Desde o dia em que inventei de ser cronista, tem-se tornado mais forte em mim a qualidade de observador. Assim, aproveito as caminhadas que faço eventualmente para a observação.

Saí levando minha modesta máquina fotográfica. Queria ver algo diferente. E vi. Um cavalo simpaticão, que até virou a cabeça para melhor ser enquadrado na foto. Estava pastando à margem da Arthur Bernardes. Logo imaginei uma fotolegenda: cavalo pasta à beira de uma das avenidas mais movimentadas da capital mineira.

Eu sempre quis mostrar as contradições desta Belo Horizonte que vejo sui generis, onde o simples convive com o inesperado. Metrópole para alguns, roça grande para outros. Lugar onde sempre se encontra um amigo na esquina. Cidade do Mundo e Cidade Jardim.

Depois foi a vez de vir a pé do Centro, bela caminhada de quatro quilômetros. Na Álvares Cabral com Rio de Janeiro, nos passeios e na grama, uma cena digna dos melhores filmes (ou livros). Duas mulheres e um homem acordavam os vários mendigos, crianças na maioria, que ali dormiam. Nas mãos, um copo de leite quente, com café, e um pão com manteiga. Recebiam o lanche e mal tinham tempo de agradecer, tamanha a fome e o frio.

Reconheci uma mulher dentre os que praticavam o nobre ato. Uma jovem senhora de cabelos escuros e olhos azuis, que às vezes se utiliza dos serviços da empresa onde trabalho. Conferi-lhe o nome: Daniela. Perguntei se tal ideia partira de alguma empresa ou órgão assistencial. Após certo rodeio, ela resumiu: "Partiu da gente mesmo. Além de nós três, há outras pessoas que ajudam. Não custa nada, quer dizer, é muito pouco. Para alimentar todo esse pessoal que está aqui na rua não gastamos mais do que dez reais".

Despedi-me agradecido, como se eu é que tivesse sido acordado no chão frio de junho para ganhar um pão e um copo de leite quente. Veio-me um pensamento lírico: mais belas do que os olhos azuis dessa moça são suas atitudes.

Hoje, sem procurar novidades, segui meu percurso tradicional. Chegando à Bento Simão, fui fazer minhas duas gloriosas séries de abdominais. Terminada a primeira, sentei-me na prancha de concreto para descansar.

Passou à minha frente uma senhora, traje esportivo, que exclamou: "Rodin!" Ante minha surpresa, ela concluiu: "O Pensador" — e retomou seu ritmo. Agachado e com a mão fechada sob o queixo, eu a fizera lembrar a famosa escultura do artista francês.

Desta vez, não fui eu quem viu algo de inusitado na rua. Foi aquela senhora. E o inusitado estava naquela pose esquisita que, sem perceber, eu fazia. Milhares de coisas acontecem a todo momento, em cada esquina, gesto ou olhar. Nós, sempre apressados, é que não as percebemos. Podemos ser tanto a estátua que pensa e o cavalo que surpreende quanto o pão que dignifica.

 

 

março, 2019

 

 

 

Rogério Miranzelo, escritor, compositor e jornalista mineiro. É autor do livro de crônicas Belo (2004) e do livro de poemas Lua diferente (2007). Participou, dentre outras, das antologias poéticas Saciedade dos Poetas Vivos, vol. 6 (Org. Leila Míccolis e outro, 2008) e Antologia Inaugural — Patuscada (Org. Eduardo Lacerda e outros, 2016). Como resenhista, colaborou com os jornais O Tempo — caderno Magazine, de Belo Horizonte, e Rascunho, de Curitiba. Vive em Belo Horizonte (MG). Instagram: miranzelo_oficial.

 

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