©jairo fará | "poemaço"
 
 
 
 
 
 
 
 
 

"A morte do espectador é a morte da humanidade".

Marie José Mondzain

 

 

Um poeta pensa? E muito. Tanto é que os filósofos de todas as épocas, muitas vezes ilustraram seu pensamento com versos. Mesmo assim há quem duvide. Por isso essa é uma questão que passa por um saber, por uma vocação que pode ser deslocada a todo o momento. O que importa mesmo para o poeta é sua produção de sentidos que envolve paradigmas diferentes, entre eles o estético e o poético. Importa também o que surge ao poeta em sua consciência.

Ora, esses paradigmas se transformam com o passar do tempo. Assim, quando Ana Hatherly encontra em sua pesquisa relatada no livro Casa das Musas sobre textos visuais, desde os gregos alexandrinos, passando pela Idade Média, Renascimento, Barroco, entrando pelo século XIX, século XX, nada nos surpreende. A poesia visual sobrevive e renasce. Trata-se de um percurso poético que aponta para uma sobrevivência de experiências da imagem em processos diferentes no trajeto da História da Literatura.

 


©carlos barroso | (des)instalação

 

Para cada poema visual, uma representação, uma significação. Nele, a montagem tem seu lugar de importância. Aproximar, confrontar, dialetizar palavra e imagem no poema fazem parte dos processos de sedução do leitor/espectador, para fazê-lo pensar. Existe um saber que pré-existe a toda recepção da palavra-imagem. Quando lemos um poema visual, estabelece-se um jogo a ser jogado. Diante de algum estranhamento é aí que nossa linguagem se enriquece com essas combinações vistas e nosso pensamento acontece.

Diante de um poema visual estamos, ao mesmo tempo, nos colocando diante de um saber em questão e diante de um saber em jogo. Um detalhe, uma palavra inesperada — e de repente se ilumina aquele jogo de palavras e imagens, que nos tocam e nos inquietam. Há poemas que surgem diante de nós e nos espantam, nos colocam em estado de surpresa.

 


©jairo fará | "cuidado com o não"

 

Os poemas visuais fazem parte de uma experiência das imagens. Por exemplo, quando Carlos Barroso faz seu objeto History no lixo, ele está produzindo sentidos, atravessados por questões históricas e filosóficas. O gesto do poeta é sustentado por uma crítica ao poder. O que estão fazendo com a História? Em outro poema visual — O arco de Santa Tereza — O arco de Drummond que é o Viaduto de Santa Tereza (bairro) o poeta traz uma imagem — um símbolo, uma representação de um tempo que é olhado por ele e um espaço com valor histórico e poético. O poema de Barroso coloca em crise a relação ordinária. Trata-se de um movimento crítico da representação e do símbolo.

"Picho, logo existo"... "Picho, logo encho o saco". Ao lado da paródia, o poeta aponta para um conhecimento crítico que o muro pichado lhe dá. Alguns aspectos diferem nas montagens dos poemas visuais e dos objetos desse autor, refiro-me ao aleatório e ao ritmo.


©carlos barroso | "picho"

 

Em Presuntos a Passarinho, as fotos são de nomes conhecidos, mas com sobrenome da Silva, desde Jesus Cristo até Marcel Duchamp. Escolhidos a dedo pelo poeta, nas palavras de Barroso: "O poema coloca todo mundo morrendo com 12, 13, 14, 19 anos (etc), como matam os adolescentes no Brasil, principalmente negros. Quem tem data de nascimento e morte definidos, por exemplo, Emily Dickinson, eu coloco o dia em que nasceu e o mês — e ainda um ano fictício que nasceu e morreu, para dar a crítica da atualidade [...] quem não tem data de nascimento e morte definidos, invento [...].

O poema visual também tem outra característica: ele reproduz signos de uma determinada época que brincam no jogo linguístico. É o caso de Poemaço, de Jairo Fará e Poomo, com áudio da música de Belchior, cantado por Elis Regina. O áudio que acompanha o poema completa a "narrativa" do visual: Somos, Fomos, Como, Fomos, Somos, Como ["nossos pais"].

 


©jairo fará | "poomo"

 

Um outro aspecto a ser assinalado na obra de Jairo é o humor. Um exemplo: Sexo de Mineirim. Os versos se movimentam na tela como um trem de ferro que sobre e desce montanha, enquanto a cena erótica acontece no áudio. Ou ainda a referência aos versos de Drummond: "No meio do caminho do haikai tinha uma pedra".

As referências mostram-se fáceis de serem observadas. Há um jogo linguístico em que o leitor decifra os signos tipográficos enquanto as letras se movimentam. No interior da linguagem poético-visual, os encontros insólitos entre o fonético, a representação gráfica e o movimento das palavras e das imagens acontecem.

Em Bolaola, Jairo Fará se exercita no movimento concretista. Sempre é tempo de lembrar a importância de poemas como os pioneiros Pignatari, Augusto de Campos e Poema Processo de Wladimir Dias-Pino, entre outros. Trata-se mesmo de uma genealogia do poema visual — um poema — citação.

Em outra tendência, a memória vem à tona em Carlos Barroso, com o 11 de setembro. Data inesquecível para qualquer cidadão no mundo. A chamada de um show da americana Beyoncé. Processo de memória inconsciente tornada consciente em sua visualidade. Conjunção de um presente com um passado próximo. Imagem da cantora com a data, vestígio da história.

O tempo de olhar, abrindo a possibilidade de relações e um trabalho de contextualização possibilitam a leitura dos poemas. Penso em Descorpo, Antolhos e Gaveta de Carlos Barroso. Objetos montados que ao serem olhados causam estranhamento imediato. Os sentidos começam a surgir quando desdobramos esses objetos ali colocados e os contextualizamos. O corpo-descorpo feminino sacralizado pela estola, o antolhos apontando para o feminino. Esse poema de Carlos Barroso exige um olhar político, isto é, exige-se uma maior "potência do olhar". Signos, que são articulados em cada gesto, em cada montagem.

 


©carlos barroso | "poda (maria-sem-vergonha)"

 

Tanto em Carlos Barroso quanto em Jairo Fará vemos a preocupação com o material e com as ideias. Diante do que atualmente acontece, os momentos expressivos são aproveitáveis. Entrelaçados, montados no poema, para de alguma forma criticar, inquietar o leitor/espectador. Ao mudar a função dos objetos dos poemas, esses autores possibilitam ao leitor/espectador um prazer estético, uma informação, um saber determinado sobre o que acontece no mundo que o cercam.

Descorpo, Picho, Beyoncé, History, Presuntos a Passarinho de Carlos Barroso nos dizem para abrir os olhos com o que acontece a nossa volta. No vídeo Poevento, Jairo Fará traz-nos o jogo fonético e áudio visual. Nas palavras "vento", "invento", "convento", "porventura", "movimento", "catavento", o poema vai se estruturando pelo movimento das palavras que dançam na tela. Ética — a palavra que estica plasticamente até chegar em ética não ética. No movimento, a crítica.

As tomadas de posição unidas à invenção formal em um mesmo gesto conduzem os sentidos propostos pelos autores. Na montagem dos objetos, a desmontagem dos sentidos ordinários, do agora.

Esses poemas visuais, assim como outros, nos "olham" e nos colocam em nosso tempo questões fundamentais em curto espaço — do museu ou da galeria ou do grafite num muro da cidade, ou na página de um livro.

Assim é que o poema em sua visualidade nos restitui algo do mundo real em negativo. Esse é o papel da invenção. Esse o momento do poeta.

 

 

outubro, 2018

 

 

Vera Casa Nova. Poeta, ensaísta, pesquisadora e professora da FALE/UFMG. Doutora em semiótica pela UFRJ. Pós-doutora em antropologia visual pela Ecole Des Hautes Études em Sciences Sociales, Paris, França. Tem diversos trabalhos, poemas, ensaios, estudos e pesquisas publicados em livros, internet, jornais, revistas, suplementos literários do Brasil e exterior. Autora, entre outros, de Lições de almanaque (Ed. UFMG, BH, MG) e Desertos (poesia, 7Letras, RJ). Carioca, vive em Belo Horizonte.

 

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