©laura makabresku
 
 
 
 
 
 
 

GALOCHAS

 

 

não se importava

com o vestido engomado

foi bordado em França?

não queria

o branco não queria

o laço

iria com galochas

pronta para as tempestades

andaria na incerteza do lodo

ainda que o vestido se desmanchasse

ainda que as tias gritassem seu nome

seguraria meninos e velocípedes

seus laços como garras

enraizada por galochas lilases

e pela aposta feita

sim! também podia

sim! era a teimosia

que a vestia

 

 

 

 

 

 

§

 

 

quando eu disse não

depois quase disse sim

repetindo o som do vento

na aridez dos alvéolos

 

quando eu disse não

invadiu minhas cavidades

acordou as fibras

com ferro quente

 

quando eu disse não

repeti o dia inteiro

para dar à palavra

seu tamanho justo

 

 

 

 

 

 

darjeeling first flush

 

 

dois cubos de açúcar

e o amargo da sua saliva

depois que disse

 

punhos lambendo o chapisco dos muros

até engolir a palavra

que ficou nos dedos

 

 

 

 

 

 

NÓS

 

 

depois de sua gargalhada

interrompida pela curva

encaixotei nosso tempo

 

escondi o solo do oboé

caminhei com sua risada

em meus ombros

até fazer do espanto

um emaranhado de nós

 

 

 

 

 

 

ESTALO

 

 

antes do caminho de velas acesas

e de seus cabelos desdobrados

antes de me erguer em cordas para tocar

os dedos da origem

antes da chuva que raleou as feridas depois do fim

alguém não desarmou a bomba

quando começamos a sorrir e meus cabelos eram os seus

quando comemorávamos o novo mundo

com bandeirolas na praça e crianças sem porões

 

te busquei na base da ponte

seus olhos contavam nossa história

e o detonador entre os dentes

 

 

 

 

 

 

MATA-BURRO

 

 

ela mastigou todas as sementes

arranhou o couro dos cabelos

o suor entre as pernas

o chapisco das costas

 

recusou a divisão dos dias

caixa de força, fuga do raio

afundou o dedo

no buraco entre as vigas

 

não desconfiou de porteiras abertas

o castigo desta liberdade é a espera

e a lembrança entre os ossos

 

 

 

 

 

 

FICÇÃO

 

 

no tempo passado

o pão do domingo era o trigo

ou o corpo

e São Bartolomeu se refugiou

com o terror na sua noite

 

naquele tempo quase inventado

a dúvida se esgueirava nas bainhas

embutidas na pele

 

no tempo masculino

cada animal da casa cumpria seu papel

atento ao punhal desembainhada

 

 

 

 

 

CÓPIA

 

 

ela e seu colar de libélulas

pairando sobre réplicas de bustos antigos

ele contando de glórias inventadas

 

ela, a tarde, os brincos e o batom vermelho

ele, o espanto de se sentir

cópia fiel de si mesmo

em um canto da casa

só habitado pelos gatos

 

 

[Poemas do livro Roca. Cas'a edições, 2019]

 

 

dezembro, 2019

 

 

Inês Campos nasceu em Belo Horizonte, onde vive. É poeta e advogada. Autora de Geografia Particular (Cas'a edições, 2017) e Roca (Cas'a edições, 2019). Tem poemas publicados em revistas e coletâneas nacionais e alguns foram traduzidos para o catalão.

 

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