©tyler shields
 
 
 
 
 
 
 

destino

 

 

acomodá-lo de bruços

sobre os joelhos

e com jatos mornos d'água

lavar com cuidado suas dobras

 

com as mãos em concha

guardar as orelhas e os olhos

do excesso de água

e da espuma do sabão

 

secá-lo

untá-lo

com óleos e talcos

vesti-lo

alimentá-lo

 

ignorar

o leite derramado

a vida íntima em pausa

em prol do seu desabrochar

 

enlevar-se

diante do seu sono

do primeiro passo

do primeiro dente

 

e esperar calmamente

que ele ignore seus sonhos

e despedace seu coração

 

 

 

 

a propósito de léonce roudet

 

 

para a emissão vigorosa de uma vogal é necessário

consumir vinte e quatro vírgulas e um decilitro de ar,

ou seja, somadas às consoantes são necessários

aproximadamente cem decilitros

de ar para emitir a palavra amor

 

isso é quase um suspiro

 

 

 

 

 

o culpado

 

 

sinto raiva mesmo é do amor

ajoelhado nos ladrilhos do banheiro

em flagrante felação

nem para exigir troca

o amor

 

entre os dedos do amor

e debaixo de suas unhas

há sangue seco

 

o amor goza

até com castelo de cartas

com bilhete de loteria

não premiado

 

o amor, esse puto,

esgotou seu último pedido

a minúscula nascente

que a ausência de convicção

havia plantado em meu peito

 

 

 

 

 

consolação

 

 

não importa

que este seja um outono perdido

entre as cicatrizes de meus joelhos

ou que, ao final da história,

você venha a ser o príncipe

e eu, maleficent

 

para nos colocar

de maneira assim tão vulnerável

diante de nós

é preciso esquecer

o quanto, ao final

os contos podem ser cruéis

 

coringa e arlequina não disfarçariam

suas pequenas imperfeições

para dissimular o ridículo

das fantasias de amor

mas tão loucos quanto nós

dançariam diante do espelho

a cada sinal de desejo

 

ainda bem que não há dublês

para as paixões de homens

e mulheres comuns

ainda bem que se esquece

que o molhar dos lábios

e a mordida dos lóbulos

são cenas repetidas

em todas as histórias de amor

 

 

 

 

 

condição necessária

 

 

você sorri enquanto caminha

e pensa: "no verão o amanhecer

pode ser uma coisa alucinante"

em breve ouviremos

os proclamas do outono

 

se você poderá dormir

trocar de roupas, trabalhar

e seguir com ninharias

é algo que me parece atroz

 

como é possível que se esqueça

das palavras nas velhas cartas

dos poemas em guardanapos

das canções que me dedicou?

 

não que eu não seja capaz

de me render, amor

mas era sublime

a intensidade em seus olhos

nem todo ouro do mundo

me traria de volta aquela sensação

 

se você decidisse, só um pouco,

acreditar no amor

poderia ter ficado

lembra? parava diante

de qualquer espelho

e nos achava lindos juntos

 

não é o fim da vida, eu sei

só dói quando me identifico

com as heroínas dos filmes de amor

e lembro-me de minha sina: preterida

 

mas por deus, como você supera

o fato de ter nos transformado

para sempre no fragmento

de uma promessa?

 

você coloca os óculos escuros

evita o sol, observa os pombos cagando

na estátua da praça da estação

e parece não entender

que o amor é um punhado de renúncia

e uma meia dúzia de dias felizes por mês

 

 

 

 

 

a frota do novo homem

 

 

vejam, irmãs, quem aporta agora no cais

aspirem para dentro de seus pulmões as embarcações

naufragadas em sítios fora do mapa

 

irmãs, sei que andamos cansadas de ser árvores

e galhos para esses filhos mamíferos cinquentenários

nossos joelhos dormentes de tanto levar ao colo os amantes

 

mas alegrem-se, ó minhas quatro amadas irmãs

eis que ele chega, prenhe, mas ainda não nascido

traz entre os dedos vínculo, intuição e benevolência

aquele a quem chamamos homem, o signo de uma raça

 

é tempo de lançar nossos olhos ao norte

e sorrir para a  grande alegria que nos espera

um tempo em que as mãos nos representarão

e mãos, irmãs, não possuem sexo

 

 

 

 

 

do que se pode chamar de lar

 

 

cento e vinte

metros quadrados

decorados

piso ladrilhado

e eu com saudades

do coqueiro

 

 

 

 

eles irão contar para deus

 

 

dois metros de pele

milhões de poros

dois olhos

a boca

e um desconsolo

convulsivo choro

por esses meninos

sírios

palestinos

 

 

 

 

 

pagã

 

 

herdei pouca

ou nenhuma mitologia 

de minha mãe 

 

umbigos

unhas

cabelos

dentes

eram arrancados

e jogados fora

[sem rituais]

 

sagrado para mamãe era a fome

 

 

 

 

tradição

 

 

dar-me uma noite inteira

ao trabalho de parto

uma vida inteira

ao trabalho de parto

e por fim

parir minha mãe

língua afiada

a entregar-me tijolos

para construir

as paredes da masmorra

que eu ergo

com a alegria

de quem corrige a torre de pisa

 

 

 

 

shame

 

 

se sobrevivemos ao naufrágio

foi por tomar distância

da dança atônita

do olhar desesperado

daquele que sucumbiu às águas

 

ninguém conta

mas todo mundo sabe

 

 

 

 

 

descendência

 

 

tive dois filhos que não chegaram a nascer

tinham nome, sobrenome e um destino arrumadinho

de gêmeos vestindo uniforme

 

não viveram o suficiente para eu provar

como posso ser uma péssima mãe

 

decifrando os escombros que deixaram

noto com que voragem os queria aqui

porque para o amor não interessa ser o pior 

 

o amor: ele quer é consumar-se

 

 

janeiro, 2018

 

 

Norma de Souza Lopes (Belo Horizonte/MG, 1971). É autora de De mim ninguém sai com fome (Patuá, 2017) e Borda (Patuá, 2014). Escreve o Norma Din.

 

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