©kanghee kim
 
 
 
 
 
 
 
 

LUPICÍNIO

 

 

Quem vê a coca-cola que ele bebe

não sabe a dor que carrega o chumbo de seu coração

 

O embriaga o sol da noite humana

ele é o mar que se levanta num lamento urbano

 

— como uma estrela explodindo por dentro

uma criança solta na tempestade

 

Vaga flor da selva no centro nervoso da manhã

Toda estrutura desmorona diante de seu sopro

 

Pelos seus farrapos de carnaval

o ouro inoxidável dos que vivem sem amor

 

 

 

 

 

 

 

ALI

 

 

Mesmo que o amor dure só um dia,

a cidade respira pelos poros dos novos amantes

 

Ali, amar é estranhar o mundo, ali,

onde os homens & os territórios são uma coisa só

 

Ali, os poemas ocultam os teoremas

Ali, o amor não tem só 4 letras

 

Ali, há desordem nas margens,

crise nos verbos, entropia nos nomes

 

Ali, toda resposta oculta outra pergunta

Ali, cada cadafalso é um altar

 

(como um coração enraizado à corrente elétrica do corpo

— mesmo que o amor dure só um dia)

 

Ali, atrás de cada imagem pulsa uma imagem maior

ali, o grito mais cala & a profundidade mais oculta

 

Ali, toda cicatriz é incurável,

ali, o meio-dia é a noite mais secreta,

ali, o homem velho é a criança

& a criança um homem velho

 

Ali, os lugares uns nos outros,

os objetos rodeados pelo sangue dos nomes,

os nomes em rotação,

ali

 

 

 

 

 

 

DO CORPO

 

 

Nos extremos alumiados do corpo

as palavras sobrevivem

às suas verdades finais

 

Diamantífero em radiação

o corpo desafia a pura oralidade do instante

sua matéria se alimenta do tempo 

 

Corpos renovados por uma máxima linguagem

revolvidos de seus precipícios

consubstanciados por fervor & ofício

 

Pelo idioma profano da beleza

corpos se reconhecem em inebriada intuição

(nascidos da cegueira

acumulados em turva combustão)

 

Pelas múltiplas cicatrizes do hábito

somente em linguagem renovada

dois corpos se abrasam num só clarão

 

Mestres na arte da urgência

amantes precários reinventam:

do corpo, a própria gramática

do chão, o fluído extremo dos dias

 

Corpos zelam por seus erotismos

corpos separados por espaços erradios

flores que se colhem sozinhas

corpos curvados em escombros de cidades

 

De carne a carne

são os prédios que sustentam o céu

são os corpos que movem as estrelas

 

O corpo: pátria de sangue

terra que brota para fora da lama

mar subvertido noutro mar

 

 

 

 

 

 

A MULHER MAIS TRISTE DO MUNDO

 

 

Na calçada dos ouvidos tudo se arquiteta

como se fosse pedra a areia

— avenidas atraem umas a outras & colapsam

 

Planetas seguem a desabar uns sobre os outros

diariamente

como quem ainda espera por algum astro desastrado ou

como quem confia em algum florescimento forçado

 

Os colírios cegam nessa colagem de sol desabado

— a avenida, bem se sabe, é de um chumbo improvável

 

Mas na febre da festa ela nem ouve a carne das palavras;

se penteia com dinamite; escapa por uma fresta

 

Do caos à catarse, a íris da tarde se transforma em veneno

— na selva de pavimentos de mais um desastre sem astro

 

(Os doutores certamente entrariam com respostas aqui

— Perguntariam por quantos ossos calcificados em cada prédio construído,

perguntariam pela calçada fria das musas por onde os prédios se equilibram

& pelos nomes dos rubros asfaltos presentes em cada salto —

 

À noite, as estrelas caem sobre os carros,

sóis desabam como um grande bumerangue de vazio

 

As plumas estão grávidas dela

— por isso tantas galáxias, por isso tantas galáxias

 

O eclipse não cura

a mulher mais triste do mundo

 

 

 

 

 

 

COPACABANA

 

 

Copacabana te engana

tão longe do Nirvana

inflamada num tormento

cigana & profana

 

Sereia desgovernada

armadilha inflamada

musa vendada, desnorteada

cidade nua, inviolável?

 

Ampliada num mar sedento

desalinhada num mar de bruma

Copacabana & seus murmúrios

de um futuro num mapa escuro

 

Tuas sombras se derramam

numa tarde mistificada

Copacabana desabrigada

deusa crua inevitável?

 

Brutalista & fatal

difusa & letal

Copacabana se eterniza

nas ruínas de um temporal

 

 

 

 

 

 

O DANÚBIO NÃO É AZUL

 

 

Enquanto a noite fabrica seus novos escombros,

gestos incompletos de países anônimos

reluzem pelo lado escuro dos mapas

 

Pelo outro lado das bússolas, as plantas frutificam

mais súbitas do que o normal —

certas flores nascem por ruídos de outras estações

 

Violinos & gestos de chuva ecoam para além

das iluminações de nomes magnéticos reverberados

por máquinas de emaranhar paisagens & civilizações

 

Por de trás das palavras, pedras & sóis,

tensas aprendizagens de galáxias,

luzes primitivas cujas belezas custam a estancar

— verdades selvagens com olhos de evidência

 

Com o mesmo sangue estrangeiro das primeiras palavras,

o dia & a noite tensamente reconciliados

Feras selvagens & suas fábricas de brilho,

o ritmo desencadeado em substância

 

O dia perseguido pela noite,

a noite ao dia remendada,

estranhezas em tempos estranhos;

Vênus urinando sobre o caos

 

 

 

 

 

A ESTRADA

 

 

Antes do antes, a estrada

mais do que real, a estranheza

falsamente familiar

 

Entre os objetos & seus

estranhamentos, para além

das veias de posteridades próprias,

 

nenhuma maquinaria de mediação;

o brilho indizível de um clarão

 

— Perder a vista para encontrar a visão

 

 

março, 2019

 

 

Augusto Guimaraens Cavalcanti é poeta, ensaísta, romancista e pós-doutorando do PACC-Letras-UFRJ, tendo publicado: Poemas para se ler ao meio-dia (2006), Os tigres cravaram as garras no horizonte (2010), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012) e Máquina de fazer mar (2016). Atualmente prepara seu quarto livro de poemas, a se chamar O Danúbio não é azul.

 

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