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[Uma viagem mental em torno de O poema contínuo, de Herberto Helder]

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1.

 

 

Os jardins tremem quanto maior é a gravidade

dos pensamentos em gravidade,

doces horas em que os desvios se apoderam dos mapas;

geografias em pólvora da rua alagada do mundo

 

Os dias somem pelas cartografias do corpo,

sóis são coagulados de dentro das noites indomáveis,

no veneno disfarçado de uma manhã primeva;

cada sombra carrega sua treva particular

 

Despenca a noite vertical em seu tecido relampejante,

vírgulas ferozes se apoderam da pólvora dos idiomas,

auroras faíscam uma beleza de raro trovão,

na selva idiomática da memória em suspensão

 

As fronteiras respiram pela luz que fura o véu

do espaço, o tempo escoa pelo caminho,

o vento varre a tarde, o amor escorre

pelas fronteiras do desassombro;

o tempo nos rouba os anos e nos devolve o éter,

o éter da última ciência da noite

É áspero o mel dos corações anarquistas,

seus impulsos inventam um novo tipo de rigor,

o clarão compacto de sua lucidez reinventa a vida;

auréolas selvagens cobrem as formas do mundo,

olhos poliédricos recolhem o pólen da manhã

 

Há ciência por de trás de cada olhar

 — a única ciência exata —,

a vertiginosa racionalidade de um pensamento selvagem;

a bruta ciência por de trás do olhar da fera

 

Os silêncios carregam suas plumas ocasionais,

ali onde cada nome traz a medida de sua própria solidão,

ali onde nenhum cientista consegue medir

o peso próprio de cada palavra:

quando os cartógrafos imaginam o impossível,

quando os mapas sonham

 

 

 

 

 

 

2.

 

 

Se o silêncio for mesmo a destinação de toda linguagem,

ainda assim, haverá o sorriso por de trás do escárnio,

a rude aspereza de relâmpagos mentais e as indelicadas composições

de imagem táctil

 

A elegância passiva dos escombros,

o mar absoluto,

armadilhas incendiadas pela própria exaustão

 

Casais caminham contra os relógios,

a inocência procura matar o óbvio;

perpétuos estrangeiros invadem mais uma vez a rua da aridez

 

Aves e naves pousam na avenida do escombro,

uma dança é desatada pelo ritmo de sua tensão

— no azul concentrado de veludo,

no temporal da véspera,

na esfera atonal de um pensamento importátil

— por onde germinam as primaveras aflitas,

nos mapas amarrotados pelas noites de tantas noites

 

 

 

 

 

3.

 

 

Planetas gravitavam na esfera de seus dedos,

na retina ambígua de portos inseguros,

nas irradiações descontínuas de frágeis eternidades

Seus óculos luziam madrepérolas ao dia,

dias de garras magnificadas pelas artérias da noite

 

Nem o máximo fervor conseguiria conter

o ruído agudo de seu motor

Trazia o peito de pedra, mas

seu coração era de mar

 

 

 

 

 

 

4.

 

 

Sóis duplos inauguram a carne profunda de uma ilha

Nomes esculpidos na matéria do silêncio,

nomes tragados pelo vento,

simetrias fabricadas na metafísica da carne

 

A noite se entreabre em seu cego pavio,

corvos do transvio anunciam a tenebrosa

Edifícios retorcidos por uma primavera incondicional,

— primavera mais do que ótica

 

Um objeto púrpura surge entre degraus de átomos

e átimos de mínimas lâminas,

incandescências de radioativas primaveras,

abismos que ligam a noite ao dia

 

A dança dos vivos desassombra os mortos,

os inocentes tentam capturar o óbvio:

são os corpos que movem as estrelas,

a gravidade sustenta os prédios e os anjos noturnos

 

 

 

 

 

 

5.

 

 

O céu não cai por de trás dos espelhos,

o sol não dorme,

o mar não pede para ser multiplicado,

dançando os vivos desassossegam os mortos

 

A carne solar dos novos amantes brilha

por entre as fendas lunares de uma suave germinação de ossos,

brilhos que não se deixam armazenar,

nomes alusivamente físicos,

formas repletas de furor,

paisagens reinventadas por relâmpagos concentrados

em murmúrios de longas estrelas e clareiras móveis

 

Um corpo a brilhar por dentro

no lado mais sombrio da calçada,

pelas margens prolongadas de paisagens alagadas

e refratadas por espelhos translúcidos,

na primavera recôndita de um sol oculto com potência de planeta

 

Pássaros envenenam a antemanhã

de paisagens vazadas em mapas estanques,

retratos revelados no magma da carne,

um cometa refratado pela câmera do olho,

um meteoro a ferver céu adentro,

visões brotadas junto ao sol

com a seiva de objetos recém nomeados

 

Espelhos indômitos,

a pluma que corta,

o diamante mais violento

 

É preciso nadar, nadar e nadar...

até as lâminas dos oceanos mais diáfanos,

até as reticências dos sentidos...

É preciso acender todas as luzes da casa,

testar as delicadas pulsões do equilíbrio,

fundar novos continentes precários

com os restos das estrelas recolhidas pelo chão

 

Estrelas transportadas no bolso da camisa e

a escrita interminável do tempo a escorrer

pelos seus ponteiros quebrados

 

 

 

 

 

 

6.

 

 

Corpos se ultrapassam pelo poema de águas viventes,

pelos movimentos secretos de ásperos espelhos,

pelas estrelas de chumbo do acaso,

pelas luas dormentes da ciência e pelos laboratórios inesgotáveis do mundo;

pela última sabedoria da carne

 

Os dedos desenham no ar a próxima atmosfera inaugural,

o acaso transformado em matéria radial de escrita

Nomes iminentes do desejo exorbitam os prazos

e os limites extremos de empíricas lâminas

Órbitas solares alumiam a noite,

brilhando de antemão,

com suas poeiras de galáxias desastradas:

um cometa desentranhado de um sombrio girassol,

pelo móbile perpétuo das tempestades que roubam o mel dos deuses

Quando um deus morre, a humanidade cambaleia

 

 

 

 

 

 

7.

 

 

Que a escuridão anterior servirá de munição para a próxima primavera

Claridades escrevem suas galáxias de imagens no cinema das pálpebras,

anjos em brasa tocam suas harpas,

um cometa fundo atravessa seus corpos de naufrágios,

com um abismo entranhado na carne mais profunda de uma ilha,

onde cada nome pronunciado representa uma ferida nova

 

A memória se desalinha nas conchas dos ouvidos,

no cinema cortante dos olhos e em suas navalhas de sol

O coração plantado de maio a maio pela vida secreta dos escombros

E a insônia a escorrer por quartos alugados e paisagens vazadas entre

cortinas de alta voltagem de cidades incalculáveis

 

Arquipélagos tristes alumiam as membranas do silêncio

até o escurecimento de uma flor amarga,

até a agudeza de um espanto reflorido,

de náufrago em náufrago as sombras se desguarnecem

 

 

 

 

 

 

8.

 

 

Súbitos violinos ressoam por sobre os espaços arruinados,

poetas abstratos ditam o ritmo da noite tardia

Linhas se cruzam na matéria nascente de uma substância indomável

Uma coroa de relâmpagos cobre a atmosfera do dia,

cada sombra traz seu abismo encerrado,

cada corpo guarda sua queda,

cada ferida traz um tecido púrpura que só os corpos mais atentos poderiam entrever

As paredes respiram ao fundo,

onde todos os objetos se iluminam em seu interior

 

Casas profundas escapam aos arquitetos,

por sobre ofícios de pálpebras e oficinas de visões

A dança dos vivos perturba os mortos,

enquanto o amor labora suas mais descontínuas aparições

 

 

 

 

 

 

9.

 

 

A última pá de cal do dia,

brilhos esgotados e suas centelhas de escuro

À beira de um desastre flutuam instantes de pólen,

o véu diáfano de uma manhã amplificada,

cascas profundas estancadas no ar, estrelas convergentes,

o aluvião primordial,

o passado, pássaro emplumado, atravessado de formas,

brusca primavera onde o silêncio se faz música

E a sua luz violenta a confundir os passantes...

 

No fundo de cada palavra arde a amarga plumagem do tempo,

diamante infuso e multiplicado pelas estradas mais amargas de um peito mineral,

bárbaro diamante erguido por meio de margens maciças e bordas selvagens,

pelas mútuas translações de peles e pelos,

pelo precipício de espelhos primitivos e seus incêndios de imagens

E o céu segue sem cair

E o futuro sempre um alvo movente

E o mundo sempre em obras

 

O poema escreve o poeta pela gramática irrevogável do mundo

As flores não esperam pelos nomes

As estrelas não pedem para brilhar

 

 

 

 

 

 

10.

 

 

A última ciência da noite desnuda sua música

transfigurada de abismos; música repercutida

por todos os desertos do mundo

 

O poeta é um lugar que transborda

— do núcleo da noite, das sementes do centro,

pelas núpcias de pétalas e pálpebras,

pela carne exaltada do território mais central

 

Também os objetos pensam com suas matérias oblíquas;

objetos feridos por escombros de futuro

O coração exterior da beleza eletriza o ar com uma crueza selvagem,

pelo máximo verão de palavras que respiram por absurdas fábulas

 

O álcool da linguagem produz sua turva alquimia

na áspera vertigem de uma usina ferina,

na árdua elegância de um dançarino equilibrista da queda,

no meridiano de um oceano jamais pacífico

 

E no mar turvo de nomes mais do que sonoros

tremulará a última ciência da noite

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Augusto Guimaraens Cavalcanti (AGC) é poeta, ensaísta e romancista. Publicou Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), AmorAmerica [escrito à sete mãos com os sete novos] (2008, 7Letras), Os tigres cravaram as garras no horizonte (2010, Circuito) e Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras). Atualmente, está em via de publicar seu próximo livro de poemas, Máquina de fazer mar. Já teve poemas publicados em antologias no Brasil, Argentina, México e Estados Unidos. É doutor na Puc-Rio em Antropologia da Literatura. Mais informações: www.augustoazul.blogspot.com.br.