Existem vários estudos importantes elaborados pela crítica feminista sobre as mulheres escritoras. Carmen Martín Gaite, escritora e pesquisadora espanhola, é autora do ensaio "La chica rara", do livro Desde la ventana, considerado um texto fundador da crítica feminista sobre a literatura de autoria feminina, por traçar um panorama da trajetória das personagens femininas na literatura feita por mulheres.

Para ela, a janela (ventana) foi, durante séculos, um instrumento considerado perigoso e de "transgressão". As mulheres ficavam reclusas em suas casas e seu contato com o exterior se dava através da janela, que passou a ser importante ponto de referência, fronteira entre o mundo conhecido e o desconhecido. É um ponto de enfoque, mas é também um ponto de partida.

O adjetivo "ventanera", não mais utilizado hoje, aparece na literatura clássica espanhola. Qualificar uma mulher de "ventanera" era pejorativo, sinônimo de faladeira, fofoqueira, leviana. Ninguém se casava a não ser com a filha do vizinho, pois somente assim era possível saber se era ou não "ventanera".

Uma mulher não podia ficar na janela a não ser por motivos "eróticos", ou seja, para "mostrar-se", "insinuar-se". Não ocorria a ninguém que as mulheres quisessem respirar ar fresco, apenas. E que isso poderia não ser uma ânsia "física", e sim do "espírito". A janela era o ponto de referência de que elas dispunham para sonhar, a única brecha para olhar, a divisão entre o "conhecido" e o "desconhecido", o de "dentro" e o "de fora".

Trazendo essa ideia para o campo literário, Carmen Gaite cunhou a expressão "mujeres ventaneras" para denominar as mulheres escritoras, que veem o mundo a partir de uma localização bastante precisa, pois a janela, com seus limites, condiciona um modo de olhar peculiar. Esse olhar, que vê sem ser visto, permite que o exterior seja apreendido a partir de um reduto interior, de uma perspectiva determinada, muito conhecida pelas mulheres e quase que completamente ignorada pelos homens.

As consequências históricas desse confinamento não são de pouca monta. Somos herdeiras das "mulheres ventaneras", querendo ou não. Muita água correu debaixo dessa ponte, mas se há alguma diferença entre o discurso dos homens e o das mulheres, esta consiste no fato de as mulheres olharem para fora desde o interior.

Em Brasília, somos atualmente muitas "mulheres ventaneras" em atividade. Mencionarei aqui apenas romancistas, mas há contistas, poetas, cronistas, roteiristas, dramaturgas. Temos muitos nomes, e certamente esquecerei vários, mas cito como exemplo, entre as decanas, Margarida Patriota, Stella Maris Rezende, com seus romances juvenis bem-sucedidos, Lucília Garcez, Maria Clara Arreguy Maia, Cinthia Kriemler e eu. Entre as mais jovens, o número tende sempre a crescer, e me vêm à memória Beatriz Leal Craveiro, Paulliny Gualberto Tort, Patricia Baikal, em meio a tantas.

Tudo que morde pede socorro, recentemente publicado pela Editora Patuá, é o segundo romance de Cinthia Kriemler. Com sua linguagem forte, crua, dura, em alguns momentos, chocante e ao mesmo tempo poética, a autora narra a história de Leonora, que, aposentada por invalidez — sofreu um acidente e perdeu parte de um braço — decide retornar à pequena cidade de Baependi, interior de Minas, terra de sua mãe. Exausta e extremamente magoada pelos golpes que recebeu, Leonora se depara, contudo, com mulheres que sofreram ou estão diante de situações de extrema violência, pelo fato de serem pobres e, sobretudo, por serem mulheres. São várias gerações de vítimas de violência física, violações e estupros. O descanso, o refrigério que a personagem desejava não se mostra possível, pois ela é chamada a atuar, a socorrer essas mulheres, a ouvir suas histórias, a fazer boletins de ocorrências.

Quase por acaso, ela tem contato com documentos referentes à Nhá Chica, negra que foi beatificada. Puxando esse fio, a autora adentra na vida dos escravos da região, especialmente das escravas, e na violência e abusos a que foram submetidas.

Mas não é apenas de violência contra mulheres que Cinthia trata, no seu vigoroso romance. Há ainda uma personagem surpreendente, o jovem Fazal, oriundo do Afeganistão e adotado por um casal brasileiro. Aos seis anos de idade, ele foi vendido pelo pai para ser um "bacha bazi" — meninos que se vestem de mulher, se pintam e dançam a fim de servir a seus "senhores", pedófilos. Mesmo amado pelos pais adotivos, Fazal jamais se recupera dos anos de escravidão sexual, de sua infância violentada e destruída pelo horrendo e criminoso "costume".

Sem nenhum tom panfletário, Tudo que morde pede socorro é um grito de alerta, é um livro-denúncia, sem deixar de ser uma história de ficção. Daí vem a força da obra.

Cinthia Kriemler e eu lançamos nossos romances em dias consecutivos, ela em Brasília e eu em João Pessoa. Nenhum espelho reflete seu rosto, Editora Arribaçã, de Cajazeiras/PB, também trata de abuso de poder e de violência contra a mulher, em um patamar mais abstrato, sofisticado e sutil, mas não menos pernicioso. Na história, o abuso é afetivo, sexual, psicológico e moral. É evidente que a violência física pressupõe outros tipos de abuso, pois a violência costuma se desenvolver gradualmente. No meu romance, a violência não chega a vias de fato em nenhum momento, é daquele tipo que "ultrapassa" e "transcende" o corpo, destinada a ferir a alma, o espírito, a destruir a autoestima e a autoconfiança da vítima, a fazê-la duvidar de sua sanidade mental, a "quebrá-la" psicologicamente, "técnica" macabra muito utilizada pelos torturadores durante a ditadura militar.

A personagem principal, Helen, é uma joalheira cujo sonho é se tornar designer de joias. Ela aprendeu a profissão com o pai, um ourives que sempre desejou ter sua própria joalheria, mas morreu sem o conseguir. Filha única, como Leonora, perdeu os pais num acidente automobilístico, com menos de vinte e cinco anos. Solitária e obcecada com o seu trabalho, conhece, através de uma rede social, um argentino, Ivan Hernández.

Em pouco tempo se inicia e se desenrola um relacionamento amoroso virtual. Tudo ocorre muito rápido, como é comum nesses casos. Helen fica fascinada com o poder de sedução de Ivan e com suas atenções constantes. É levada a crer que encontrou sua "alma gêmea" e se apaixona completamente pelo estrangeiro.

Visita o namorado na Argentina duas vezes. Nessas viagens, começa a ter contato com as histórias mal contadas, as mentiras, a ambiguidade, a negação, os jogos psicológicos, a maldade e as estratégias e táticas enlouquecedoras de Ivan.

Ao final da história, Helen consegue se desvencilhar do relacionamento, depois de grande sofrimento e imenso desconsolo, não sem antes se esforçar muito para descobrir quem é o homem com quem se relacionou, que apresenta fortes traços do chamado narcisismo perverso. Ivan é um predador social, que se vale de tudo que suas vítimas podem oferecer: dinheiro, sexo, passeios, viagens, entretenimento. Não é apenas um aproveitador financeiro, pois trata de se apropriar também das emoções de suas vítimas, despertando-lhes reações positivas e negativas durante todo o tempo.

Não vou mencionar aqui como a história é narrada literariamente, nem as estratégias discursivas utilizadas na construção do enredo. O essencial é deixar patente que Nenhum espelho reflete seu rosto tem como tema o uso exacerbado do poder, a violência contra a mulher, o machismo, a misoginia, o narcisismo perverso e a psicopatia.

Ambos os romances se inserem numa pauta feminista. O tratamento dado aos temas é diferente, mas os dois alertam e chamam a atenção para os maus-tratos a que as mulheres vêm sendo submetidas há várias gerações, em todas as classes sociais, de modo real ou virtual. Infelizmente, os novos aparatos tecnológicos não surgiram com o objetivo de libertar as mulheres de coisa alguma: pelo contrário, têm sido utilizados como adjuvantes para os predadores de toda ordem.

 

 

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Os livros:

Cinthia Kriemler. Tudo que morde pede socorro.

São Paulo: Patuá, 2019, 164 págs.

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Rosângela Vieira Rocha. Nenhum espelho reflete seu rosto.

Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2019, 268 págs.

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setembro, 2019