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[Manoel Ricardo de Lima acaba de lançar o livro Geografia aérea (7Letras), que reúne textos de seus livros anteriores (desde Embrulho e Falas inacabadas, ambos de 2000, até Quando todos os acidentes acontecem, de 2009) — reescritos, revistos, rearranjados, abertos a novas leituras — com uma seção inédita, "Lâminas". Alguns dos seus amigos juntaram-se para conversar com ele: Annita Costa Malufe, Carlos Augusto Lima, Edson Souza, Eduardo Sterzi, Marcéli Torquato, Raúl Antelo & Silvana Guimarães. O resultado está aí: uma pequena coletiva, em que o poeta confessa quase tudo.] 

 

 

 

 

 

 

 

Annita Costa Malufe – Já faz muito tempo que você tem um flerte grande com a filosofia, o que sentimos em tudo o que você escreve, teoria ou literatura. Na verdade, não sei bem como separar essas coisas na tua obra, pois é muito uma literatura-pensamento. Em todo caso, sinto que sua poesia-prosa ou prosa-poesia é mais e mais atravessada disso, desse diálogo com conceitos e modos de tentar pensar a experiência, a vida, a arte, modos que dialogam com certos pensamentos filosóficos. Queria que você dissesse quando e como entrou a filosofia na tua vida, ou ainda, por onde você entrou nela, de que modos, com que questões e vontades...

 

Manoel Ricardo de Lima – Tinha um lance com uma turma da escola em Fortaleza, onde eu vivia, que fazia parte do grêmio estudantil e alguns outros amigos ao redor, que não eram da escola, que liam e estudavam muito filosofia. Eu lia um bocado, mas gostava mais de poesia, quadrinhos e muito futebol. E jogava mesmo bem. Mas acho que, diretamente, tem a ver com uma convivência intensa com esse universo dos amigos. O que de todo modo intensificou minha composição de biblioteca, minha curiosidade, meus afetos. E aí, fiz uma graduação em Filosofia. Todo o resto de minha formação, até hoje, é uma abertura cada vez maior desses processos. Meus interesses se alargam cada vez mais. E acho que meu trabalho tem a ver com isso, com essa aventura de tentar conhecer tudo o que eu puder, sem medida de esforço e numa contaminação expandida. Acho uma tristeza e um desagravo com a vida esse emperro para uma especialização do conhecimento. Para mim isso é uma comiseração com nosso corpo e um empobrecimento de nosso delírio mais severo: o pensamento.

 

 

ACM – O que teria sido um grande "acidente" na tua vida? Tenho tentado rodear esse teu conceito do acidente, que para mim está mais e mais presente como um procedimento teu de escrita.

 

MRL – Que pergunta bonita, Annita. Acho que você lê muito bem o conceito, porque o expande para fora, lança-o diretamente numa vivência radical e tenta pervertê-lo com uma série de coisas que estão também ao seu redor. Não saberia te dizer o que teria sido isso, se houve, se não ou quando. Acho que a vida, grosso modo e numa generalização, logo, diante do perigo, acontece como um acidente. E isso me interessa. Há nele um empenho que se arma como contingência, parece que é por onde se perde o controle. Há aí uma disposição para o acaso por meio de uma atemporalidade, uma espécie de fora da história. Ao mesmo tempo é pelo acidente que se pode armar uma saída para outra compreensão da história e, principalmente, daquilo que sobra como contraponto à memória fixa e ao monopólio da memória fixa. O acidente, tenho impressão, desmonta isso. É o que se coloca numa linha de frente, é esse enfrentamento que provoca uma aderência ao corpo, para o corpo, atravessa e rasga um corpo possível e se move. Não é previsível nem planejado, é todo movediço, circular e tocado por um rodopio incessante que é elíptico, mas também contínuo. Tento incorporar esse jogo com o acidente, como procedimento, no que escrevo.

 

 

Carlos Augusto Lima – Você nasceu no Piauí, viveu mais de 20 anos no Ceará, depois quase uma década em Florianópolis, agora vive no Rio de Janeiro. Como é que essa cartografia do vivido atravessa seu trabalho (se atravessa), e é possível dizer que ele mesmo, o trabalho, produz uma suspensão de país, lugar, um outro território?

 

MRL – Carlos, meu trabalho só é possível porque desloquei o meu corpo. Tenho a impressão, muitas vezes, de que se tivesse ficado no mesmo lugar, teria desaparecido com ele. Tanto que gosto de pensar que vivo no Rio muito por enquanto, de passagem. Nem sei, muitas vezes, se gosto de viver aqui. Por outro lado, por exemplo, nenhum outro espaço urbano desse Brasil dilatado, me parece, figura tão bem os encantos entre artifício e natureza e, ao mesmo tempo, os desmandos de inoperância de políticas públicas praticamente inexistentes e todos os impasses de uma arrogância social e díspar. É possível, por exemplo, reparar com muita clareza no desleixo que impera [e o verbo é esse mesmo, há no Rio algo de imperial que é quase um deboche] em várias instituições públicas. Isso vem com força, por exemplo, para o meu trabalho que é, de algumas maneiras, tocado por uma linha que, me parece, pode ser um desenho do país: a da distância. E quando penso que a literatura não tem importância alguma para nada, que em nenhum momento ela consegue tocar essa distância que é cotidianamente ampliada pela falcatrua que gira em torno do dinheiro, imagino sempre que nossa tarefa política é o tempo inteiro inventar alguns mundos possíveis e suspensos.

 

 

CAL – Seu Geografia aérea é uma antologia que subverte a noção imediata de antologia e está mais para uma operação de montagem, jogo, truque. Ela provoca a ideia monumental da antologia, retira o monumento de lugar, enfeita e coloca vestimentas diversas no poema, retira dele a ideia de acabado, imóvel. Você não acha que falta na poesia brasileira essa dimensão do truque, da graça, do jogo, que ainda acreditamos demais na sacralidade do poema, da obra, dela como instituição que, na verdade, é uma crença nas várias ideias de instituição?

 

MRL – Pois é. Acho que você tem razão nas duas coisas que diz. A primeira, sobre meu trabalho [gosto muito dessa sua leitura], porque vem em direção a algo que sempre imagino: literatura é destituição, é queda, logo é jogo, é truque, é montagem, é a composição de um cinema em ruínas [uma imagem que usei pra falar do trabalho do Aníbal Cristobo e poderia usar pra falar do seu, por exemplo, mas penso mesmo nessa imagem é a partir do que tento fazer]. Isso que tem muito mais a ver com um "scherzo". Depois, o que acho mais estranho é quando vejo uma meninada que começa a escrever ou a fazer filmes ou a experimentar em artes visuais, etc. com todos os sintomas mais beligerantes da conserva, da mesmice, da institucionalização. E aí, Carlos, numa contramão a isso, a gente vai envelhecendo e tem que tomar muito cuidado pra não ficar assim, blasé. Ou absolutamente ranzinzas, conservadores, moralistas e muito sérios. Para mim, a vida é sempre menos, é quase nada, é um sopro às avessas, logo entendo muito mal os porquês de se tentar atribuir a toda invenção com a arte um selo de qualidade patrimonial traçado como herança e quase nunca como um legado.

   

 

Edson Souza - Fredric Jameson, em seu livro As sementes do tempo, escreve em determinado momento "O texto utópico realmente nos dá a vívida lição daquilo que não podemos imaginar: só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos buracos no texto, que são a nossa própria incapacidade de ver além da época e de suas conclusões ideológicas". Em que medida Geografia Aérea se inscreve nessa vertente da utopia proposta por Jameson?

 

MRL – Não sei se da utopia proposta por Jameson, meu caro Edson, mas gosto muito dessa imagem que vem dos "buracos no texto" que está no limite de nossa incapacidade. Geografia aérea é o meu limite de incapacidade agora. Remover alguns poemas dos livros anteriores e reescrever completamente alguns outros aproximando-os de textos que ainda são estranhos para mim e montar com eles um conjunto que fosse o mais irregular possível, me parece, é ampliar o tamanho do buraco no texto. E aí nesse estrangulamento do sentido, imagino, procuro fazer o livro despencar numa construção desamparada, num espaço para a morte. Ingenuamente, talvez, imagino que pode ser uma intervenção porque é uma "insatisfação com o presente". Ou seja, algo como aquilo que você mesmo costuma dizer e já escreveu: que "toda utopia não é senão um desejo de utopia".

 

 

ES – O que tens a  nos dizer sobre a presença das artes visuais em teu trabalho poético?

 

MRL – Acho que isso é a melhor assombração naquilo que procuro fazer. Outro dia, fui falar para alguns alunos de um projeto muito legal da Ieda Magri na UFRJ, a convite dela. E entre eles estava o professor e escritor Fred Góes com alguns de seus alunos. Ele disse que depois de ter lido meus livros e de me ouvir, via o meu trabalho numa vinculação muito forte com um modo de operação do pensamento acerca do espaço que é muito próprio das artes visuais, da arquitetura, da engenharia, etc. Confesso, fiquei orgulhoso com a leitura que ele fez. Primeiro, porque não separo muito as coisas, gosto daquilo que é capaz de me gerar um pensamento mais intenso. E faz muito tempo que acompanho, ou melhor, que persigo o pensamento de alguns artistas que gosto muito [caso da Elida Tessler, do Eduardo Frota e do Alexandre Veras, por exemplo] nessa travessura alegre que eles têm com o objeto, com a arquitetura, com a música, com a palavra, com o cinema, com a imagem visível entre outras coisas. Depois, acho que arte, nisso que ainda me interessa como invenção e imaginação crítica, vem de um pensamento de contaminação, de contato [um "confim"]. Literatura, em si, como qualquer outra coisa pura, me cansa muito, fica chata e teimo em achar que perde potência política.

 

 

 

Eduardo Sterzi – O gesto de "passar a limpo" marca decisivamente a poesia brasileira moderna e contemporânea, desde os títulos de Raul Bopp ("Bopp passado-a-limpo" por ele mesmo) e Carlos Drummond de Andrade (A vida passada a limpo) até a reescrita e remontagem de Collapsus linguae (assim como de outros poemas incluídos na antologia pessoal Sublunar) por Carlito Azevedo. Murilo Mendes justifica as alterações introduzidas na reunião de sua obra em 1959, Poesias, com uma frase já célebre: "Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo". A poesia, em todas essas práticas, parece se revelar uma espécie de autofilologia vital, por meio da qual o autor afirma o caráter eminentemente ruinoso (isto é, histórico) da própria escrita, sempre tensionada entre perda e restituição, destruição e reconstrução. Geografia aérea, seu livro mais recente, é um exercício de reescrita, por vezes profunda, de seus livros anteriores à luz de preocupações presentes. Trata-se, pergunto-lhe, de passar a limpo — ou de passar a sujo? Ainda é possível crer, como Murilo, na diferença entre o sobrevivente e o contemporâneo?

 

MRL – A experiência com o Geografia Aérea veio do que fiz antes com As Mãos [2003]: reescrevi o romance praticamente inteiro, mudei quase tudo, ampliei o tamanho da guerra que há ali para aproximar o texto das narrativas do livro novo naquele momento, o Jogo de Varetas [2012]. A ideia era montar com esses dois livros uma circulação entre eles, um objeto expandido e em deriva. Já havia feito isso também, de outro modo, com as gravações que tenho do romance, trechos lidos por várias pessoas, quando montava e remontava o livro durante os lançamentos em outras sequências narrativas absolutamente imprevistas. E aí, quando o Jorge [Viveiros de Castro, editor da 7Letras], me propôs reeditar o Embrulho [2000] e o Quando todos os acidentes acontecem [2009], eu disse a ele que preferia fazer um outro livro em que pudesse reescrever esses poemas aproximando-os do que faço agora. E assim foi, daí veio o Geografia aérea. Escolhi alguns poemas que imaginava poder ter ainda alguma memória de como haviam sido publicados e que, ao mesmo tempo, pudesse fazê-los desabar numa metamorfose em que eles de fato fossem outros, estranhos a mim também e mais perto do que desejo fazer agora. O Falas inacabadas [feito em parceria com a artista visual Elida Tessler], que é um livro transparência, foi talvez o que mais ganhou alterações. E não é uma coisinha ali e outra acolá, o que havia antes muitas vezes desaparece mesmo. E isso me interessa, porque prefiro imaginar que toda poesia é perda, esquecimento, queda, desamparo, etc. Não pensei em passar a limpo [ou a sujo], mas apenas que tinha um material ali que poderia gerar um trabalho novo com outras intensidades e mais desequilíbrio. E aí, provável, meu bom Edu, longe da genialidade de Murilo, claro, acho que me esforço um bocado para cumprir ao mesmo tempo minha sobrevivência e meu tempo agora.

 

 

ES – Atravessa seus livros — inclusive os mais antigos, com a reelaboração deles para Geografia aérea — a impressão de "uma guerra redonda e total" (segundo as palavras de Horácio Dídimo citadas por você numa das epígrafes do volume agora lançado, assim como em meio a um poema). Georges Didi-Huberman, em Sobrevivência dos vaga-lumes, alerta para os riscos de se conceber a experiência cotidiana sob a forma de uma guerra total, na medida em que isso pode levar à sensação de um apagamento definitivo das fagulhas de esperança e, por consequência, a um esvaziamento do próprio sentido político da existência. Como você se posiciona diante da advertência de Didi-Huberman? Ser poeta e intelectual num país como o Brasil, num continente como a América Latina, passa por encarar de frente a guerra, independentemente dos riscos? Que guerra, afinal, é essa?

 

MRL – Adorei sua pergunta. E tento me colocar o tempo inteiro com muito cuidado sobre isso. É óbvio, não passei por uma experiência de guerra com o sentido que fatalmente se atribui ou se retira dela. Por outro lado, o rasgo social ao nosso redor é tão intenso que, de certo modo, alguns acontecimentos e, principalmente, vários emperros movidos por esses acontecimentos remontam diretamente a essa experiência desesperada. A frase de Horácio Dídimo comparece vinculada a um projeto de alerta — "pois eu vim tomar uma satisfação", ele escreve noutro poema desse mesmo livro confrontando toda conformidade de ação — em que a guerra não é projetada como um tema, mas sim como um estado crítico para a atenção. E isso é o que me interessa pensar com o meu trabalho. Não entendo a literatura como uma argamassa de papel e tinta, mas sempre lancei meu corpo noutras esferas de enfrentamento do modo mais ativo possível. Tenho uma trajetória, mínima que seja, de tentativas de construção de possibilidades e diminuição do fosso cretino que esse país impõe a quem mora nele e não tem lá nenhuma opção para nada. Sou professor há quase 25 anos mesmo só tendo 44, já dei aulas cumprindo uma parábola gigantesca: de crianças de 5 anos de idade, passando por todo o ensino fundamental e médio, até a universidade. Sempre me vi muito preocupado com a formação. Quando montamos o ALPENDRE, em Fortaleza, em 1999, por exemplo, a ideia era uma casa de arte com pesquisa e produção que estivesse no talo do pensamento contemporâneo e, também, na mesma clave, uma casa de acolhimento com a mesma linha tensa a quem não tinha oportunidade nenhuma. Todos os nossos projetos se desenhavam assim com as comunidades muito pobres do entorno, com bolsas de estudo até algum desenvolvimento efetivo para o conhecimento que atravessava a casa. Meu trabalho vem um pouco disso tudo, vem com isso tudo. E isso, muitas vezes, é uma esperança. Espero que seja, ao menos.

 

 

Marcéli Torquato – Há muita divergência de opiniões quando se diz respeito à adaptação de obras literárias para o teatro, inclusive há uma piada interna no meio teatral que diz que autor bom é autor morto, o que na verdade não passa de uma brincadeira, pois imagino que os diretores e atores do mundo inteiro adorariam discutir uma adaptação com Dostoiévski ou Kafka. Qual é a sua opinião sobre essa questão?

 

MRL – Muito bom, Marcéli, muito bom. Gostomuito quando interferem no meu trabalho, apagam coisas, acrescentam outras, anulam algumas, etc. Acho muito legal isso do erro, desde que o erro mantenha alguma potência de invenção. E numa adaptação ou no uso de um trabalho para compor outro é um pouco isso o que está em questão: o erro como a constituição de UM OUTRO. É outro gesto, são outras intensidades. Mas imagino que se há uma possibilidade de conversa ela sempre deve haver. Não por nada, mas apenas pela conversa. Toda conversa é um afago no mundo. Para mim, fazer as coisas sozinho é muito moroso e aborrecido. E fazemos muito pouco pela vida se optamos por fazer tudo solitariamente. Acho que a composição de um trabalho para o teatro ou para o cinema, por exemplo, parece depender circunstancialmente de algumas quebras das normas antipáticas de convivência e do apagamento de alguns rótulos mais imperativos.

 

 

MT – E como é o seu processo como autor e como vivo quando adaptam uma obra sua para o teatro?

 

MRL – Entendo que aí é o trabalho de outra pessoa que conversa com o meu. E seria praticamente um contrassenso diante de tudo o que penso se eu ficasse com algum melindre por causa de uma adaptação que ficou assim ou assado. Bom, meu trabalho só foi adaptado para o teatro uma vez, com direção da Emanuele Weber Mattiello. E gostei muito do que ela fez e, principalmente, de como ela fez. Não me meti em nada. É um trabalho dela. Apenas conversamos muito depois que vi duas vezes uma mesma montagem, mas foi mais um papo sobre a peça e sem nenhuma interferência. Somos amigos e aí temos uma ação livre, carinhosa e de muito respeito. E Manu é de uma inteligência e um esforço raros. Fico sempre feliz porque ela escolheu meu trabalho para começar radicalmente a fazer o dela.

 

 

Raúl Antelo – Há uma série de famosas definições de poesia. "La poésie est ce qu'il y a de plus réel, ce qui n'est completement vrai que dans un autre monde". A poesia é uma força que age além e acima da consciência. A ficção é a essência da poesia. A poesia é pensamento musical. A poesia é o real absoluto. Ela é a eterna hesitação entre som e sentido. Ou, a mais dramática, "Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie". Com qual delas você sintoniza melhor? Baudelaire, Schiller, Dryden, Carlyle, Novalis, Valéry, Lautréamont...

 

MRL – Acho que com todas e com nenhuma. Gosto de fazer e refazer a série o tempo inteiro até tocá-la no seu caráter mais imprevisto e "destrutivo" [como sugere Benjamin]. E há duas outras que gosto muito: do Horácio Dídimo, que poesia é aquilo que se faz para "tomar satisfação", e a de Emannuel Hocquard que não lembro muito bem de cor, mas é algo como "poesia não é nem prosa nem verso, é outra coisa". Você também tem uma expressão que gosto de usar para pensar uma possível definição para poesia: "uma desregulação regrada". E Joaquim Cardozo tem quatro linhas geniais que começam o seu poema "Poesia da Presença Invisível": "Através do quadro iluminado da janela / Olho as grandes nuvens que chegaram do Oriente / E me lembro dos homens que seriam meus amigos / Se eu tivesse nascido em Cingapura". — E esta é, sem dúvida, a definição de poesia que mais gosto agora.

 

 

RA – O que é que mais irrita você ao se encontrar com outro poeta?

 

MRL – Quando toda a conversa gira em torno de poesia [como se poesia não fosse sempre outra coisa, outros sentidos] ou de poetas [os mais interessantes são aqueles que sempre falam de outras coisas].

 

 

Silvana Guimarães – Manoel, a escritora Marguerite Duras afirmou que "No fundo é uma coisa que não entendo: por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma vez quando vivem, e outra quando escrevem. E por que essa segunda vez é mais importante que a primeira? Isso é tão misterioso como concluir que as horas de sono, o sonho, são mais importantes do que as horas que passamos acordados". Reescrever sua poesia foi viver três vezes? Por que/para que reescrever? "Lâminas", a primeira parte do belo Geografia Aérea, composta por poemas inéditos, é o menor pedaço do livro. Pode explicar isso?

 

MRL – Vamos lá ver se consigo acompanhar você. Acho que escrever é uma desimportância. Assim, não tenho isso de êxtase nem muito menos me descolo da vida, do mundo e das coisas ao redor enquanto escrevo. Faço tudo enquanto escrevo e, ainda bem, escrevo pouco. Escrever é quase nada e é tão pouquinho, tão menor, que aí está toda a importância política desse gesto. Reescrever tem a ver com fazer despencar toda e qualquer estrutura que possibilite manter um poema em pé. Gosto de fazer o poema cair, virá-lo pelo avesso, aproximá-lo do meu corpo a todo instante. Não posso deixar um poema tornar-se presa de um livro, e vice-versa, parado lá por tantos anos sem nenhuma metamorfose. E "Lâminas" é a menor parte do conjunto porque entre os textos mais recentes eram esses poucos que, de algum modo, tinham força ali como um começo do livro e para acolher o que vem depois. Eu inscrevi esses poemas, num conjunto maior, no Petrobrás Cultural, com o título de O animal sorri. Mas como eu nunca ganho nada [tenho a impressão de que as comissões acharam os poemas fracos, é provável — o Jogo de Varetas também foi renegado por uma dessas comissões, no ano anterior, depois virou semifinalista de um prêmio desses por aí], desisti de participar e resolvi rearmar e reverter o jogo. A forma fraca é o que mais me interessa, Silvana, no meu trabalho quero mais é que tudo desabe, se desmonte, se quebre, que tudo vire uma miuçalha.

  

 

SG – Segundo João Cabral de Melo Neto "a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser — é o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica — ou por falta de ser. Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar". Você não me parece um escritor transbordante. Como ele, sente que lhe falta alguma coisa? O que a poesia faz com você (ou por você)?

 

MRL – Eu tenho uma alegria danada quando escrevo, porque, como já lhe disse, escrevo pouco. E todo o pouco que tenho está nos meus livros. Não tenho arquivos de inéditos, nem nada. Se você me pede um poema ou uma pequena narrativa pra colocar na revista agora, não tenho. E gosto muito dessa imagem de João Cabral, a da "escassez de ser". Se pudesse ou tivesse que escolher ficaria aí, bem quieto, nessa escassez de ser. Ou, muito mais severamente, entre os que imaginam ter escrito um bom poema enquanto caminham e guardam o bicho indomável e misterioso em algum lugar tão áspero que, logo em seguida, sem tê-lo anotado, ele é esquecido por inteiro e sem sofrimento algum. Tenho a impressão de que toda poesia é esquecimento, que toda poesia é perda. 

 

 

 

agosto, 2014
 
 
 
 
Manoel Ricardo de Lima nasceu em Parnaíba, no Piauí (1970) e mora no Rio de Janeiro. Professor na Escola de Letras e no PPGMS, Unirio. Publicou As mãos, Jogo de Varetas e A forma-formante [ensaios com Joaquim Cardozo], entre outros.
 
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Annita Costa Malufe (São Paulo/SP, 1975). Poeta, autora de Quando não estou por perto (Rio de Janeiro: 7Letras/Petrobras, 2012), entre outros livros de poesia. É professora e pesquisadora, autora do ensaio Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (Rio de Janeiro: 7Letras/FAPESP, 2011) e do posfácio de Geografia aérea, Manoel Ricardo de Lima.
 
 
Carlos Augusto Lima (Fortaleza/CE, 1973). Publicou Objetos (Alpharrábio, 2002), vinte e sete de janeiro (Lumme, 2008), Manual de Acrobacias n. 1 (Editora da Casa, 2009), O Livro da Espera (Alpharrábio, 2011), Três poemas do lugar (La Barca, 2011), Alcance a Graça do Verso (Edição do Autor, 2013), Ricardo Aleixo — Coleção Ciranda de poesia (Editora da UERJ, 2013) e Motociclista do globo da morte (2014).
 
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Edson Souza (Edson Luiz André de Souza). Psicanalista. Analista membro da Associação Psicanalitica de Porto Alegre. Professor do Instituto de Psicologia UFRGS. Professor do PPG Psicologia Social, PPG Psicanálise: Clínica e Cultura, PPG Artes Visuais, todos da UFRGS. Pesquisador do CNPQ. Pós-doutorado pela Universidade de Paris VII e EHESS (Paris). Professor visitante Deakin University (Melbourne), Instituto de Estudos Críticos (México) e Paul University (Chicago). Autor entre outros de Uma invenção da Utopia (São Paulo: Lumme Editor, 2007) e Freud: ciência, arte e política, com Paulo Endo ( Porto Alegre: LPM, 2009).
 
 
Eduardo Sterzi. Escritor, crítico e professor de teoria literária na UNICAMP. Nasceu em Porto Alegre em 1973 e, desde 2001, vive em São Paulo. Publicou, entre outros, os livros Aleijão e Prosa, de poesia; Por que ler Dante e A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria, de estudos literários, e Cavalo sopa martelo, de teatro.
 
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Marcéli Torquato. Atriz formada pela Casa das Artes de Laranjeiras, graduada pela Faculdade da Cidade. Integrou o "Grupo Milongas" de teatro por 7 anos. Últimas montagens teatrais nas quais integrou o elenco: Não Há melhor lugar do que a nossa casa, Sinfonia Sonho e Leonardo, o pequeno gênio Da Vinci. Atualmente ensaia Pequenas Biografias, de Marcio Freitas e Plágio, de Morena Cattoni, além de trabalhar na equipe pedagógica de uma escola de ensino básico, onde procura unir arte e educação.
 
 
Raúl Antelo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador-sênior do CNPq, foi Guggenheim Fellow e professor visitante nas Universidades de Yale, Duke, Texas at Austin, Maryland, Autónoma de Barcelona e Leiden, entre outras. Presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). É autor de vários livros, dentre os mais recentes, Potências da imagem; Crítica acéfala; Ausências; Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos e Alfred Métraux: antropofagia y cultura. Tem alguns livros no prelo: Imagen de América (Ed. da UNTREF) e A máquina afilológica (Ed. da UERJ). Pela EDUSP/EdUFSC, Cartas de Mário de Andrade a Newton Freitas.
 
 
Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Socióloga, escritora, redatora/revisora publicitária. Tem textos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de algumas coletâneas, entre elas, Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas, que organizou com Florbela de Itamambuca (São Paulo: Terracota, 2009). Fundadora e editora da Germina — Revista de Literatura & Arte, Escritoras Suicidas e do site do escritor Rodrigo de Souza Leão.
 
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