Epigramas são utilizados, enquanto inscrições, em estátuas, obeliscos etc., cujo objetivo é o de remeter a um modo de viver ou à memória de certo acontecimento, como também aparecem no formato de textos ou de poemas curtos. Tais formas são elaboradas feito tatuagens, com o fino propósito de que a mensagem ali gravada dure o tempo em que a pele durar. Essa sensação de sair tatuado é a que se guarda ao terminar a leitura da coletânea de poemas 139 epigramas para sentimentalizar pedras (Confraria do Vento, 2015), de Boaventura de Sousa Santos. Nascido em Coimbra, em 15 de novembro de 1940, Boaventura contribuiu na criação da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, da qual é professor catedrático. O seu reconhecimento no campo da sociologia transcende fronteiras, tendo trabalhos traduzidos para o alemão, espanhol, inglês, italiano e francês. O prof. Boaventura é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa e detentor de várias honrarias: Comenda da Ordem do Infante D. Henrique, da nossa Ordem de Rio Branco e doutor honoris causa pela Universidade de Brasília, além dos prêmios do Pen Club Português, da Casa de las Américas, ambos na categoria ensaio, e do Jabuti (área de Ciências Humanas e Educação). A sua contribuição à sociologia do direito traz alento à transformação social. Contudo, o prof. Boaventura é senhor de uma mente em ebulição, que transcende o discurso acadêmico, tendo em vista a voz polifônica a clamar por uma existência mais pacífica, plural e justa. A voz social de Boaventura incrusta-se na sua poesia, que pode ser ouvida quando se lê: "nunca olhei para um objeto/que não retribuísse o olhar//dedico-me a sentimentalizar pedras". Este poema poderia sintetizar a obra completa de Boaventura de Sousa Santos, pois ao se perceber o desejo em despertar sentimento às pedras, tem-se a esperança da justiça para o espírito pétreo dos seres humanos. Afloram, dos poemas, a delicadeza sutil e o descontentamento comedido de quem experimentou dissabores "sob o olhar indiferente das cadeiras vazias" (poema 129), por que "o riso é lento/o afeto é morno/o choro é liso/o luto é lasso" (poema 128). Boaventura nos laça no silêncio incômodo que permeia os interstícios da sociedade multifacetada e desigual, uma vez que "a voz que mais preciso de ouvir/está calada" (poema 111) e "as cidades bombardeadas enchem-se de pedras quentes/os primeiros esqueletos/são os dos carros ainda cheios de gente a conversar//vou resistir enquanto puder/não prometo aguentar//o meu perfume gandhi & gabbana não dura o dia todo" (poema 64). Boaventura nos traz, também, o humor irônico de quem atravessou idades: "estou deitado numa cama deitada/eu a fazer planos/e os planos a desfazerem-se de mim" (poema 26), "nunca leio obituários/odeio molduras a fazerem de retrato" (poema 44), "procuro um mapa que me procure" (poema 51), "eu e os meus genitais temos boas lembranças" (poema 72). Depara-se, desse modo, com a leitura dúbia que nos faz rir da tristeza e chorar na felicidade. Aliás, o desatento que visita Portugal pela primeira vez, poderia ficar na dúvida se os portugueses são felizes ou tristes. Portugueses são portugueses — nos diriam. Ainda que boa parte dos poemas é concebida em primeira pessoa, Boaventura nos faz lembrar de seu conterrâneo, Pessoa, para incorporar entes diversos que tateiam pedras para se dissolverem em completo vazio ou para servirem de consolo a pássaros incautos. 139 epigramas para sentimentalizar pedras é para ser lido na lentidão de quem se delicia com ambrosia ou no frêmito característico do coração das pedras.

 

 

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O livro: Boaventura de Sousa Santos. 139 epigramas para sentimentalizar pedras.

Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015, 172 págs., R$ 45,00

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dezembro, 2017

 

 

Marco Aurélio Cremasco nasceu em Guaraci (PR) e reside em Campinas (SP). Foi um dos fundadores e coeditores da Babel, Revista de Poesia, Tradução e Crítica. É autor de três livros técnicos; do romance Santo Reis da Luz Divina (Record, 2004; finalista do Prêmio Jabuti de 2005), do livro de contos Histórias prováveis (Record, 2007), das coletâneas de poemas Vampisales (Editora da UEM, 1984), Viola caipira (Edição do autor, 1995), A criação (Cone Sul, 1997), fromIndiana (Edição do autor, 2000), As coisas de João Flores (Patuá, 2014) e Guayrá (Confraria do Vento, 2017).

 

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