guernica | picasso
 

 

 

 
 

 

 

 

Memória Descritiva

 

 

Guardo da casa o perfume das rosas

erguendo primaveras no quintal

e a festiva sinfonia dos pássaros

anunciando os dulcíssimos frutos da figueira

 

Retenho ainda os gestos de meu pai

abrindo a porta das traseiras

pelo lado de dentro da ternura

(quando a manhã estendia os primeiros raios)

para retirar do poço o balde de água

e regar o canteiro onde floria a hortelã

Cumpria assim o rito matinal

de alimentar de aromas a vida dos que nela viviam

 

Solitária ficou desde o instante

em que meu pai dela se despedira

e minha mãe recolheu sua inominável ausência

no avental de luz que lhe restou

para cerzir  de saudade os dias que lhe sobram

 

Campo de antigas lembranças e afectos 

não pisava   há muito    este chão mátrio

mas o tempo permanece nos retratos

que as molduras guardaram nas paredes

como o perene lugar de todas as memórias

 

Entro   e sei que o forno não coze já o pão

nem o azinho crepita na lareira

afugentando o frio de quantas neves

os remotos invernos carpiram no telhado.

Sequer o marulhar dos rios que sob a tijoleira gasta se ocultavam

alimentando meu infantil sonho de viagens

Sem o calor de quem ergueu a casa

sobrou-lhes a distância que carregaram

e decidiram secar as suas águas

Agora   resta apenas o cheiro da última fornada

e um punhado de cinzas    desoladas

 

 

I

 

 

Meu pai saiu de madrugada e não voltou

Ia afagar a terra e saciar as árvores

semear aloendros em redor da nogueira

(que meu avô lhe dera havia anos)

falar aos animais e sossegar as águas

Sentou-se numa pedra junto à fonte

despejou o alforge e não comeu

Bebeu os primeiros raios da manhã

fitou o horizonte e adormeceu

 

Levou nos braços um ramo de coentros

para temperar os dias e as sedes

que seu tocar os ventos presumia

Nos ombros    uma enxada puída e já sem uso

e um dedal de vinho e um sorriso

para abraçar as aves e os rios

que nesse lugar outro o aguardavam

 

Agora está — presumo — a confiar às estrelas

quantas searas de afectos semeou

e a soletrar as sílabas e os verbos

de quantos versos ainda me outorgou

para que deles eu tenha o resguardado pão

que seu tocar a terra me legou

 

Cansou-se de guardar   direi   as margens ressequidas

de uma esperança ausente e confiscada

e decidiu partir de madrugada

para abraçar os longes que sabia

capazes de afastar a lassidão dolente

deste país ao sul e despojado

 

 

 

 

 

 

Resumo das heranças

 

 

Ficam aqui as falas derradeiras  

Tão breve é pecúlio que coubera

na preservada cesta onde abriguei

as cartas de bem-querer e os afectos

que foram meu alento e o alívio

nos trilhos a que fui sem recear

o verbo conjugado com o vento

 

E se encontrado está o ponto cardeal

ou se quiseres     a Úrsula Menor do esquecimento

não há porque temer ou vacilar

e sigamos as subterrâneas águas que demandam

a recolha do fruto no seu tempo

 

Meus amigos partiram    já o disse

sem provarem das uvas  quanto mel

concedido  lhes fora para a ceia

mas seu lugar à mesa permanece

na partilha do pão e das revoltas

que ao mais pequeno toque recrudesce

 

Saibamos ser     proclamo     o sonho e a utopia

de reaver o que nos foi negado

e pendurando as uvas no sobrado

da casa da memória que nos resta

juntemos todos os bagos ou lembranças

ao néctar que se assoma em cada verso

para que os ventos venham e se abasteçam

do suculento travo de ousadia

 

Interpelemos também os dias sobre os campos

cercados de silêncio     angústia     raiva

para reacendermos cada extinta fogueira

sem esperar que os deuses dominantes

nos venham inquirir sobre os desígnios

que buscamos lograr com nosso canto

 

Escuto melhor    assim   o ciciar das aves ao relento

e o marulhar dos rios que se aproximam

e suspenso no lume desses fogos

que meus dedos recolhem e contemplam

sou um sopro de vento que não cede

e nessa resistência permaneço

 

Meu pai   repito    saiu de madrugada e não voltou

cansado deste país ao sul   acocorado

Por isso tenho um anelo de fogo que me incita

um velo de ausências que me aquece

e um silêncio mordido que me impele      

a intentar ainda   verso a verso

empunhar a firmeza de quem sabe

haver no vento uma bandeira disponível

que aguarda quem a erga    desfraldada

 

 

[In Alforge de Heranças, Premio de Poesia e Ficção de Almada 2014]

 

 

 

Não deixes que te roubem a memória

 

 

                   A Chico Buarque de Holanda e a todos

                   os que recusam o regresso ao passado

 

 

Não deixes que te roubem a memória.

Nenhuma coisa será suficiente para se morrer à beira das palavras,

ou apagar a lembrança dos dedos numa mão decepada,

ainda que estranhos dizeres me falem de inquietas águas

na crepuscular desolação das margens.

Sem réstia de pudor, são ecos de vingança

que retornam do tempo de tacões de silêncio no lajedo

para ferir a luz que se derrama na calçada.

 

Que obscuro silêncio sobre as mãos

poderia impedir a requerida luz

— que os dedos souberam acender —,

de instigar o sol a escolher entre as nuvens

o sitio onde rasgar o manto do inverno?

 

Não deixes que te mordam a memória

os cães raivosos cuja mantilha investe.

Ergue-te sobre o olhar.

Faz um poema com cheirinho a samba, bossa nova, frevo…

não detenhas o passo e reaviva o sonho.

Quem tem nos lábios a boca de um sorriso

nunca estará sozinho nem  vencido,

pois guarda em sua fala os símbolos da terra

e o recesso do viço que precede a festa.

De nada mais carece para tomar as ruas ou seduzir as fontes,

se acaso ousa no verso, imaculado e puro,

o secreto desígnio de habitar-se de vento e  fecundar o mar.

 

Anda, por isso, amigo, ver o sol

reacender nas mãos dos deserdados,

as bandeiras dos sonhos ocultados

por hienas, vampiros e chacais.

Vem comigo à janela reclamar outra vez a nudez das flores

e o legado de afectos que embriague de novo

os lábios do teu povo,

a intentar os límpidos caminhos

onde soube pintar, em cada muro,

um olhar de alegria e de  futuro.

 

 

 

 

 

 

Um Casulo de Alentos e de Sonhos

 

 

À melodia breve das palavras

confiarei este dizer de esperas e de afectos.

Neles talvez se sinta — ainda — o marulhado vento que os trouxe

ao resguardado leito das lembranças

com que entreteço as horas e os dias

destes difusos tempos desavindos.

Deixar de conjugar o verbo consentir

nem reter as palavras que se assomam

à janela dos lábios requeridos

para que inteira seja a suculenta festa

pelos cravos e polén prometida.

Não refrear o passo não ceder

aos constantes apelos da inércia

Ousar erguer o punho essa bandeira

com que festejámos o devir

antes que tarde fosse e não houvesse

tempo de consagrar Abril em Maio

Não transigir na frase que soubermos

melhor se ajustará a seus desígnios

nem intentar reter o mais rebelde verso

no indomado curso em que se afirma

seu casulo de alentos e de sonhos

sem que domados fossem seus intentos.

Convoquemos então todos os ritos

que o aportar dos gestos nos instiga

e confiar o precioso aroma que libertem

a quantas naves — sei — se transviaram

no prolongado voo a que se deram

sem recear — afirmo — as tempestades

que sobre as suas rotas se abateram.

Doar também um dedal de silêncio

aos rios imaginados da memória

que preservados foram em seu leito

Deixar que se enalteçam e contentem

em transgredir ainda sem temer

a alba do porvir que se advinha

no mais alto postigo das manhãs.

Depositar aí o fruto recolhido

nas mãos de quantas mãos ainda hajam

esperando os parcos grãos que confiámos

pudessem pertencer a nossa herança.

Contá-los um a um como se fossem

o derradeiro espólio que nos sobra

desse instante maior que nos coubera.

Soltar então as inquietas trovas que soando

notificaram — digo — nossos passos

a sulcar novos trilhos a dobrar outros velos

p'ra neles descansar das caminhadas.

É tempo — afirmarei — de repartir

os haveres que no modesto alforge nos ficaram:

Um cabaz de aloendros e de ventos

uma roca de alentos que resiste

um punhado de estrelas e de cinzas

e um anelo de raivas e de mágoas

que em nosso corpo lavra e nos aquece.

 

 

[In O Ressoar das Águas, Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 2003]

 

 

 

 

 

 

Alentejo

 

 

Comove-me a branca serenidade da cal

embebedando de luz as fachadas das casas,

— ancestralidade singular de quem as construiu

para habitar um tempo

eternamente feito de futuro —,

onde as manhãs despertam,

no limiar das flores

que dizem das janelas,

quantos perfumes circulam nas calçadas.

 

Há um remoto soar de vozes em cada esquina,

como se uma sentinela permanecesse ainda

contando das searas a dimensão das espigas,

e o latido de um cão,

que ao longe reclama

a breve companhia de um afago,

quando o vento se abraça às velhas oliveiras

na volúpia de um fogo intemporal e sábio.

 

Tudo aqui são raízes falando por silêncios.

Entre barros e pedras,

só o pó dos caminhos

sabe os itinerários de homens e animais.

Eleva-se da terra um cheiro que me dilata as veias.

Este cheiro pertence-me,

este sol

tão despido como o rio

que me ofereceu a água tantas vezes,

volta-me agora a refrescar de infância.

 

 

 

 

 

 

De Guernica a Badajoz

 

 

Soubemos de Guernica pelo som das explosões

assim que as naves de aço

despejaram ogivas sobre as casas,

fragmentando sonhos e decepando vidas.

E pouco mais pudemos do que lamentarmo-nos

do imponente frio que se abatera, então, sobre as nossas cabeças,

deixando-nos, inclemente, o fel da impotência.

 

Não eram cinco da tarde. Mas um tempo de fogo,

e um lugar tão sem tempo,

que os relógios não sabiam ainda decifrar.

Tivemos assim a certeza de que os únicos elementos de medição

se limitavam ao irregular diâmetro das crateras

e ao súbito fascínio em destruir a esperança

de quem, por suas mãos, ousou, tão-só, tecer

um casulo de afecto e liberdade.

 

Por isso, guardámos o pavor instalado nos olhos das crianças,

quando a guarda investiu pelos quintais da vila

para rasgar silêncios (solidariamente cúmplices)

e intimar as mães

a entrar na viagem de uma estação apenas.

 

Badajoz estava ali à mercê de um olhar

como se a frincha da nossa porta,

(por onde todas as manhãs o dia se levanta),

subitamente ganhasse a dimensão de uma janela

e dela vislumbrássemos o outro lado da fronteira,

divisando um cortejo de medo e sobressaltos

como lâminas de angústia

tatuando na pele cicatrizes de espanto.

 

Não ouvimos os tiros, bem sabemos.

Somente perscrutámos

o fumo elevando-se do cano das espingardas.

Mas retivemos o som

cavo, medonho, perene

de quantos corpos tombaram na arena,

para não nos esquecermos 

daqueles que enfrentando a vertigem das balas,

empunhando palavras de amizade e esperança

permanecem de pé e celebram a vida.

 

 

 

 

 

 

O Cravo e a Criança

 

 

Este é o instante de derrogar silêncios e ocultos dizeres

que a memória da fala não requereu.

Há em cada palavra sílabas subversivas de chuvas e desertos

que à vertigem da sede outorgaram a boca;

águas que temem barcos ante o peso das quilhas

náufragas de areais,

sem réstia de relâmpago que acenda suas velas.

 

Filhas de um conflito de vendavais secretos,

— que a trégua recusaram escrita por baionetas —,

concedem sua alma à ânsia dos abismos que aos lábios afloram,

e povoam as ruas de versos e flores

com o desejo intenso, inviolável, puro, 

de uma certa água

cujo perfume extinga desterros e exílios.

 

Este será, assim, o tempo em que regressa a festa

às supremas palavras que dos olhos se elevam

e avivam no olhar, eternamente,

o vermelho de um cravo nas mãos de uma criança.

 

 

 

 

 

 

Militante (apenas) de utopias

 

 

caçador de esperas e de sedes,

ou pescador apenas de utopias,

aqui retorno agora como o vento

para saber das pérolas do rio.

 

tornara-se imperioso ser da água,

não apenas a gota que reclama

a dádiva de um sopro,

quando o leito das fomes principia,

mas o azul das chuvas e a falas

que convoquem a seiva da semente,

onde germina a ânsia mais secreta,

de quem erguendo sonhos alimenta

vértices de fogo e ousadia.

 

venho escrever nos muros as palavras,

para  desenhar um dedáleo de ventos

quando o musgo dos dias se anuncia,

e como quem retoma clandestinamente a velha harpa

aqui me reinvento, me reafirmo,

militante das coisas impossíveis,

oferecendo somente as minhas mãos despidas e tão débeis

nas quais carrego (ainda) um ramo de utopias.

 

aqui cheguei descalço só de olhar

os caminhos que há tanto me esperavam.

e recusando sempre o quanto pretendia

avancei pelos campos para beber

o eclodir do cântico dos pássaros

logo que as árvores tocam

os primeiros sussurros

na folhagem.

 

no corpo

o mapa de todos os lugares

que ao largo me avistaram,

sem que houvessem logrado apenas o aceno

de um oblíquo olhar,

onde não cabe mais que um golpe de asa.

talvez aí tenha nascido a cicatriz difusa

que à alma se colou secretamente,

dizendo mais de mim do que as palavras.

 

não pretendam por isso, que fale sobre o modo

de colorir as sombras,

quando o sol incide sobre as formas e as distorce.

sou militante apenas de meus passos,

exijo unicamente o que pressinto.

não reivindico qualquer lâmina de água

derramando-se em tórridos desertos,

ou o sibilar do tiro que se acha

pela vertigem da presa derrubado.

 

entre o disparo da bala e o seu alvo

há sempre um espaço ferido que se cala.

eu não me calarei!

mesmo que a voz me morra e só me reste o espasmo

de um coração de pássaro delido,

sei do bulício dos vales riscando traços de luz

na opacidade cinzenta das montanhas;

do viço da areia roçando-se nas águas;

o suspiro do ar quando toca nos lábios

da mais pura mulher

e a subtil ternura com que a corola do cardo se revela

quando se acha tocada pelo orvalho.

 

todos eles me habitam

como o silêncio instiga a transgressão no fruto das searas,

assesta de raiva as hastes dos espinhos

e sussurra revoltas tão antigas

que as mãos dos camponeses preferem olvidar.

de todos retirei

a força de um silêncio confidente,

onde repousa eternamente o sortilégio,

que fez de mim um militante (apenas) de utopias.

 

 

 

 

 

 

Morre-me nos lábios a água

 

 

Morre-me nos lábios a água de tanta sede oculta.

Por ela sei do rio que desperta no sangue

a cintura do fogo

e acorda nas virilhas

o indizível êxtase da luz.

 

Uma ânfora apenas guarda o fluir das mãos

mergulhadas no cio de todas as palavras,

e sortilégios outros que ao barro confiaram

os seculares desígnios de tão intenso lume.

 

São rios clandestinos os lábios desta sede

de imaculadas águas.

Com eles ousarei, secretamente,

a transgressão das margens;

direi que me pertencem os pequenos delitos

de quantos marinheiros intentaram na areia

um cais onde aportar os abismos do corpo,

e gritarei  teu nome em cada gota ausente,

mordendo na garganta palavras interditas.

 

 

 

 

 

 

Sobre uma pedra escrevo

 

 

Sobre uma pedra escrevo

a claridade infinita dos teus olhos

iluminando a praia a que aportaram

todos os barcos cansados de viagens.

 

Há prodígios nos dedos desenhando na areia

inavegados rios em busca de navios.

Em seus porões vazios apenas a memória

de outras longínquas águas e um secreto desejo

ainda reclamando o derradeiro pólen das palavras.

 

Sei-me sentado aqui há muito tempo,

entre um templo de luz que tudo esconde e nega

e a sedução plena da miragem, insinuando no vértice dos lábios

um nome pelo fogo inominado.

 

Entardecem-me as têmporas e as mãos

somente reconhecem do teu corpo

a volúpia do quanto recusaste.

É o instante, então, de celebrar-te,

deixando-te na pedra onde te escrevo,

o aroma que o mar colocou nos teus cabelos,

para que possa, enfim, contemplar-te.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fernando Fitas (Campo Maior, Alentejo, 1957). Jornalista, poeta maltês e cidadão permanentemente intranquilo, trabalhou em vários jornais de âmbito nacional, nomeadamente em "O Século", "24Horas" e "Tal& Qual". Fundador e director — durante sete anos — do quinzenário "Outra Banda" e chefe de redacção do "Noticias de Almada" (entre 2005 e 2011), colaborou ainda em diversos periódicos regionais de norte a sul de Portugal, assim como numa das rádios locais do Concelho do Seixal, assumindo a responsabilidade pela emissão de programas culturais durante vários anos. No domínio da poesia tem várias obras distinguidas com prémios literários. Entre eles, o Prémio de Poesia Cidade de Moura (1999), Prémio Literário Raul de Carvalho (2000) e Prémio de Poesia e Ficção de Almada (2003 e 2014). A sua escrita estende-se da reportagem à ficção, passando pela investigação histórica e recolha oral em alguns concelhos da Margem Sul do Tejo. Autor das obras Canto Amargo, Amor Maltês, Cantos de Baixo, Silêncio Vigiado, Mar da Palha — reportagens, Histórias Associativas — Memórias da Nossa Memória, A Casa dos Afectos, O Ressoar das Águas, O Saciar das Aves, Alma d'Escrita — Reportagens e Alforge de Heranças. Figura igualmente nas antologias Poetas Alentejanos do Século XX, Literatura Actual de Almada, Da Liberdade e Poetas do Mundo 2015 (Chile). Companheiro dos cantadores da resistência como José Afonso, Francisco Fanhais e Vitorino na Cooperativa Cultural Era Nova, tem poemas cantados por alguns intérpretes da canção portuguesa, designadamente Chiquita e Luísa Basto. Em seu blog, Silêncio Vigiado, publica alguma da sua esparsa produção poética.