Eu não te conhecia

 

À memória de Marielle Franco

 

Eu não te conhecia antes dessa pistola vomitar quatro balas.

Sequer terei ouvido (alguma vez) o teu nome na rádio,

nem que emprestavas vida a ruas onde o medo e a morte

espreitavam nas esquinas,

como sombras deitadas, marcando território.

Espero que me desculpes a minha ignorância.

Há coisas que nos fogem sem nos apercebermos

e só delas sabemos quando nada mais há

do que um sorriso inteiro cravado na memória

e o silvo de um disparo abrindo-nos os olhos.

Neste lado de cá do enorme oceano

não chegavam notícias dizendo o que fazias.

Apenas chegou esta,

dizendo que um jagunço te havia assassinado.

Enganou-se, coitado,

porque a festa da luta — invencível, perene —,

que mora nos teus lábios,

permanece contudo no povo e na favela.

 

 

 

 

 

 

A hora dos néscios ou a vertigem boçal da tirania

 

 

É a hora dos néscios tomarem o lugar no banquete

de todas as estações, de todas as falácias,

reclamando para si a parte do quinhão que nunca lhes pertence.

Chegam com um revolver de mentiras e sebo

e disparam apenas putrefactas palavras,

trágicas como a fome, sinistras como o medo.

 

Deixarão sobre a mesa o ódio do seu fel,

derramando veneno sobre côdeas de pão,

para que os bobos possam saciar-se de vento,

degustar-se de vermes em fruta apodrecida,

como raivosos cães farejando uma presa.

 

Sei que há toutinegras que não constroem ninhos

entre as dolentes sombras do entardecer

e víboras que correm como o som de uma bala,

anunciando a cura de vícios e defeitos,

o messiânico antídoto de todas as maleitas,

mas morro sempre um pouco quando vejo canalhas

injectarem arsénio no coração dos fracos.

 

Eis porque me dói esse país do samba, sol e carnaval,

perdendo-se de si e da sua memória,

sem o rasgo de um gesto, a leveza de um salto,

ou um pouco de alento para deter a besta e retomar o passo.

Pobre gente, essa gente. Tão pobre e tão confusa,

sequer tem a noção que cava, furiosamente, a própria cova,

movida pela vertigem boçal da tirania.

 

 

 

 

 

 

Esse teu nome é povo

 

 

Sei que há momentos em que a injustiça supera as nossas forças

e um homem não consegue segurar suas lágrimas,

sentindo-se impotente ante o arbítrio e o ódio.

A vida, meu amigo, é feita de ciladas,

montadas por hienas vestidas de cordeiros,

ou de boçais figuras que tresandam a sangue.

Por isso não fraquejes. Não chores mais, Luiz.

Olha em frente e confia.

O tempo dos chacais não dura eternamente.

Há vocábulos tão livres que ninguém acorrenta,

pois têm horizontes tão vastos e tão belos

que cadeia nenhuma consegue aprisionar:

planícies imensas de onde se avista o pão sobre todas as mesas,

água em todas as casas

e um tecto a que se colhe quem dormiu ao luar.

Não deixes que te vençam.

A tua luta é vida, a tua vida é luta.

E (esse) o teu nome, Lula, não é mais o teu nome.

Esse teu nome agora será apenas povo.

 

 

portugal, outubro, 2018

 

 

Fernando Fitas (Campo Maior, Alentejo, 1957). Jornalista, poeta maltês e cidadão permanentemente intranquilo, trabalhou em vários jornais de âmbito nacional, nomeadamente em "O Século", "24Horas" e "Tal& Qual". Fundador e director — durante sete anos — do quinzenário "Outra Banda" e chefe de redacção do "Noticias de Almada" (entre 2005 e 2011), colaborou ainda em diversos periódicos regionais de norte a sul de Portugal, assim como numa das rádios locais do Concelho do Seixal, assumindo a responsabilidade pela emissão de programas culturais durante vários anos. No domínio da poesia tem várias obras distinguidas com prémios literários. Entre eles, o Prémio de Poesia Cidade de Moura (1999), Prémio Literário Raul de Carvalho (2000) e Prémio de Poesia e Ficção de Almada (2003 e 2014). A sua escrita estende-se da reportagem à ficção, passando pela investigação histórica e recolha oral em alguns concelhos da Margem Sul do Tejo. Autor das obras Canto Amargo, Amor Maltês, Cantos de Baixo, Silêncio Vigiado, Mar da Palha — reportagens, Histórias Associativas — Memórias da Nossa Memória, A Casa dos Afectos, O Ressoar das Águas, O Saciar das Aves, Alma d'Escrita — Reportagens e Alforge de Heranças. Figura igualmente nas antologias Poetas Alentejanos do Século XX, Literatura Actual de Almada, Da Liberdade e Poetas do Mundo 2015 (Chile). Companheiro dos cantadores da resistência como José Afonso, Francisco Fanhais e Vitorino na Cooperativa Cultural Era Nova, tem poemas cantados por alguns intérpretes da canção portuguesa, designadamente Chiquita e Luísa Basto. Em seu blog, Silêncio Vigiado, publica alguma da sua esparsa produção poética.

 

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