©richard huntjens
 
 
 
 
 
 
 

Ligado com destinos tantos, o condutor do ônibus deu partida e deixou a rodoviária de Varginha, no sul de Minas, para ganhar a estrada, rumo ao norte. Quarenta e duas pessoas embarcaram. Levando em conta as negligências do acaso, o motorista margeou rodovias com atenção redobrada desviando-se de buracos e caminhoneiros que, mesmo de olhos abertos, dormiam ao volante.

O tempo a girar no ritmo das rodas, transportaria anseios, alegrias, tristezas e saudades. Aos passageiros cabiam vazias observações, diálogos com o desconhecido do lado, olhares parados algures — estáticos num horizonte ora pintado de um verde montanhoso, ora de nuvens enegrecidas.

Imagens sem forma constante, mas vívidas na insistência de borrar a janela do coletivo em movimento, desencadeavam conversas. "Olha aquela paisagem, que bonita!". "Ih, tudo escuro lá na frente. Vem chuva aí!", comentavam. No entanto, diálogo interessante mesmo ficou por conta de dois passageiros sentados ao fundo, perto do banheiro. Na confluência de suas vozes elevadas além da conta, a dupla atraía olhares. Quando não isso, ouvidos curiosos acompanhavam o desenrolar da prosa.

Falavam das três meninas que, em 1996, confessaram ter visto um ser estranho, baixinho e de olhos vermelhos. Comentavam do casal de agricultores que avistaram um objeto não identificado, comprido, do tamanho de um ônibus, voando sobre o sítio que moravam. A conversa viajava e despencava em questionamentos sobre a tal nave que teria caído na zona rural.

Extraterrestre, desde então, virou o cotidiano da cidade — atração para turistas. Novidade sobre o fato, não havia. Contudo, o diálogo fez o tempo correr. E fez mais: nalgum remendo de fala, o assunto sobre o ET mergulhou no Triângulo das Bermudas. Da nave espacial que caíra para os barcos que sumiam, a conversa ganhou profundidade! Foi nessa parte das crenças, ponderações e realidades que o coração dos ouvintes curiosos aceleraram, ultrapassaram os limites de velocidade e o radar da anormalidade disparou nos peitos aflitos.

Vinha ganhando força uma história estranha. Na rota que estavam — curvas à frente — lendas populares despertavam-se em vívidas possibilidades. Num ponto específico das sinuosidades do asfalto, não se sabia exatamente em qual voltear do volante, carros sumiam. "Ônibus já sumiram três. Em alguma dessas curvas, ninguém sabe, os veículos evaporam. É um verdadeiro Triângulo das Bermudas", disse um dos interlocutores, aquele que estava mais próximo do banheiro.

E era sumiço mesmo, garantiu, ressaltando que esses veículos nunca mais foram encontrados, nem na estrada, nem no abismo.

Embora a tal história despertasse apreensão, no fundo só uma meia dúzia acreditava. Esta gente, porém, se encarregou de lembrar ao vizinho do banco em frente sobre a lenda dos sumiços. Um passou para o outro e não demorou nadinha para a mulher gorda, com o filho de oito anos agarrado ao boneco do ET de Varginha, gritar para o motorista: "Desvia a rota. Passa por aí, não, moço! A gente toda aqui corre o risco de desaparecer!"

O motorista, já acostumado com o caminho — há anos passava por ali — limitou-se a direcionar canto de olho para a mulher e sorrir. E foi no hiato justamente entre sorrir e voltar sua atenção para o asfalto, que o ônibus começou a tremer! Poderia ser um pneu estourado, um eixo quebrado, um desalinhamento instantâneo? Toda sorte de possibilidades, certas ou erradas, passaram pela mente, dele e das pessoas. Um deixou escapar: "Virgem, Santa!". A mulher que havia pedido para o motorista desviar a rota resmungou: "Meu Jesus Cristinho!" Tão baixo, que nem o filho escutou. Ademais, este não poderia, pois o tremor aumentou muito e o som da lataria batendo se agigantou.

O motorista, visivelmente assustado, até tentou parar o ônibus. A turbulência engoliu o carro e qualquer ação atou-se ao impossível. Então, veio a gritaria. Veio mais turbulência. Veio um clarão absurdo. E, finalmente, veio o silêncio. Do silêncio, a inexistência.

Três dias se passaram até que o morador do sítio — este mesmo: a testemunha do passado —, viu o ônibus ali no seu quintal. Lá na frente, entre as vacas, os bois, galinhas e porcos, a lataria unificava-se à paisagem. Dessa vez não se tratava de um objeto voador semelhante a um ônibus, não. De fato, não era o mesmo tipo de objeto que vira há anos. Era um ônibus de verdade! Mas como, ali? Impossível. Estradinha nenhuma que pudesse passar um ônibus abria caminhos. Intrigado, o homem foi verificar. Quando adentrou — a porta estava aberta —, nada. Pessoa nenhuma. Só se viam as bagagens. As bagagens, as roupas dos passageiros ajeitadas em montículos nos bancos, como se descartadas — abandonadas subitamente do corpo —, e o boneco do ET.

Chegou perto. Mais intrigado que antes, mexeu e remexeu nos tecidos. Depois de minúcias, jogou algumas peças no chão. Pegou o boneco. Preso ao corpo do brinquedo, um bilhete: "Nós não somos assim!". Mas o agricultor não contou isso para ninguém. Primeiro, porque se enrolou demais para explicar as roupas espalhadas. Chegaram a dizer que ele, o pobre coitado, tinha dado cabo de cada um dos passageiros! Segundo, porque se contasse sobre o boneco para as autoridades, não o teria dado de presente para a filha.

 

 

maio, 2017

 

 

Newton Cesar. Diretor de arte, designer gráfico e ilustrador há mais de 20 anos. Como diretor de arte, trabalhou em várias agências de propaganda desenvolvendo campanhas, folders, anúncios, logomarcas, etc. Como designer, especialmente na área editorial, participou da equipe que conquistou o Prêmio Jabuti 2012, com o projeto Linhas da Vida.  Foi gerente de projetos visuais e atualmente desenvolve capas/ilustrações e projetos gráficos para várias editoras. Como escritor, publicou mais de 15 livros nas áreas de negócios, ficção e biografia esportiva. Os principais são Bendito Maldito; Eu, Beatriz e Angela; Um minuto; O mar e a escuridão; A morte é de Matar e Alice (todos de ficção); Corinthians, eterna paixão (biografia esportiva); Direção de arte em propaganda; Making Of; Os primeiros segredos da direção de arte; Tudo o que você não queria saber sobre propaganda; Mídia Impressa e Mídia eletrônica; Vitamina Fotográfica (negócios). Foi palestrante na Universidade Positivo e lecionou na Unicuritiba, ministrando um módulo sobre direção de arte no curso de Pós-Graduação em direção de arte.

 

Mais Newton Cesar na Germina

> Conto