos de papel, pulseiras com fios que sobravam das empresas de telefonia. Sorriamos, porque éramos os únicos compradores de suas bugigangas. Havia uma indescritível emoção e loucura no meu amor maternal. Coisas inomináveis. Coisas que não conseguiria traduzir.

Numa manhã de domingo, como em muitas outras, me despedi à porta. Ele portava a bicicleta que demos de presente no último natal. Dali a alguns meses completaria oito anos. Era um dia de sol forte e sem ventos. Um dia claro e passageiro. Voltei para a cozinha para preparar o bolo para o seu lanche da tarde. A mesma receita, com a diferença de que hoje existem lágrimas para acrescentar um leve sabor de sal.

Ao meio dia, ele não retornou para o almoço. A mesa estava posta, e o pai tomava banho. Saí à rua, esgueirando-me pela porta. Andei uns duzentos metros. Olhava os arbustos, as árvores, as casas vizinhas. Tentava imaginar onde pudesse estar. Talvez se escondendo para, de repente, beliscar minha perna sorrindo. Enxugava minhas mãos na barra da saia. Olhava, atentamente, a tudo chamando seu nome. Voltei para porta. O pai enxugava a cabeça. Ele disse que havia deixado o filho na porta, logo entraria para tomar banho. Resistiu tranquilamente à ordem do pai, pediu para ficar mais um pouco. Observava-o da janela da cozinha. Tudo tão iluminado, o sol forte, o suor escorrendo pelas costas. Voltei para fora. Vi sua bicicleta encostada na parede da casa. Cheguei mais perto e a toquei: estava fria.

 De repente, o frio e o tremor.

As buscas mobilizaram os vizinhos da rua. O dia escureceu. Lembro-me da comida fria à mesa. Imaginava o que poderia ter acontecido. Telefonei para os amiguinhos da escola. Batemos de casa em casa na vizinhança. Minha irmã que morava distante chegou para ajudar. Os vizinhos foram solidários. O tempo se esvaía e não obtínhamos notícias. Notificamos à polícia, andamos por quase todos os hospitais da cidade, no necrotério. Não me lembro, ao certo, de quando comecei a chorar, mas, quando completou vinte e quatro horas de sua ausência, retornei para casa, amparados pelos mais próximos amigos e familiares. Lembro-me de desabar ao chão de forma vazia e dolorida, caindo como uma folha seca, morta, desacreditada.

Ele havia desaparecido como desaparecem as coisas maravilhosas: a chuva que evapora, o fogo que se extingue. A vida que se finda. Alguém o havia roubado de mim. Dezoito anos depois, ainda o procuro por esquinas, cidades, por sonhos que ninguém pode compartilhar. E a dor que me dilacera é a ausência de resposta, de seu corpo. A dúvida. A pergunta em meio a um mar de dúvidas.

 

*

 

Arrumei a mesa para você. Fiz ovos fritos, chocolate, torradas. Amei você, apenas amei, sem nenhuma resposta, sem nenhum entendimento. Era a minha continuação. O espectro de minha eternidade.

Você pulou em meu colo, abraçando minha cintura com suas pernas que cresciam. Você beijou minha face de forma forte, deixando um molhado de saliva, algo mágico e único que, por mais que se passem os dias, jamais esquecerei.

Você deitou as duas noites anteriores em nossa cama, entre mim e seu pai. Colou-se ao meu corpo, deixou emanar calor para o que chamávamos de família. Você estava no centro de nossas vidas. Era um doce motivo para continuarmos vivendo.

A casa está impregnada de cores. Há brinquedos e livros ilustrados para que deleitemo-nos juntos em nossas descobertas. Seu pai carrega um orgulho da cria, da continuação. Vejo, nos olhos do pai, o quanto o filho o completa como homem. Não temo a quebra da harmonia familiar.

Você, quando cansa de ouvir minhas histórias, tenta trazer minha atenção para o que está ao seu redor. Por vezes, pega, na penteadeira, uma escova para deixar meus cabelos embaraçados. Eu gosto de sentir suas mãos pequenas em minha cabeça e não costumo pensar sobre a utilidade do instante. Me senti por muito tempo melhor assim.

Há brinquedos esparramados pelo chão da sala. Existem momentos em que sentamos juntos para brincar de qualquer coisa. Há muitas coisas que consideram a eternidade em sua imaginação. Delicio-me com seu sorriso divertido, e quase nunca o vejo chorar. Sua imaginação tem cores vivas, cintila como uma aquarela que nunca será concluída. Abraça meu pescoço ao "derredor", e seus braços e abraços marcam sempre a minha pele clara.

Vejo-o pedalar entre os bosques em meus sonhos, mas é na rua que se desespera a me chamar. Corro para lhe buscar e quase sempre o acolho em meus braços. Vejo-o na rua pedalando, voando como um pássaro ágil. Cresce forte e veloz. E tudo isso me dá uma infinita tranquilidade.

Você me pede para brincar. Quer dar umas voltas de bicicleta pela rua. Não irá muito longe, e seu pai lê o jornal do domingo na porta de casa. Você entra correndo na cozinha e beija-me por trás enquanto misturo o leite à massa do bolo. Coloca o dedo na massa, e eu olho com reprovação, mas com uma agradável sensação na alma. Paro um pouco tudo para, juntos, carregarmos a bicicleta que está no vão interior da área de serviço e levá-la até a porta. Você veste uma blusa branca e uma calça azul-marinho. Nos pés, está um par de tênis novos que ganhou no último domingo de sua avó. Seguimos juntos com as mãos sobrepostas no guidão da bicicleta. Você não olhou para mim quando saiu pedalando, ziguezagueando pelo asfalto. Acenou com certa pressa para o pai, que levantou a cabeça do jornal e lhe sorriu de forma pálida. E eu demorei-me na profundidade de um longo adeus.

 

 

 

 

Autoficção

 

 

Você ainda guarda as lembranças frágeis de sua infância. Transita por um e outro caminho em busca de algo que comunique o que se desperta em seu interior. E procura. Você escuta as histórias das suas avós, maternas, ancestrais. Elas contam as experiências mais antigas, as histórias que fazem o cotidiano, transmitidas geração após geração, e que irão se transformar em seu íntimo como se fosse uma adaptação teatral ou cinematográfica. Você escuta e reconta as mesmas histórias de outras formas para as árvores e animais que habitam o quintal de sua casa. Conta também para os irmãos, primos e vizinhos que se dispõem a ouvir.

Seu avô retorna do trabalho e traz uma revista em quadrinho para testar a sua leitura. Você se sente como se já tivesse vindo do útero machucado de sua mãe pronto para ler e desvendar a vida. É como se sua professora o tivesse apenas ajudado a romper o invólucro de palavras que adormecia no seu crânio, porque desde o início foi dessa forma que contaram e repetiram à exaustão: as palavras estão na sua cabeça. Elas chegam por seus olhos e se depositam no tecido esponjoso de seu cérebro, entre o fluxo de sangue e as dores lancinantes que costuma ter. Para que caibam todas, imagina que elas devam ser microscópicas como as células. As palavras caminham entre as células e ali se alimentam uma das outras. Elas preenchem o espaço entre a vida, mas nenhum cientista anunciou essa descoberta. As palavras deixam seu corpo como réplicas, por sua língua, e você conta e reconta o que pode ser dito. Descobre mais tarde que as palavras deixam também seu corpo através de suas mãos. Deixam-no para se inscrever nos papéis, nos muros, nos cadernos. Para se inscrever em algoritmos binários visíveis sob a luz. Deixam seu corpo e viram coisas vivas, transcritas como seu ouvido as compreendeu.

Você sorri quando percebe que de suas mãos saem palavras como os raios de energia dos super-heróis. Você realmente se sente poderoso quando nota que delas - reunidas numa frase, num parágrafo, numa história – recria-se um mundo novo ou conhecido, e sente que tudo isso é bom. Sente-se como um deus poderoso que habita as preces das mulheres de sua casa. Percebe que se você não conseguiu ganhar aquele presente no Natal, poderá contar uma história em que alguém como você o ganhe, e isso o faz feliz. Ou mesmo descobre depois que não é tão feliz assim, porque assim as palavras o fazem sentir-se. As palavras se apagam e tudo passa.

Você na mesma medida descobre um jardim de nomes. Na escola, a professora lhe oferece um livro e depois outro livro. E você lê e lê e não deseja mais se afastar deles. Há toda uma vida singular naquelas obras que se projetam como janelas para onde seu olhar se volta, porque você precisa aprender sobre o mundo. Nunca mais você as deixa, ou melhor, as deixa para pousar seu olhar em outras janelas, cada vez maiores e que o leve para experiências mais distantes. Você recorda da borboleta que em toda sua fragilidade tenta desvendar o mistério do assassinato da noiva do grilo. Você relembra dos meninos apátridas e dos crimes que povoam as tramas de todas as conversas dos adultos. Recorda o escaravelho que chega de presente para os predestinados à morte.  Você é atingido pela violência humana sem qualquer piedade, mas é também elevado à mais sublime das epifanias. Assim, descobre mundos fantásticos que se revelam a cada despertar que a leitura lhe provoca.

Não distingue a obra da sua própria criação, então começa a recontar as mesmas histórias, guiado pela liberdade que descobre nesse ato. Você recria os universos errantes que o atravessaram e os projeta de uma forma nova. As palavras o atravessam e sem sentir se percebe atravessando continentes, mares, tempos diversos dos quais você vive. Você de repente está na idade da pedra e se transmuta para outras galáxias onde sentimentos distintos e imutáveis continuarão a lhe tocar.

Erguem-se sob seu olhar as alegorias que falam mais de si do que do outro. É um movimento que cabe no significado de cada palavra ou nos novos significados que você constrói quando os antigos já não lhe satisfazem mais. Aninha-se como um feto no livro que se faz útero. Porque você precisa nascer a cada obra que se finda ou não. Você precisa nascer todos os dias ensaiando a ruptura que marcará o seu caminho.

Logo você percebe que ler e escrever são a continuidade de um mesmo ato. Desde as inscrições rupestres, dos nossos mais remotos antepassados, até as mensagens instantâneas que transmitimos e recepcionamos nas máquinas que se tornaram a extensão de nossos corpos, fomos arrebatados pela mesma necessidade de observar e recontar nossas vidas. Você compreende que esse ato lhe permite não só debruçar-se sobre a sua experiência, como também debruçar-se sobre as experiências de todos os homens. Não importa se é a história de uma dona de casa em seus devaneios no quarto da empregada que foi despedida, ou se é a própria empregada narrando a trama de seu mundo injusto. Ou um homem que revive sua vida inteira em um único dia, ou mesmo uma visita de poucos dias que se estende por sete anos numa montanha mágica. Você é atravessado por guerras, por eventos da história, pela esperança mais íntima de uma criança. E já não sabe mais dizer se todo esse delírio o torna melhor ou pior do que era. Apenas não faz de outra forma porque foi assim que se descobriu vivo.

 

 

 

 

O espírito aboni das coisas

 

 

O sol bahi cresceu no céu neme com muita luz. Agora é hora de partir. Tokowisa se pinta para adentrar a floresta. Tokowisa carrega penas, zarabatana, arco e flecha. Tokowisa tem os pés descalços e o corpo forte. Quando entra na floresta, não se distingue a força de uma árvore da força de Tokowisa. Não se distingue o espírito aboni de uma árvore do espírito aboni de Tokowisa. Não se distingue o espírito aboni de um caititu kobaya do espírito aboni de Tokowisa, nem o de um macaco-guariba dyico do espírito aboni de Tokowisa. Todos os animais falam e indicam os caminhos das coisas. Tokowisa para, escuta o que a árvore diz. Ele se agacha na beira do rio faha e escuta o que lhe diz. Olha para o céu neme para logo depois fechar os olhos e escutar o que a chuva faha lhe diz.

Tokowisa precisa encontrar a palmeira de abatosi para curar sua mulher, Yanici, que espera um filho. Tokowisa tem outros filhos e filhas. O velho xamã disse que Tokowisa tem que encontrar a palmeira de abatosi nas terras de longe. Tokowisa tem suas pernas e quer chegar a uma das mil margens do rio faha. Também tem braços, e é na canoa que sobe os igarapés até chegar ao leito do grande rio. A mulher de Tokowisa tem sangramento e faltam luas para seu filho nascer. A mulher de Tokowisa, Yanici, já não carrega o cesto e não cuida da roça de mandioca e milho. Ela fica deitada na rede e Tokowisa sai para caçar. Mas o pensamento ati boti de Tokowisa fica com a mulher. O xamã soprou tabaco sobre o corpo da mulher e invocou os deuses. Pediu que lhe trouxesse a abatosi para poder curá-la. Tokowisa não vai partir com outros homens de sua aldeia porque seu espírito aboni o levará para uma terra de guerra. Ele e o xamã sabem do perigo.  Tokowisa deve seguir sem os homens de sua aldeia.

"É você mesmo?", perguntou o xamã. "Sim, sou eu mesmo", respondeu Tokowisa. O xamã queria saber se o espírito aboni de Tokowisa habitava seu corpo. "Vá para uma das mil margens do rio faha e colha as folhas verdes e os frutos da abatosi", ordenou o xamã. "Sim, eu vou", disse Tokowisa. "Pinte-se para a guerra", ordenou o xamã. "Sim, eu faço", respondeu Tokowisa. Então preparou sua canoa, amarrou os adereços em seu corpo, pegou as coisas de que precisava e saiu quando o sol bahi iluminou o céu neme.

Tokowisa prepara a canoa e espera o céu neme se iluminar. Deixa a filha mais velha, Neme, que já maneja o cesto e colhe a mandioca, para cuidar da mãe que não levanta da rede. Tokowisa sobe o igarapé remando suave pelas águas calmas. Vê peixes aba e pássaros bani. Olha para o céu neme e escuta tudo. Tokowisa tem que prestar atenção no coração ati boti da floresta porque nenhum sinal pode escapar ao seu espírito aboni. Para encontrar a abatosi, Tokowisa tem que escutar tudo, tem que olhar tudo, tem que conhecer o movimento do vento boni, tem que ouvir o caminho das águas e os cantos dos pássaros bani no céu neme. Ele sobe o rio faha e se prepara para os dias em que ficará longe da aldeia. Tokowisa precisa de força para encontrar a abatosi. Pinta-se e entoa cantos para que os deuses ouçam e lhe deem a força e a riqueza de que precisa.

Tokowisa carrega no coração ati boti a imagem de Yanici deitada na rede e com a face pálida. Ela tem uma matilha de cães yome ao seu redor e as crianças que choram querendo peixe aba e bolo de mandioca fowa kabe. Yanici foi surpreendida por um feitiço lançado por um xamã da aldeia que guerreia contra a aldeia de Tokowisa. O feitiço era para Tokowisa, mas foi Yanici que caiu de fraqueza, porque carrega o filho guerreiro. O xamã teme que o espírito aboni de Yanici seja raptado pelos inamati bote, que moram debaixo da terra. Os inamati bote foram invocados pelo xamã que lançou o feitiço por vingança às perdas que tiveram na última batalha. Por isso, Tokowisa tem que trazer a abatosi para que as intenções dos espíritos velhos sejam revertidas. Tokowisa vai só, para que a aldeia tabora não fique desprotegida.

Tokowisa é um guerreiro, mas agora corre perigo. Sua aldeia está em guerra contra a aldeia yawa de uma das mil margens do rio faha. Tokowisa não vai comer carne de caça enquanto não encontrar a abatosi. Tokowisa não quer desagradar a yama que lhe visitou em sonho para indicar o local onde estava a palmeira de abatosi. A yama apareceu com olhos de fogo e pelo muito branco. Tokowisa lembra muito bem da palmeira de abatosi na beira de um igarapé, tal qual lhe apareceu no sonho. A yama levou Tokowisa até a palmeira de abatosi. Tokowisa não pode comer animais. Vai comer asahi e outros frutos que encontrar para não desagradar a yama. Seu povo teme a yama. Tokowisa não teme a yama.

Tokowisa e sua canoa sobem o rio faha e seus braços fortes manejam o remo koyari, muito atento, escutando para saber para que lado deve seguir. O rio faha vai dizendo com o som das águas e vai abrindo caminho para a canoa que sobe, deixando para trás a aldeia tabora. Rio acima, nakani. Rio abaixo, bato. Tokowisa não está sozinho porque o espírito aboni das coisas e dos animais o acompanha. Tokowisa não tem medo da guerra, nem dos homens da guerra, nem dos brancos. Tokowisa sabe que seu povo tem morrido porque os homens brancos querem levar os corpos das árvores. Tokowisa não tem certeza de que os brancos são humanos jarawara. Os homens brancos não temem a maldição reservada aos que desrespeitam a terra wami. Os homens brancos acham que eles existem sozinhos e que as árvores e os animais são desprezíveis. Os homens brancos matam velhos, matam mulheres, matam homens, matam crianças, tudo para levar o corpo das árvores. "Para que eles querem uma árvore sem seu aboni?" pergunta Tokowisa para si mesmo. "Se retirar a árvore da terra wami seu aboni vai para o céu neme". "De que adianta ter uma árvore sem seu aboni?", Tokowisa se pergunta quando para e descansa da viagem.

Tokowisa para e a noite yama soki desce no céu neme. Faz uma fogueira pequena que ilumina aquele pedaço da floresta. Yanici está vagando no pensamento de Tokowisa. Cansado, Tokowisa deita no chão da selva, com o arco, a flecha e a zarabatana ao seu lado. Tokowisa espera um sonho que indique se está perto ou longe da palmeira de abatosi. Fecha os olhos e espera.

 

*

 

Os homens carregam o arco e a flecha. As mulheres carregam o cesto. Os homens caçam e guerreiam. As mulheres roçam e cuidam dos homens que guerreiam. As mulheres dançam. Os homens dançam. As mulheres cantam. Os homens cantam. Pintam seus corpos com as cores da terra wami. O arco e a flecha permitem aos homens capturar a caça e o peixe aba. O cesto é para que as mulheres carreguem os frutos de suas roças. Milho kimi, mandioca fowa bao, mandioca fowa basota, mandioca fowa nestona. Os homens cuidam de suas mulheres, porque as mulheres são a força para os homens; os homens são a força para as mulheres. Tokowisa quer salvar Yanici e volta para a canoa na beira do rio faha para continuar a subir em busca da abatosi.

Tokowisa começa a ver um clarão na floresta que indica que tem homens brancos retirando árvores sem seu espírito aboni. Lembra que muitas histórias tristes chegam à aldeia e os homens se preparam para a guerra. As mulheres estocam alimentos na terra. Plantam todas as variedades de mandioca fowa e as deixam guardadas debaixo da terra para, quando chegar a guerra, alimentar seu povo.  Os homens brancos têm madeira que cospe fogo e sangra os homens até a morte. Os homens da aldeia têm o arco e a flecha. Têm também a zarabatana que paralisa uma onça yome maior que um homem, com seu veneno. Os homens de sua aldeia guerreiam com os homens de outra aldeia. Tokowisa não teme nenhum deles. Tokowisa nasceu para ser guerreiro e participou de muitas batalhas. Sabe que nada pode passar na terra wami sem que seja vingado. Que tudo que fazemos aqui precisa ser vingado aqui mesmo.

Tokowisa é um homem que sobe o rio faha com sua canoa. Os guerreiros de seu povo não estão ao seu lado, mas Tokowisa tem o mundo: a terra wami, a água faha e o céu neme. Tokowisa pode falar com a pedra yati quando desce da canoa. Pode falar com o boto e ouvir sua resposta. Pode falar com os espíritos aboni do céu neme. Com o espírito aboni das árvores. Tokowisa carrega o mundo em seu coração ati boti. Yanici está em seu ati boti. Os seus filhos também.

Tokowisa ouve estrondos que parecem com o som da madeira que cospe fogo dos homens brancos. Estão matando o aboni das coisas, pensa. Tokowisa pode sentir clarões de luz vindo do interior da floresta. Tokowisa disse para o xamã que as árvores tremem de medo dos homens brancos que devoram a floresta. Tokowisa pode sentir o alvoroço na selva. Sabe que os espíritos aboni do céu neme serão implacáveis em sua vingança para com os homens brancos. 

Passaram-se muitos dias e Tokowisa chega ao lugar que a yama do sonho lhe indicou. O sol bahi está no alto do céu. Sua luz desce entre as nuvens iluminando a solitária palmeira de abatosi na beira do igarapé. Tokowisa toca a palmeira de abatosi e pede licença ao seu aboni para subir em seu corpo. Sobe a palmeira de abatosi, retira as folhas mais verdes e os frutos mais maduros. Tokowisa respira, respira, respira. Bebe a água faha e desce com sua canoa para continuar sua viagem.

Chove muito, depois que Tokowisa continua a sua viagem. Ele resolve parar para que a chuva faha não encha sua canoa. Tokowisa, cansado, adormece. Não sonha, embora quisesse sonhar para ter notícias de Yanici. Os yawa veem uma canoa na margem do rio faha, debaixo de uma árvore, quando a chuva cessa. Os yawa reconhecem que ali dorme um inimigo yawa. Gritam e carregam Tokowisa para a aldeia yawa em uma das mil margens do rio faha que ele não conhece.

 

*

 

Tokowisa está preso na aldeia de uma das mil margens do rio faha. Os homens que guerreiam com sua aldeia tabora agora são donos do seu corpo. Tokowisa não teme os inimigos e sabe que deve morrer como um guerreiro. Não pode desapontar os homens de sua aldeia tabora com uma fuga da aldeia yawa. Como se os homens da aldeia tabora, sua aldeia natal, não fossem guerreiros para vingá-lo. Tokowisa não pode desapontá-los. Sabe que não é maior que todos os homens juntos. Tokowisa acredita que os guerreiros da aldeia tabora irão salvá-lo. Tokowisa sabe que agora será transformado em um inimigo yawa. Perderá seus adereços, seu arco, sua flecha, sua zarabatana. Perderá as cores da sua terra wami. Ganhará as cores da terra wami dos yawa. Ganhará adereços dos yawa. Mas o espírito aboni de Tokowisa nunca será um yawa.

Os yawa vão transformar Tokowisa em um deles. Depois os yawa irão comer seu corpo. Tokowisa partirá para o céu neme. Vai habitar o céu neme e encontrar todos que já partiram. As árvores mortas pelos brancos e os animais que comeu. Tokowisa viverá em guerra no céu neme, porque a guerra fez o homem da floresta. Tokowisa tem que levar as folhas verdes e os frutos da abatosi para resgatar o espírito aboni de Yanici e salvar seu filho.

Passaram-se muitos dias, Tokowisa precisa encontrar uma forma de levar o que o xamã lhe pediu para reverter o feitiço. Tokowisa não pode desapontar os guerreiros de sua aldeia tabora. Os guerreiros esperam que Tokowisa dê-lhes a honra de resgatá-lo, e se não for possível, a honra de vingar a sua morte, mas não esperam que ele escape como um bato mawa.

Tokowisa precisa levar a abatosi para salvar Yanici. Os yawa pegaram a abatosi. Pegaram também o arco, a flecha, a zarabatana e a canoa. Tokowisa não tinha pés e mãos amarrados, mas era guardado pelos guerreiros yawa. Tokowisa sente tristeza porque quer salvar Yanici.

À noite, Tokowisa sonha com Yanici: está deitada na rede e tem os olhos fechados. Yanici tem suor no corpo e dá a luz a um caititu kobaya. Yanici fica feliz com seu caititu-filho. Mas de seu corpo desce um rio de sangue ama. Tokowisa desperta com o pio do araçari-de-bico-branco howaraka. O araçari howaraka está muito perto e é noite yama soki. Os yawa dormem. Tokowisa some. O araçari howaraka que viu na vida não é branco, mas o araçari howaraka que pousa e olha para Tokowisa é branco e tem os olhos vermelhos como a yama. Tokowisa aparece com o arco, a flecha, a zarabatana, as folhas verdes e os frutos da abatosi. Tokowisa leva tudo para a sua canoa, repousada em uma das mil margens do rio faha, e o araçari howaraka branco e de olhos vermelhos o observa. Tokowisa o chama e levanta o braço. O araçari howaraka pousa em seu braço. Os yawa dormem como que enfeitiçados pelo yama que é o araçari howaraka. Tokowisa coloca tudo na canoa e sente vontade de partir. Tokowisa leva o araçari howaraka para a canoa, ele voa e pousa só. Tokowisa sente o cheiro da yama que é o araçari howaraka. Empurra a canoa para que ela possa descer o rio faha e dorme.

 

*

 

A canoa chega até o igarapé nas margens onde fica a casa yobe de Tokowisa e Yanici. A filha de Tokowisa, Neme, desce até a margem porque reconhece a canoa do pai. Neme grita por pai abi e os homens e as mulheres da aldeia tabora descem ao seu encontro. Os homens recolhem o arco, a flecha e a zarabatana da canoa para que Neme não precise tocar e trazer má sorte para seu pai abi. Os homens recolhem as folhas e os frutos da palmeira abatosi. Neme pede que levem tudo até o xamã, para que ele possa curar sua mãe. Neme não conta para Yanici que Tokowisa não veio na canoa.

O xamã macera as folhas e queima parte delas até que se transformem em cinzas. O xamã cobre o rosto de Yanici de cinzas e a faz beber parte das folhas misturadas ao sumo dos frutos. Fala então palavras sagradas, invoca os deuses do céu neme, invoca o espírito aboni de Tokowisa. O xamã tem seus olhos voltados para o sagrado e sente que Tokowisa vive, que o seu espírito aboni não está no céu neme. Os homens da aldeia tabora se dividem: uns vestem-se para a guerra e sobem o rio faha. Rio acima, nakani. Rio abaixo, bato. Outros continuam na aldeia tabora para defender as mulheres, as crianças e os velhos.

Passam-se duas noites, dois dias, e Yanici se liberta dos inamati bote e recupera sua força. Desce à beira do igarapé, porque a hora do filho nascer se aproxima. Yanici contempla a canoa parada na beira da água faha. Canta porque sente saudade de Tokowisa. Canta também porque o filho de Tokowisa irá nascer. Se Tokowisa regressar, encontrará seu filho bebendo leite do seio de Yanici.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É doutor em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) com pesquisa sobre a formação de comunidades tradicionais quilombolas no interior do Nordeste Brasileiro. É também autor dos contos reunidos no volume Dias (Caramurê, 2012), vencedor do XI Prêmio Arte e Cultura (Literatura – 2012) e do livro A oração do carrasco (Mondrongo, 2017), obra selecionada pelo edital setorial de literatura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Dois de seus contos foram traduzidos para o francês e publicados nas revistas L'Ampoule e À L'Index Espace d'Ecrits nº 33.