Em 1978, num prefácio ao livro de José Chasin, O integralismo de Plínio Salgado, Antonio Candido, um mestre, se pergunta desde o título se integralismo é igual a fascismo. E a partir do cenário imprevisto da década de 1930, no Brasil, Estado Novo e o avanço das forças integralistas, chama atenção para o fato de que há "uma generalização deformante" que se implica em estruturas totalitárias de frases feitas como "quem não é comunista é fascista" ou "quem não é fascista é comunista" e, ainda, "comunismo e fascismo são a mesma coisa, porque são totalitarismos". Toda generalização, quase naturalmente, arrisca-se a ser um falseamento do real. E é essa impressão generalista que, grosso modo, segundo Candido, Chasin busca corrigir em torno dessa questão com estudo, e não apenas com uma avaliação conjuntural daquele período da história brasileira. A conclusão, diz Candido, é que o integralismo seria uma espécie de semifascismo, tanto pelas incorporações reacionárias conciliatórias que advêm da pequena-burguesia parasitária do capitalismo, quanto do máximo de tradição ruralista e patriótica.

Penso nessa circunstância de leitura que Candido fez de Chasin diante deste pequeno livro de força de Francisco dos Santos, Charges Escritas. Primeiro, porque é um livro que tende a um estudo num esforço lógico e político para a distinção. Diz o velho professor que "Distingo, logo penso — poderia ser o lema para as discussões sobre a atividade da inteligência." Depois, porque — como é sempre o jogo dos livros e trabalhos de Francisco — estamos mais uma vez lançados, como leitores, à inteligência e ao humor rápido e refinado de um artista que se debruça entre a atividade de fazer e editar livros, do desenho e da gravura e, em vezes muito mais livres, a escrever simultaneamente todos os lados de uma mesma coisa, ou seja, anota a frase ou o poema numa abertura praticamente tridimensional e elíptica.

Estas charges, se partimos do princípio e do precipício da caricatura, com toda a sua imediata suspeição, a do exagero, já nos levariam a perceber, em cada uma delas, a cada página, a pertinência do que dizem de nossa atual, e também imediata, realidade. Esta fisionomia da argumentação em torno de uma crise instituída, e institucional, se alarga para além de um mero esquematismo mimético, que seria o de acolher as frases feitas e devolvê-las também como meras frases feitas. Francisco, ao contrário, repisa vagarosamente, com graça e atenção descabidas, uma confrontação à ideia tecnocrática [a de uma democracia para a eficácia] dos efeitos que a frase feita tem e produz num mundo raso e revirado em que, numa aparência-aparente, o maior desejo das minorias majoritárias é tornar-se tal e qual as maiorias minoritárias que as oprimem. A simples charge, se elaborada apenas em seu mínimo exagero, assim como a frase feita, torna qualquer pensamento intransitável, porque o impede ou, mais radicalmente, o evita e o repele.

A questão, neste livro forte de Francisco dos Santos, se vincula a um trabalho de ampliação da charge e do desmantelo da frase feita para que uma possível libertação da língua nunca se torne idêntica àquilo que enfrenta. Karl Kraus já denunciava esses usos unilaterais da frase feita quando apontava para a manutenção dos imaginários simbólicos, sempre bélicos, que constantemente produziam uma imutabilidade e uma pobreza de imaginação. Ele afirma: "aquilo que não é pensado tem de ser feito, mas o que não é senão pensado não pode ser dito". E prossegue: "os que, agora, não têm nada para dizer, porque é a ação que tem a palavra, continuam a falar. Quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique calado".

Imagino que este livro de Francisco dos Santos é um avanço daquele que se lança ao mundo sempre em silêncio porque tem muito a dizer. E quando estes silêncios se fazem ouvir ou se imprimem a serem lidos, o que é o caso agora, vêm como "cuspidas" ou "esculachos" e sem nenhum disfarce para desmascarar o peso morto de nosso presente: "Como num prato, como no tampo da mesa, como no capô / do carro, dois rastros brancos no azul do céu... snnnsshhh".

 

 

dezembro, 2019

 

 

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O livro: Francisco dos Santos. Charges escritas.

São Paulo: Lumme Editor, 2019, 204 págs.

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Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e no PPGMS [UNIRIO]. Publicou avião de alumínio (Quelônio, com Júlia Studart), Pasolini: retratações (7Letras, com Davi Pessoa) A forma-formante — ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC), As mãos (7Letras), Jogo de Varetas (7Letras), Falas Inacabadas (Tomo, com Elida Tessler) e Maria quer o mundo (edições SM) entre outros. Coordena a coleção "Móbile" de miniensaios para a Lumme Editor e escreve a coluna "Trabalhos no Subsolo" na revista Revestrés.

 

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