©anelka 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Na casa dos meus pais havia poucos livros. Minhas irmãs mais velhas passaram anos estudando em colégios internos e em Inhapim, onde morávamos, não havia livrarias, nem sequer biblioteca pública. Os livros eram emprestados pelas primas ou amigas. Certa vez, uma de minhas irmãs trouxe um romance que achei muito bonito — era menina, mas lia romances adultos, quase não havia livros infantis, nem sequer tinha acesso às obras de Monteiro Lobato — intitulado Um ramo para Luísa, de José Condé.

Fiquei encantada com a história. Não me lembro dos detalhes, mas sei que a protagonista, Luísa, era prostituta, palavra impronunciável, nos ensinaram a dizer "mulher da vida" ou "mulher de má vida", e que morria no final.  Alguém punha um ramo de flores ao lado do seu cadáver. Há um filme, a que não assisti, baseado no romance de Condé. Mas me recordo perfeitamente da cena final, que me pareceu muito tocante.

Guardadas as diferenças entre o comportamento das "personagens", é assim que me sinto ao findar 2019, com aquele tipo de emoção do livro — a de quem termina o ano colocando uma braçada de flores num sepulcro — pois perdi uma irmã no Dia de Finados.

Como não podia deixar de ser, mesmo sem querer, nós, cronistas, fazemos um balanço do ano que acaba. Para o país, foi um ano muito estranho, pois desde a posse do novo presidente estamos às voltas com mudanças e retrocessos, alguns muito sérios. Há um clima de insegurança no ar, especialmente para os que trabalham na área da educação e da cultura. Certos episódios, como o da tomada do microfone no festival de cinema de Brasília, lembram muito os famigerados tempos da censura, durante a ditadura militar.

Não sabemos o que virá em 2020, mas os tempos são de preocupação, ansiedade e angústia. No MEC, muitas medidas referentes aos livros, incluindo-se a compra para as escolas, foram extintas ou limitadas; os donos de editoras estão apreensivos e várias livrarias tiveram de fechar as portas. Isso sem falar em algo mais grave ainda, que é a campanha do governo contra as universidades públicas. Citei esses temas apenas como exemplos, pois a lista é extensa, no que diz respeito às áreas comentadas.

O grande esforço que nos cabe, como escritores, é não cruzarmos os braços, sob hipótese nenhuma. Temos de escrever, apesar do contexto, somos obrigados a produzir mais e melhor, para conseguirmos aguentar o que vem pela frente.

Do ponto de vista estritamente pessoal, publiquei um novo romance, o quinto, Nenhum espelho reflete seu rosto, pela editora Arribaçã, de Cajazeiras, PB, editora novinha em folha, que acaba de completar um ano de vida. Uma iniciativa do poeta, jornalista e editor Linaldo Guedes e do seu sócio, Lenilson Oliveira.  Bem recebido pelos leitores e pela crítica, especialmente por abordar temas sedutores e atuais — as relações amorosas virtuais e o abuso moral e psicológico — o romance tem me dado alegrias. Recebi e ainda recebo dezenas de mensagens de leitores, há quem considere o livro de "utilidade pública", embora seja de ficção.

Além disso, participei de coletâneas de contos, fui à 3ª reunião anual do Coletivo Feminista Mulherio das Letras, em Natal, RN (nunca perdi nenhuma, até agora), embora tenha voltado antes do término, para assistir aos funerais da irmã. Estive presente em feiras de livros, debati em clubes de leitores, fiz palestras, enfim, do ponto de vista literário foi quase tudo normal, não fosse o pano de fundo cinzento e preocupante existente no país.

Não sou capaz, infelizmente, de formular uma mensagem de esperança para os leitores, como é de praxe. O único que posso dizer é que não desistam, lutem por seus desejos e sonhos, especialmente os sonhos solidários, que envolvam a coletividade, não importa o contexto do ano vindouro. 

O momento é de união de forças, de ações conjuntas, de trabalhos em equipe. Juntos somos mais fortes. Nós, que desejamos o melhor para todos, que queremos ver ruas sem pedintes, crianças nas escolas e não com malabares nos sinais de trânsito, que fazemos questão de almoçar num restaurante a quilo e não ter de interromper várias vezes a refeição para atender aos que nos pedem moedas para inteirar uma quentinha, não podemos abdicar da nossa responsabilidade individual.

Finalizo texto e o ano com esse convite, com essa conclamação ao povo do livro — editores, escritores, revisores, tradutores, capistas, ilustradores, livreiros, vendedores: não desistamos de escrever, de publicar, de fazer o livro chegar ao leitor. Precisamos cumprir nossa obrigação como testemunhas do nosso tempo, como retratistas e críticos desses anos difíceis. A tarefa é árdua, bem sei, mas é a que temos, a que nos espera nesse horizonte nada róseo.

 

 

 

 

dezembro, 2019