dentro e fora é a mesma coisa I

 

 

por que eu gargalhava

uma cachoeira

me deu

a maior lambida

da minha vida

 

estando atenta

até a cor ecoa

 

 

 

 

 

 

dentro e fora é a mesma coisa II

 

 

Raízes tem saudades do cerco da semente

Toda árvore queria ser gente

 

 

 

 

 

 

lugar nenhum

 

 

fevereiro arranha o portão

finjo que não vejo a lista de ano novo

558 km foi onde fui

para descobrir que gosto de cachoeiras

pilulas de quatro cores

ventiladores

lugar nenhum

por mais que um dia

 

 

 

 

 

 

cinzas não resistem às chuvas

 

 

a salvo um plano de estudo para o vestibular de 93

sete diários

uma biópsia da cirurgia de endometriose

um raio xis da cabeça

cento e noventa e oito contracheques

a carta da primeira psicóloga depois que ela foi pra Bahia

as fotos da Sonora

ultrassons do primeiro e do segundo filho

documentos religiosos dos filhos

certidões de nascimento

e documentos escolares

 

há uma fogueira de memórias ardendo no quintal

 

 

 

 

 

 

trinta e um

 

 

é verdade que odeio a barbie

mas teria amado se você tivesse

sobrevivido à cirurgia de estômago

e se tornado uma droga de uma barbie

 

entendi que não há saída

há quem ganhe e há quem perca

quem ganha nem sempre são os bons

estou pronta para viver com isso

também estou pronta para herdar

as avencas de minha mãe

 

continuo achando o amor impossível o mais bonito

mas hoje é trinta e um de dezembro

e eu queria muito acreditar em um mundo

em que os bons ganhassem, e vivessem para sempre

 

 

 

 

 

 

nativa

 

 

a mãe da mãe da minha mãe foi pega no laço

a mãe da minha mãe foi pega no laço

minha mãe foi pega no laço

eu, por precaução

perambulo nua em pelo

 

 

 

 

 

 

concessão

 

 

ouça o chamado da loba

é igual para todos os homens

 

possua cada orifício

com amor

ou com violência

 

mas que não se ouça

nem um gemido

que não seja permitido

 

nem um gemido

que não seja permitido

 

 

 

 

 

 

canção para acordar

 

 

a voz para

a voz paralisada

desde os avós

pela civilização

 

acorda

velha índia

desata o laço

da falsa domesticação

 

 

 

 

 

 

deusa de festim

 

 

ando cansada de ser mater dolorosa

uma miríade de deusas da fertilidade

só para a gente padecer no paraíso

que falta me faz uma deusa de festim

 

na próxima maternidade juro que perco o juízo

e trato de parir um tamborim

 

 

 

 

 

 

vilarejo

 

 

paredes brancas

braços negros

varandas

 

você e eu

uma vila

inteira

 

 

 

 

 

 

ignomínia

 

 

tudo à minha volta pacifica, menos eu

pintinhos piam, comem, engordam

apaziguando o quintal

lagartos crescem a ponto de brilhar

só eu posso ver a boca voraz da existência

 

vejo anjos distraídos

liberando o acaso sem pedágio

para assistir ao teatro impotente de meus dias

acredito em anjos e a realidade ainda me corta

sou forçada a crer que não podem se arrepender

 

não posso deixar de chorar por Jonas

ser dado em sacrifício para que não tombe a nau

por não cumprir uma missão ignóbil

convencer néscios, de espírito mau

a crer no improvável

 

estou como tu, Jonas

há muito, muito mais que três dias e três noites

sepultada no ventre de uma baleia chamada vida

rebelde à missão que eu mesma me designei

afinal quem me dotou de tão poucas virtudes?

 

 

 

 

 

 

temporã

 

 

com oito anos

dei o primeiro beijo

chamava-se Natal

o menino que beijei 

 

bastou um dia

para ele confiscar

o anel presenteado

e passá-lo carinhosamente

à próxima namorada

 

Natal inaugurou

décadas de rejeição

 

 

 

[imagens ©maria rubinke]

 

 

 

 
 
Norma de Souza Lopes (Belo Horizonte/MG, 1971). Poeta e professora (nas horas vagas). "Escrever é essa costura cotidiana quando posso tecer e juntar as pontas soltas da memória". Escreve o blogue Norma Din. Vive em Belo Horizonte.