O vendedor de espetinhos

 

 

Às seis e vinte, a Kombi estaciona. Operários descem. Boceja um, gorjeia outro. Aperta a vista o terceiro. Este lança os olhos para o prédio que mal saiu da terceira laje e pensa que aquele fado ainda vai durar. Pela sua avaliação, três anos de trabalho puxados. Se pagassem bem, não seria ruim. Todavia, pouco estudo não traz dinheiro. E para um homem que só lê o nome, menos ainda. Restava-lhe, então, se conformar. Cada um com a sua cruz.

A cruz do sujeito que atende pelo nome de Terceiro é pesada. Se outros carregam carga maior, ele não faz ideia. Sabe apenas que a dele não é fácil. Não bastasse a labuta diária — o deitar-se à meia-noite e o levantar-se na madrugada, às quatro e trinta — ainda tem a questão do nome. Terceiro. E lá isso é nome de um cabra como ele? Vira e mexe é assaltado por esta pergunta. Segundinho, vá lá. Até o filho do Rei leva o nome de Segundinho. Terceiro é o fim da picada. Mas, talvez lhe caísse bem, o nome. Depois de análise mais apurada, concluiria que sim.

Terceiro é o terceiro a embarcar na Kombi. É o terceiro a descer. O terceiro a dar bom dia. Ou a não falar nada. Até a mãe — que Deus a tenha — tratava Terceiro com um punhadinho de carinho na voz. Terceirinho, meu filho, faz isso. Terceirinho, faz aquilo.

Na obra, entre os peões, nunca ser o primeiro em nada já era costume. Tudo bem, não se importava mais em viver a vida depois dos outros. Desde criança, assim. Sempre o terceiro a experimentar, a brincar. O terceiro a saber. Pelo menos, não era o último.

 Capixaba, de alma bruta, simples de tudo, assina o nome com dificuldade. Sua inteligência está em preparar massa, carregar tijolos, vergalhões. É bom em carpintaria, tão bom que poderia se chamar Jesus. Monta estruturas de madeira na obra como poucos. Outra coisa que faz e recebe elogios de sobra, são espetinhos. Uma delícia os espetinhos do Terceiro.

Faz tudo como se cansaço não existisse. E mesmo que o cansaço tentasse penetrar-lhe na carne, não encontraria espaço. As obrigações eram sempre mais fortes que o cansaço, ou a preguiça. Preguiça. Deste pecado, Terceiro não podia ser acusado, jamais!

Às 17 horas, ao largar a obra, pegava a condução na Kombi, descida há três quarteirões de casa. Com andar acelerado, chegava respirando a pressa. Mais aligeirado ainda beijava a mulher que, em contraponto, era uma lerdeza só. De uns tempos pra cá, ele reparou, Adelaide piorou. Vivia desanimada. Reclamava por nada. Talvez fosse o casamento sendo asfixiado pela rotina. Talvez. O que fosse, Terceiro não tinha tempo para pensar a respeito.

 Sua vida era chegar agitado, dar o beijo com gosto de suor, pegar a churrasqueira portátil, os espetinhos de carne da geladeira, o fusca caindo aos pedaços, e ir à praça da Bandeira vender a carne.

— Eu quero malpassada. Pra mim, bem passada. Tem farofa? Pimenta? Dá a pimenta! — diziam.

Até às 23 horas era essa a vida. Diuturnamente. Há três anos a mesma vidinha, a mesma cruz. O mesmo povo saindo do metrô, fazendo o pedido e ele sendo elogiado pelo serviço. E pela carne.

Pouco antes da meia-noite, de banho tomado, barriga cheia de arroz e feijão, estava em sua cama. Nos dias em que Adelaide não reclamava de dor de cabeça, fazia sexo com rapidez. Quando ela reclamava: "Mas pare, Terceiro! Me deixa homem, que a cabeça tá me matando", ele não deixava. Fazia sexo assim mesmo. E repetia. Três vezes. Quem mandava ali era ele, oras! Ou não era?

Terceiro nunca era o primeiro a perceber as coisas. Tanto que não percebeu que a mulher é quem segurava as rédeas. O controle do casamento estava com ela, não com ele. Soube disso, o Terceiro, quando, ao chegar em casa certo dia, encontrou somente o silêncio. Era ele, o silêncio e a carne do espetinho na geladeira.

Passou um dia. Depois outro. Dez. Ninguém mais viu Adelaide. O amante, que morava há três casas dali, também sumiu. O que se concretizou, foi a fuga de Adelaide com o outro. Partiu e pronto. Deve ter sido isso, imaginavam todos. Falas entre vizinhos, cochichos entre curiosos. Mas dizer tal conclusão para Terceiro, não diziam. Ele seria o último a saber. Ou o terceiro.

Deixa estar. Que ficassem calados, então. Se não queriam falar a respeito do sumiço de sua mulher, da separação repentina, tanto melhor. Assim, Terceiro teria muito mais tranquilidade para preparar a carne do espetinho. Agora, uma carne mais nobre, meio adocicada, que dava trabalho além da conta para desossar, e que quase nem cabia na geladeira. Estava fazendo um sucesso danado na praça da bandeira, aquela carne!

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Newton Cesar. Diretor de arte, designer gráfico e ilustrador há mais de 20 anos. Como diretor de arte, trabalhou em várias agências de propaganda desenvolvendo campanhas, folders, anúncios, logomarcas, etc. Como designer, especialmente na área editorial, participou da equipe que conquistou o Prêmio Jabuti 2012, com o projeto Linhas da Vida.  Foi gerente de projetos visuais e atualmente desenvolve capas/ilustrações e projetos gráficos para várias editoras. Como escritor, publicou mais de 15 livros nas áreas de negócios, ficção e biografia esportiva. Os principais são Bendito Maldito; Eu, Beatriz e Angela; Um minuto; O mar e a escuridão; A morte é de Matar e Alice (todos de ficção); Corinthians, eterna paixão (biografia esportiva); Direção de arte em propaganda; Making Of; Os primeiros segredos da direção de arte; Tudo o que você não queria saber sobre propaganda; Mídia Impressa e Mídia eletrônica; Vitamina Fotográfica (negócios). Foi palestrante na Universidade Positivo e lecionou na Unicuritiba, ministrando um módulo sobre direção de arte no curso de Pós-Graduação em direção de arte.